Candy Darling


Foto by Pedro Stephan

 

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A HORA E A VEZ DE CANDY DARLING

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Née John Lawrence Slattery,

a estrela nasceu em três datas possíveis:

‘44, ‘46 ou ’48 -a certa foi guardada

como segredo de Estado.

 

Candy não era brincadeira: aos 15  ou 17

já fazia trottoir pelo Village, embora

fosse nativa das extensões pequeno-

burguesas de Long Island.

 

Falar de uma transex que se prostituía

é o mesmo que reduzir alguém, papa

ou ladrão, a falseadores borborigmos

na traquéia da identidade. Glupt.

 

A diferença era a esperteza com que aplicava

os seus looks na estrada da fama. Warhol

entendeu-a e propulsou-a, explorando-a

como o mendigo ao cãozinho com catarata.

 

Fê-la “superstar” em filmes que a crítica

dizia parecer haverem sido filmados

debaixo d’água, ou por alguém com

mal de altura no Karakorum.

 

Queriam uma estrela como Harlow

ou Joan Fontaine, que despertasse

tesão ou ao menos fizesse chorar.

O efeito que ele buscava e ela criava

 

relacionava-se com o russo ostraniénie:

estranheza. Em “Mulheres Revoltadas”

nenhuma tem voz maviosa: o “eterno

feminino” que os poetas inventaram

 

no Romantismo para mantê-las caladas,

desaparece debaixo de tanto pancake

e de tanta pancada. Candy representa

uma socialite feminista que quer tomar

 

Hollywood de assalto, sem trair os

seus pretensos vínculos de classe.

A seu pai que a acusa, diz: “Dad,

I am as much a Darling as you are”.

 

Paul Morrissey, que fez os diálogos,

inventou este gens Darling, uma Grei

Queridinha: a genealogia-linha, a família

que não é. Candy era o símbolo

 

dessa linhagem fantástica. No além,

com quem conversará? Benvenuto Cellini?

Olga Del Volga? a sua hora e sua vez

foi essa fala canhestra e canastrona.

 

Depois disso podia morrer e o fez:

aos 30 incompletos e de heroína,

não como heroína. Tenho-a aqui

emoldurada sobre a janela do quarto

 

-fotocopiei da revista do El País

umas fotos dos membros da Factory

na qual está nua, pisando suas roupas:

com os cabelos longos e lisos

 

olha de frente, entre Joe D’Alessandro

e mais três deslumbrados atores to-be,

com aquele ar blasé que deve ter fascinado

antes de mais nada a Warhol. Com os anos

.

passei a com elas ter uma relação tal

aquela de quem há séculos colecionava

ossos de mártires em relicários filigranados:

a cada quem os seus santos, a cada fiel

 

os seus oh!s. Suspiro por Candy Darling,

isso é bem o que ela preferiria. Está

entre a cama onde durmo e a planagem

de São Paulo ao longe: vinte ou trinta

 

quilômetros contínuos de torres.

O cenário combina: um dente de catequista,

mesmo que envolto em ouro e rubis, mesmo

que verdadeiro e de São Pancrácio,

 

não o faria.

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Osasco 1º/4 III 013

 

 

 

 

HISTÓRIA DO BRASIL

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A história brasileira fará sentido?

abraço o torso do Francisco, neste

duvidoso amanhecer.

…………………………….Aubade.

Como é escuro o seu torso, mal distingo

os contornos. O meu próprio corpo

está queimado pelo sol do verão

deste Rio de Janeiro: não fosforeço

na alba, protegido

por minha melanina.

 

Só há sentido se eu puder agarrar

o Francisco na alvorada. Sento-lhe

um beijo estalado no cangote,

bem onde (imagino, já que não posso vê-la)

ele mandou tatuar aquela flor de lis

medicea, florentina, a que tem

alem do formato usual, isto é: francês,

dois ramos que envolvem

como dois ponteiros de relógio

só que de tamanhos iguais,

a corola do lírio.

 

Se não houver Francisco e abraço

e lírio e aurora, não haverá nenhum

sentido. Sem momentos que tais

seremos sempre aqueles seres perdidos

em um continente interessante e

sepulcral.

 

A história só tem sentido

se feita pele, se reduzida

à possibilidade de encontro matutino

entre homens ah, tão diferentes.

Então faz sentido a História do Brasil.

 

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Rio de Janeiro 3 II 2013

 

 

 

 

 

 

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José Horácio de Almeida Nascimento Costa (São Paulo SP 1954). Poeta, tradutor, ensaísta, professor de literatura. Estudou arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo – USP, formando-se em 1978. Publica seu primeiro livro, 28 Poemas/6 Contos, em 1981, com recursos próprios. Passa uma temporada no exterior, da qual retorna apenas 20 anos mais tarde. Obtém em 1983 mestrado em artes na Universidade de Nova York. Faz também mestrado em filosofia e em artes e doutorado em filosofia (PhD) pela Universidade de Yale, com um estudo sobre o período formativo do escritor português José Saramago (1922 – 2010). Reside na Espanha, Portugal, Estados Unidos e México. No México, trabalha como professor titular na Universidade Nacional Autônoma do México – Unam, no período de 1987 a 2001, depois retorna ao Brasil. Desde então, é professor de literatura portuguesa na USP. Traduz para o português obras de autores como a norte-americana Elizabeth Bishop (1911 – 1979), os mexicanos Octavio Paz (1914 – 1998), José Gorostiza (1901 – 1973) e Xavier Villaurrutia (1902 – 1951) e a peruana Blanca Varela (1926). Militante na luta pelos direitos do homossexual, pertence ao conselho consultivo e fiscal da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura – Abeh. E-mail: horaciocosta23@hotmail.com




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