Cair em pé


.
É um mistério (e, como tal, o barato é que não se explique) a feitura do poema de Ronald Augusto. Fico pensando como o referido  poeta cria esses ruídos de sentido dentro do seu poema. É de caso pensado? Sacanagem mesmo pra cima do leitor? Ou vem do caminho, da dicção interna do que está sendo criado? Tendo a ficar com essa última hipótese. Como se, na oficina do poema, sobre a mesa, palavras avulsas, aparentemente fora da conversa, se olhadas por um outro ângulo, seriam as melhores a entrar.
.
Assim flui a nossa leitura em muitos do seus poemas. Íamos por um caminho e, quando vemos, acabamos em outro, que pode até ser o mesmo, mas com outra paisagem. Isso tudo e muito mais está na reunião Cair de Costas, em que Ronald traz de volta sua produção editada entre 1983 e 1992.
.
Como acompanho sua trajetória mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente (amizade que já dura décadas), reler o conjunto trouxe duas impressões novas que, na leitura ao vivo, de cada livro no seu ano, não me ocorriam.  A primeira é a militância da causa negra. A refinada estética dos poemas para mim sempre falou mais alto. Lia sempre com a atenção e o prazer ligados nessa sua surpreendente capacidade de criação com a palavra. Contudo, olhado em conjunto, há um período, sobretudo em Vá de Valha e um pouco em Puya, em que a crítica e o combate ao racismo movem mesmo o desejo de escrever e de estar no mundo. Essa crítica vem via poesia, via arte, via literatura. Vem realizada plenamente como poema. Poema-ensaio. Mostra tanto no discurso explícito de autores incensados como no deixa-disso do discurso crítico, o viés nefasto do racismo tardio, pós-escravocrata.
.
Se, por um lado, é um discurso potente, que ganha o direito de existir mesmo com violência, por outro, é triste. Não está realizado num texto pesado. Mas contrasta com a alegria de viver que, agora, percebo em Homem ao Rubro, de 1983, também reunido no volume. É claro que ler como triste ou alegre é relativo. Digo que eu vejo alegria e tristeza. E os vejo em contraste, o que ler em panorama me proporciona.
.
No livro de 1983, há poemas de crítica social e crítica da linguagem. Há poemas de valorização do negro e anti-racistas. Mas há um eu (lírico?) caminhando com muita alegria pelo mundo. Faz lembrar aquela passagem do Aristóteles na Retórica, sobre as características dos jovens e dos velhos. O destino de todas as coisas, segundo o filósofo grego, é dar errado. Contudo, os jovens ainda não sabem disso, porque ainda não as vivenciaram. Por isso, seguem com ímpeto. Com o tempo, na idade madura, essa em que o Ronald está hoje, podem equilibrar as expectativas, tendo ainda força para realizar, mas a prudência do saber. Já os velhos, podem voltar a ser alegres,  já que não se iludem mais nem esperam muito das coisas.
.
São, como vêem, anotações e impressões de leitura. No mais, termino dizendo que o espírito de crítica permeia toda essa grande produção do Ronald Augusto. Seja a crítica da ideologia, da história, da linguagem, da poesia, da máscara de escritor, dos discursos de poder infiltrados no mais banal. É importante como dissonância ao mesmo tempo estética e histórica. Coisa que poucos poetas conseguem.
.
.

 

 

 

 

 

 

 

 

.

Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook