Cair demais


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Como imaginar Jorginho, seus dentes, a clausura do apartamento sem quadros e mesinha de centro, as próprias mãos que gesticulam para construir o mundo? Homem bom? Sim. Sozinho? Eternamente. Mergulhado no precipício existencial das dúvidas, igual ao personagem italiano não especificado. Provavelmente Cabíria, sua preferida, em preto e branco, melodramática, frustrada e desprezada pelo amor dos homens. Ao fim do filme, até o final feliz parece dúbio, quando riem da cara dela e os acontecimentos se tornam menos drásticos e intoleráveis. Mas com Jorginho a poética cinematográfica mudará de tom sob a influência de becos e sarjetas abaixo da linha do Equador que nos influenciam a esperar, concomitantemente, pelo ar de qualquer graça.

A cidade que o engole no cinza de tempestades imprevistas no céu, como quem se enfeita para chorar sem motivos. Os prédios mais altos do mundo não choram. As grandes metrópoles são duras. O ar quase irrespirável é a sobrevivência de muitos. Poucos pedem clemência, porém outros querem tanto a verdade.

Sábado, 7 da noite, dentro do banheiro: Jorginho se enxerga diante do próprio rosto moreno e não compreende o fluxo – nem a febre das noitadas. É que todos devem ter algum motivo para enfrentar a madrugada com rostos resignados de lobos, ou vampiros esqueléticos, esquálidos por sangue. Mas ele não enxerga o porquê das escolhas duvidosas estampadas nas fuças ao vestir um novo jeans, tomar um táxi, sorrir enquanto seria menos exaustivo encarar as paredes vazias de casa. Soaria mais interessante reacender as luzes e reler um livro – os poemas de Emily Brontë deveriam ser minuciosamente analisados, pensa ele, segurando o ferro de passar paralelo ao peito e suspenso num abismo doméstico.

Mas todos os olhos do mundo perceberiam que Jorginho, aos 25, não é fiel escudeiro de si, porventura alguém que interpreta (numa gargalhada estridente) o que os poetas consideram uma morte lenta.

Ele revive mentalmente a solidão, a cama vazia, o sexo pelo ralo, o garanhão que lhe proporcionou afeto graças a uma nota de 100. Aquela cachoeira de insensibilidade presente nos olhos de quem não sabe que você tem nome ou se sobrevive de ilusões convencionadas. Ou que a sua paixão se afoga numa piscina onde os nadadores dão piruetas e não se importam.

Você sempre dança sozinho na noite.

É certo que Jorginho vivia a cruzar ruas movimentadas, e não tinha a motivação estudada nos livros de autoajuda. Sua vida se precipitara em enredo impressionista: foco no personagem principal, ação mínima, fluxo de consciência, uso de símbolos, epifania. Katherine Mansfield se remexeria no túmulo, hipoteticamente ao transformar a existência dele numa narrativa de duas páginas repletas de significância. Quem sabe, parente distante de Bertha Young ou Miss Brill, ícones de sua literatura, porém os tempos são outros; e toda grandiosidade de Jorginho seria aplaudida por um seleto número de personas sem nome ou tempo previsto na realidade. Ou como o escritor morto na solidão da década de 90 (ou de qualquer século) escreveu que “uma grande ausência ardia em labaredas dentro dele”.

Mas o clima não esquenta na noite onde até os cachorros são humanos.

É festa no apartamento de Angélica, todos dançam. De praxe, Jorginho se recusa, por discrição planejada, em não exagerar nos cumprimentos e nem se dedicar aos abraços, descontroladamente. Aos poucos ele não se torna animal arredio domesticado bruscamente, basta que outra rodada de vodca seja servida e os móveis ao redor mudem de posição.

Os minutos correm em desespero. Mas o clima só esfria, a bebida é uma espécie de bola de neve em que ele, aos pouquinhos, vai desafiando o ritmo das relações humanas e o limite de quando devemos ser sinceros.

Não tão cheio de si, inclusive prestes a mudar de assunto, ele esquece que jamais terá um pedaço do mundo nos braços, nem sequer o de sua morada, nem ao menos um pedaço de Augusto, tão lindo, que acabara de chegar acompanhado (obviamente) e aparentemente extasiado sob os abraços ad infinitum que o circundam.

Nunca poderia ter o rosto caramelizado do destino por perto, pois as regras impostas não eram as suas. Jamais esconderia os meandros da sedução no bolso, pois Augusto, como exemplo de um grande equívoco, era o homem mais lindo da festa, nitidamente em todos os ângulos impostos pelo desejo.

Augusto, lambuzado de uma beleza irreversível, exibia um prêmio humano como resultado de sua conquista. Quem seria aquele desconhecido maravilhosamente esculturado? O tal prêmio provocara em Jorginho a inveja dos que não têm músculos, a inveja dos que não são adoráveis gratuitamente, a inveja dos que se enfeitam aos sábados e cruzam a floresta urbana carniceira rumo ao 13º andar do apartamento de Angélica que, na verdade, é uma péssima anfitriã.

Por quanto tempo eu estive aqui e por quanto tempo não terei o direito de ser eu mesmo, reflete, desdenhando quem não se aproxima, fixando o olhar nas coxas de Rodrigo, o tal acompanhante maravilha, que não lhe retribui a grande oferta.

Jorginho prefere acreditar que a beleza daqueles semideuses é uma dádiva insensata, plástica, intimidadora. Em contrapartida, Jorginho é tão humano, ele não se importa em fumar os restos de cigarros dos cinzeiros. Ele não se importa ao cair. Mas o que torna a vida tão difícil é cair demais. Augusto nunca teria a experiência fatídica da queda. Augusto é alguém que te faz nutrir uma repulsa velada, pois por culpa indireta de pessoas iguais a ele e iguais a Rodrigo, a realidade se transformou num matadouro onde nós somos os bois mais magros e doentes do pasto.

Permanecer na festa é um ato desesperado de reconquistar as horas perdidas, hipoteticamente. Horas que não perduram, não enganam, que não são como uma droga. Então Jorginho, quase cínico, se mistura aos convidados que tanto conversam! Gente freneticamente abundante de assunto. Seria tudo tão interessante? Pessoas que escancaram os dentes e vociferam e descrevem e tentam ser engraçadas e mentem e não pedem bis, ou não tomam fôlego para observar os coadjuvantes que só representam um cenário à cena. A solidão que é tão escrota. O tempo que ele imagina ter se esvaído ao vestir aquele jeans, calçar os sapatos, imaginar a protuberância da carne entre as pernas dos convidados mais bonitos, ali, diante da recepção e da vida, ambas insensatas.

Pois é na confusão de ideias que as oportunidades se transformam no medo de não tropeçar no buraco, na vergonha do próprio corpo na praia. Por qual razão, ele, ou eu, ou você que me lê, não decide tomar as rédeas de si? Ou tornar a realidade do circo que se tornou o mundo em um paraíso tragável onde o nosso destino é a maior prioridade? Jorginho é homem derivado e observador in extremis. É alguém se desequilibrando no leque de circunstâncias duvidosas, manchadas de suor e masturbação às 10 da noite.

Não fazer parte da roda sugere mais uma irresponsabilidade fatídica da qual ele se insere como vítima. Estar ali, numa percepção corajosa ao se aventurar em falso prazer, cercado por meros atores principais, ainda é um peso de grandes toneladas nas costas, nos olhos.

No sofá, mantendo-se distraído ao celular, ele relembra que o tempo é uma grande esfera despencando de uma montanha. O tempo é ouro e merda. O tempo que é areia movediça ou a cinza do cigarro se esvaindo ao vento forte que vem da varanda. Jorginho quer gritar por uma saída de emergência, desejar cumplicidade vã que torne tal suplício em mero flash de esplendor. Diversão insincera e ao mesmo tempo mirrada, como a honestidade daquele living.

Todas as pessoas interessantes da cidade não estão perplexas, enquanto o sofá, que suporta o peso de sua figura levemente entorpecida pelo álcool, é um território limitado, pronto para refletir o morcego que ele se transformara, dividido em quatro pedaços desordenados. Quatro pedaços que se diminuem.

Ultrapassando o barulho ensurdecedor dos risos e vozes, decide-se por fugir, lento como cobra, como gato que se arrasta rumo à presa, discreto.

Não se despede de Angélica nem de ninguém. No hall, o ar finalmente é respirável. Aguarda o elevador, 13 andares de pura desolação e mármore. Desiste de esperar, desce as escadas num ritmo veloz, como quem desliza nas escadarias de um palácio ao receber cartas de amor das mãos do carteiro.

Alguns andares abaixo, ele ouve um som estridente vindo de cima, um estalido, um fogo de artifício que não deu certo, ou imaginação, ou filme na televisão, talvez. E gritos. Já não pensa em nada, está aliviado, não darão por sua falta. Entenderão o seu sumiço, afinal Jorginho, segundo eles, fortalece a estranheza, a falta de sentido, o gosto amargo, o pensamento obtuso.

Segue em silêncio no táxi, não dá a mínima ao rádio ligado ou aos comentários do taxista a respeito do calor, dos motoristas que não sinalizam, da violência na cidade. Está mudo para si, de boca fechada para o bem e para o mal. Sente-se fraco, a garganta desolada, as mãos já não tremem, não há necessidade de roer as unhas.

Jorginho é a ausência de som em seu apartamento também mal decorado.

“Eu deveria ter sido mais forte” – conclui, com o rosto voltado aos próprios pés.

“Eu deveria ter ido embora o quanto antes” – conclui, com o rosto voltado aos próprios pés.

“Eu deveria ter me comunicado cegamente” – conclui, com o rosto voltado aos próprios pés.

O celular toca. É Cristina, a amiga megera.

– Jorginho? Onde você está?

– Estou em casa. Fui embora antes de todo mundo.

– Você sabe o que aconteceu? – pergunta ela, alterada.

– Não, o que houve?

Nesse instante, ela chora desesperada e não controlando a respiração, diz:

– Augusto se trancou no banheiro e deu um tiro na cabeça.

Silêncio.

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a ligação cai.

Com o olhar fixo num ponto que ninguém saberia identificar, ele se escora na parede atrás de si. O celular toca novamente, dessa vez é Angélica, a anfitriã. Mas antes que eles dissessem qualquer palavra, ela também volta o rosto aos próprios pés, descalços e sujos de sangue.

 

 

 

 

 

 

 

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Antônio LaCarne é cearense, nasceu em 1983. É autor de “Salão Chinês” (Patuá, 2014), “Todos os poemas são loucos” (Gueto Editorial, 2017). Participou das coletâneas “A Polêmica Vida do Amor” (Oito e Meio, 2011), “A Nossos Pés” (7Letras, 2017) e “Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Seus textos estão presentes em revistas e suplementos literários, além de ter poemas publicados na Colômbia. E-mail: antonio.lacarne@gmail.com

 

 




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