Autoajuda pelo método Truffaut


.

O amor e também seus arredores – como as paixões ou até mesmo uma galinhada lírica – se move graças a um único combustível: a dificuldade. Eis a gasolina azul dos que amam ou tentam. Dos que se apaixonam ou tentam. Dos que perseguem um pedaço de beleza mundo afora, como o bravo Bertrand de “O Homem que Amava as Mulheres”, filme e livro do xará François Truffaut (1977).

Discorro sobre o tal combustível por ter esbarrado, dia desses, com o site que permite o envio de mensagens, via e-mail, entre pessoas que se paqueram no trânsito – que não é o meu caso, pedestre convicto e inveterado discípulo do velho Johnny Walker. Pois os tais sites podem resolver, na velocidade de uma ejaculação precoce, o drama inicial de Bertrand na citada película. Qual graça há em eliminar os pequenos nós que nos levam aos bons alvos? No amor, de nada adianta “solucionáticas”, só “problemáticas”, para inverter o aforismo de Dadá Beija-Flor.

Estava o jovem Bertrand na lavanderia de mademoiselle Carmem, sua chegada, quando avista as pernas – só o par de pernas da “esplêndida desconhecida”, como diz o moço – e enlouquece. A bela dona desaparece e ele só tem tempo de anotar a placa do veículo em um maço de Gitanes: 6720 RD 34.

O bicho endoida a cabeçorra. Vai no Detran local e tenta convencer os burocras da necessidades do nome da proprietária do veículo que evadiu-se. Nada feito, a França é uma Pátria séria e preserva a privacidade dos filhos seus. “Se a pessoa tivesse batido no seu carro, ainda vá lá, pois a sua seguradora poderia ter acesso aos dados da pessoa”, ouviu, oba!, mais ou menos assim, de outro burocra gordinho com feições de Balzac dos Pobres.

Os olhos de Bertrand brilharam como nunca. Não teve dúvida: no estacionamento mesmo cuidou de estilhaçar o farol traseiro e o pára-lama  do seu Renault (ou Pegeout, velho Otto?) contra a mureta. Provocada a batida, retoma o labirinto da burocracia para tentar o reencontro com as esplêndidas pernas desconhecidas. Não havia visto sequer o rosto da moça, numa prova, como tem discursado este mal-diagramado que vos fala, que mulher é metonímia, parte pelo todo -basta uma omoplata, um rádio, um perônio, um queixo, uns braços, uns pezinhos… para que nos apaixonemos.

Só sei que vai lá, vem cá, guichês e mais guichês, advogado no meio, um buruçu danado, e o jovem Bertrand finalmente se vê diante da sua perseguida. Uma hora de café e conhaque depois…  descobre que não está diante da esplêndida, mas da sua prima, proprietária legal do veículo. O par de pernas, que atendia pelo batismo de Marianne, já deixara a cidade, de volta a Montreal. Não que o nosso herói não tenha apreciado uma metonímia qualquer na prima. Muito pelo contrário. Gostou e mutcho, mas…

É que no trapézio do cocuruto já balançava outra ideia: Bernadette, a recepcionista de uma locadora de carros onde Bertrand esteve na sua busca pela identidade do par de pernas. “Se tiver algum problema, venha me ver”, dissera a moça na ocasião. Lá ia Bertrand, novamente com o coração despedaçado.

Mas sempre movido pelo metanol de alguma dificuldade.

A boa conquista amorosa nunca dependerá do avanço tecnológico, dos miojos sentimentais, da “multidão sem ninguém” (MSN etc), dos serviços profissionais, caso dos sites de encontros ou placas, e sim das travas e lombadas do caminho.

A boa conquista, amigos, nunca será uma corrida de 100 m livres. Será sempre uma corrida com barreiras. Às suas marcas, senhoras e senhores!

 

 

 

 

 

.

Xico Sá é jornalista e escritor. Nasceu no Cariri, foi criado no Recife e vive atualmente em São Paulo. Escreve para a  Folha de São Paulo, revistas Trip e Tpm, entre outras publicações. E-mail: xicosa@uol.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. CHICO LOPES, É verdade. É outro Chico que aqui afirma: esses obstáculos todos é que tornam a busca apaixonante. E é como num sonho – há sempre coisas banais e exasperadoras deixando o buscador perdido no meio da busca, ainda mais doido por encontrar essa coisa indefinível. Um palminho de rosto, uns olhos meio verdes meio dourados, um pescoço, uma clavícula, sabe Deus, e a coisa passa a ser almejada como um absoluto. Valeu, Sá. E Truffaut amou as mulheres como ninguém…
    12 julho, 2012 as 10:32

Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook