As verdades de um tropicalista


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Ao tempo em que sai a segunda edição de “Verdade Tropical”, o polêmico livro de Caetano Veloso, lembro que ao ler a primeira edição fiquei com a sensação de que ficou faltando alguma coisa. De fato, o seu conteúdo é incisivo e fundamental para quem quer conhecer mais a fundo a história dos movimentos musicais brasileiros, principalmente dos anos 60. Caetano carrega nos detalhes ao abordar esse período e são justamente nesses detalhes que estão as desigualdades do livro. Até o seu retorno do exílio em Londres e o lançamento de Araçá Azul há muita riqueza de informações nos fatos narrados. Depois, a narração passa a ser feita numa velocidade desigual em relação aos capítulos anteriores e o autor deixa de expor de forma mais crítica uma época também importante em sua carreira musical – que inclui as décadas de 70, 80 e 90. Fatos importantes envolvendo seu nome são mencionados superficialmente, como as famosas patrulhas ideológicas em relação a sua obra nesse período. Outros foram ignorados, como o programa que fez para a Rede Globo em parceria com Chico Buarque.

Não que isso comprometa a qualidade e a importância da obra. Pelo contrário. Verdade Tropical é um livro muito bem escrito e sem qualquer pretensão de ser uma obra de arte. Até porque é escrito no gênero autobiográfico. A narração é em primeira pessoa e Caetano Veloso se limita a contar o que viu e viveu pelo seu ponto de vista. É a sua versão pessoal dos fatos, que pode ser contestada por quem viveu aquele período e que tenha seu nome incluído em alguns acontecimentos narrados. Como o episódio relatando o dia em que Geraldo Vandré chamou de “merda” de forma brusca uma música cantada por Gal Costa para amigos num barzinho. “Ele ainda quis argumentar dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional, mas não permiti que ele concluísse o discurso e, gritando, exigi que nos deixasse, ressaltando que ele ao menos deveria ter sido cortês com Gal Costa”, relata.

Nasceu daí uma inimizade pessoal entre os dois astros da música popular brasileira, conforme confessa o próprio Caetano. Está também nessa rivalidade não endossada pela imprensa na época (na verdade, tentaram colocar em lados opostos Caetano e Chico Buarque) uma das razões do livro. O artista baiano utiliza as desavenças com Vandré como mote para desfiar um rosário de lamentações ao tratamento que foi dispensado aos tropicalistas no nascedouro do movimento. Já no exílio, quando recebe Roberto Carlos em Londres, arremata essa mágoa. Para ele, o Rei representava muito mais para o Brasil do que os milicos, a embaixada do Brasil em Londres e do que os próprios jornalistas e intelectuais de esquerda, “que queriam agora nos mitificar”.

Verdade ou não, os tropicalistas tiveram a sua vez no cenário da pop-art brasileira. O livro procura afirmar a importância desse movimento para a nossa cultura. Não em oposição à Bossa Nova ou à música de protesto liderada por Geraldo Vandré. Muito menos em protesto contra os tímidos acordes de rock’n’roll que saíam das guitarras da turma da Jovem Guarda. Musicalmente, o movimento tinha a pretensão de valorizar essa mistura de ritmos tão comum à nossa cena musical. E de certa forma conseguiu. Não é à toa que hoje convivemos, democraticamente, com axés, sertanejos e pagodes. Se não há qualidade, também já não há mais aquela carga forte de preconceitos em relação ao gosto musical do vizinho. Esse é, sem sombra de dúvidas, o maior legado do Tropicalismo: expor com inteligência e senso crítico os diversos países que existem dentro do Brasil.

Sendo assim, Verdade Tropical cumpre seu papel, enquanto resgate de uma época que se gerou frutos e discípulos, também provocou discórdias e polêmicas. Acima de tudo teve a coragem de mostrar a incoerência das esquerdas e a hipocrisia de alguns setores em nossa briosa imprensa. Temperado com tudo isso o narcisismo baiano, que antes de irritar chega a ser comovedor. Também precisamos amar a nossa terra e os nosso valores, assim como Caetano reverencia a Bahia.

 

 

 

 

 

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Linaldo Guedes é jornalista, poeta e mestre em Ciências da Religião, nascido em Cajazeiras, alto sertão da Paraíba, em 1968. Como jornalista, atuou nos principais órgãos de comunicação da Paraíba e foi editor do suplemento literário Correio das Artes por seis anos. Como poeta, lançou os livros “Os zumbis também escutam blues e outros poemas”, “Intervalo Lírico”, “Metáforas para um duelo no Sertão” e “Tara e outros otimismos”. Lançou, ainda, “Receitas de como se tornar um bom escritor”. E-mail: linaldo.guedes@gmail.com

 




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