As Últimas Palavras


……………As Últimas Palavras: agoridade dos altos e baixos

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A contemporaneidade é marcada pela falta de tempo, pois essa é a era da Internet, dos celulares, dos videogames, tablets, objetos que trazem, em suas estruturas tecnológicas, o atendimento ao acelerar das coisas e do tempo; e, dentro deste quadro, se inclui a comunicação entre as pessoas. Mas, paradoxalmente, o tempo que se ganha ao deleite das relações sociais pode, ao contrário, diminuir/esvaziar os encontros.

Segundo Aleilton Fonseca[1], a poesia contemporânea surgiu no processo histórico em que se deu o surgimento das grandes cidades. Naturalmente, revolucionaram-se as relações entre pessoas, e, desde então, esse processo veio se desdobrando e hoje alcança a era globalizada que — embora preze pela velocidade e pela urgência — não consegue calar a poesia, essa arte que demanda tempo para leitura e fruição, pois
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A poesia quer subir em um palanque

E gritar palavras sem piedade

Acusar o poder dos verbos mal usados

Que na boca infame de alguns se propagam

(KALLARRARI, 2013, p. 26).
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E como a poesia resiste às crises e atravessa as eras, chega até nós As Últimas Palavras, de Celso Kallarrari, seu terceiro livro de poemas, que traduzem os sentimentos de desatino e agonias, leveza e dureza, inconstância, falta de rumo, consequências das muitas urgências atuais, do esfriamento das relações, dos silêncios da alma e da corrupção dos discursos. Ao se refletir a este cenário caótico e desumanizante em que vivemos, os poemas de Kallarrari, aqui reunidos, evidenciam as dificuldades que o sujeito contemporâneo tem de se adaptar ao sistema vigente e viver estas quebras, estas rupturas. Para tanto, o poeta busca traduzir —  em versos, estrofes,  às vezes, ritmadas, outras não —, palavras carregadas de sentidos e imaginação.

As Últimas Palavras pertencem a um conjunto de obras que nos permite adentrar numa rede de significados, onde, de forma convergente, a beleza e a sutileza se estreitam, mas, antagonicamente, também os dissabores que se nos apresentam, cotidianamente, como sendo normais e dignos de serem aceitos. Nesta obra, o autor propõe uma escrita poética, que mescla temáticas instigantes da contemporaneidade, consoante a tradição, sempre que a ela recorre. Compõe-se de uma série de poemas que revelam, na reflexão metalinguística, filosófica e literária, o papel e função da poesia na formação do homem e no seu processo de humanização/desumanização, a partir de títulos, em letras iniciais minúsculas, a exemplo de  “a poesia precisa sair das calçadas”, “a crônica”, “o poema”, “um best-seller” e “meus últimos versos”.

Os poemas evidenciam temáticas plurais que abarcam o hibridismo cultural, a fragmentação do homem e seus valores numa análise crítica sintomática da paisagem caótica do mundo contemporâneo. Entretanto, esta poesia — por conta de sua força expressiva — permite ao leitor acessar outras dimensões significativas que o elevem espiritualmente e despertem nele, uma consciência reflexiva, isto é, mais crítica sobre o estar no mundo, para além das aparências e das certezas estabelecidas.

Como Kallarrari é um padre-poeta ou poeta-sacerdote, veste suas palavras de forma que as elas aglutinam o lírico-amoroso, o lírico-religioso ao lírico-político-social, numa simbiose de diálogos que expressam um espírito inconformado com o estado desigual no mundo capitalista. Além disso, há a preocupação com o espírito mercadológico, que encobre o olhar pleno e deixa no ar certa aura melancólica, diante de tantos desajustes de caráter e ausência de postura ética entre os homens.

Toda a obra é perpassada por uma leveza de propósitos poéticos, que implicam num perfil e elegância estéticos de escrita, assinalado por um estado de alerta, um incômodo, um espírito inconformado, diante das mais diversas, antigas e modernas tragédias humanas, pois para o poeta
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Guernica é aqui.

É um cachimbo exalando fumaça.

Está repleta de tristes e violentos,

De fascistas pós-modernos.
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Guernica é uma aldeia global,

Vítima dos pensamentos arsênicos,

Que pintam o céu de branco.

Nela, só há choro, dor, desilusão (p. 51).

 

“Guernica” aponta a uma leitura atualizada da famosa pintura de Picasso, distribuída em fragmentos que se tocam pela dureza e crueldade, uma vez que viver, nesse mundo, é algo difícil. Tem-se a impressão de faltar o ar, elemento imprescindível ao viver, pois, no início do poema, o cachimbo e a fumaça apresentam-se como objetos que impedem o respirar tranquilo. Semelhantemente à vida moderna de caos, terrorismo e guerras, no quadro de Guernica, todos os seres representados têm a boca aberta como representando uma dispneia coletiva, além dos olhos voltados a uma nesga de luz, que do alto clareia e resplandece seu brilho em meio às sombras, à dor e à morte. Neste caso, ao ler o quadro de Picasso e fazer uma correlação com o mundo atual (essa aldeia global), “marcado pelo choro, dor e desilusão”, é perceptível uma força suprema capaz de iluminar o mundo, torná-lo habitável e habitat possível a todos.

Somam-se a estes painéis — quadros pintados pela poética de Kallarrari, a partir de uma linha evolutiva de poemas —, a fé do poeta de que há uma saída para o mundo, tanto no “poema”, em seu aspecto metalinguístico ou enquanto metáfora do ser humano, quanto na crença no ser supremo e no amparo em Jesus como seu mestre e guia.

Nessa perspectiva, é possível encontrar poemas como “a lógica da criação”, “os teus pés Senhor”, “os últimos dias”, textos que traçam e sustentam uma visão que vai desde a gênese do mundo até as profecias apocalípticas, anunciadora dos tempos finais. Desse modo, o sagrado e profano, divino e o humano se tocam e se entrelaçam, deixando uma relação de completude e inteireza — necessárias a uma vida plena de realizações.

Ademais, estão presentes, na obra, os poemas “o prado”, “fazenda cascata”, “as bundas” e “alcobaça” (texto que intertextualiza com o poema “Garota de Ipanema” de Vinícius de Moraes); estes localizam, geograficamente, o poeta no Extremo Sul da Bahia: “Como esquecer-me de ti, ó Prado!/ Um campo enorme no mar/ Se tua saudade é meu fado,/ Pois ao passado não posso voltar” (p. 79).

Em “as bundas”, poema carregado de significados sobre a temática da festa baiana carnavalesca, o autor carnavaliza, destronando a visão midiática da sedução barata e da anticultura da bunda televisiva, que, ao invés de valorizar a beleza do bamboleio — característica peculiar da descendência afro —, repercute a dimensão da desvalorização feminina, apontada como uma mercadoria sexual e de exportação.

A parte lírica amorosa ora descortina os sentidos da alma do homem, ora evidencia os desejos carnais, como ser partícipe, e a realização plena no sentido e no jogo do toque e da troca sensual e romântica, aspectos perceptíveis em “declaração”, “por ti, eu sou peixes” e “amanhecendo”: “E eu orvalho em teu corpo/ E tu fecundas em mim/ E o mar nos entendendo” (p. 43).

Sobre o entendimento da nova conjuntura do Brasil e do mundo, o poeta interpreta e reconhece os arroubos e as fragilidades através de poemas como “maniqueísmo”, “a visita”, “a fila”, “brasis”, “o golpe” e, principalmente, “provérbios” — poema híbrido e plurissignificativo:
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Este é um poema que grita

Este é o grito dos países excluídos;

Este é o grito de todos os países juntos.

Não é o grito pela guerra;

É um grito de desabafo;

É um grito de quem denuncia

As injustiças, desigualdades e violências sociais.

É um grito de quem anuncia a liberdade

Um novo tempo, os direitos iguais.

(p. 86).

 

Neste texto, percebe-se que o poema remete a metáfora do homem, que sobrevive, apesar das intempéries, porém, precisam sair das calçadas, ganhar o mundo, elevar a voz, conquistar os seus direitos, para ser ouvido, reconhecido e valorizado.

Também a criança foi incluída como temática nesta obra, que toca no desalento do homem, na dissolução do sujeito e nas suas tantas omissões, como a de ser responsável pelo futuro através das suas ações presentes, diante do quadro de negligências, expresso em “o menino e a casa”, “tancredo” e “destino”.

Outro aspecto importante refere-se à inserção da mulher na obra, primeiro através do reconhecimento de Maria, como mãe do filho de Deus, e, por isso mesmo, digna de reconhecimento e exaltação, mas também, como intercessora das dores do mundo, amparo de todos os filhos e filhas, porque conhece a dor como ninguém, uma vez que a crucificação do seu filho, fê-la experimentar da mais profunda das dores, como se nela fosse. Entretanto, supera a malignidade dos homens pela sua capacidade de transcender do plano terreno das mediocridades para o outro, onde nasce a vida e não se reconhece a morte como fase derradeira, pois é possível o ressurgir. Pode-se observar essa visão nos poemas “na mesma cruz”, “a lógica da assunção” e “a mesma paixão”.

No poema “claralina”, se inclui uma linha de transição entre a evolução da menina e a chegada da mulher, apontando a pobreza dos laços entre estas e o mundo, num tom de alerta acerca da desvalorização da mulher como ser que, ingenuamente, se torna apenas objeto do desejo da pobreza da alma humana, semelhantemente, à Clara de Caetano Veloso, poema que segue a mesma linha de discussão.

Os poemas “segredo” e “tereza” trazem outra roupagem de sentidos, pois as mulheres ali representadas, traduzem a singeleza e o calor humano, que elas emanam em suas ações mais profundas do toque sobre os homens, que como filhos e/ou esposos gozam do seu cuidado constante.  Diferenciam-se, entretanto, das mulheres (mães) do poema “destino”, que se mostram frias nas relações com o sêmen, com o feto e futuro filho. Em “tereza”, o autor alude ao texto de Bandeira com o mesmo título, embora haja uma troca de s e z, como que caracterizando o novo jeito de olhar, visto que aqui se revela como mãe do eu-lírico e do poeta e transcende os limites humanos e ganha as dimensões do mar, do infinito. Nesse sentido, “tereza” é comparada à Maria, na graça dar à luz e marcar o rebento pelo afago, pelo cheiro, pela alegria, pelo amor.

Enfim, As Últimas Palavras trazem o sentido do instante, do agora, do imediatismo, que não é definitivo, que não é o último, mas o pronunciamento que não só revela e desvela o momento presente, o hic et nunc — com todas as suas nuances, possibilidades, fragilidades —, mas também o seu lado cruel, desumano, sem chão que se aprume e sem teto que se abrigue. EstAS Últimas Palavras trazem, sutilmente, a agoridade dos altos e baixos, dos poderes, dos deveres e do caos, em trânsito, que enreda e desenreda valores; que refaz e desfaz as coisas, que constrói e desconstrói  a vida, pois
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Num só grito, desterro o que desconheço

Daquilo que pensava que era num tempo indiviso

Mas o tempo desmarca a vida do homem

O tempo é tão mesquinho com a gente

E nos rouba as palavras,

Corta e entrecorta a nossa vida

(p. 108).
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Elas, As Últimas Palavras, têm a face do comunicável e do incomunicável, do emudecimento, do desenlace das relações e das certezas necessárias que não chegam, porque já não cabem utopias. Mas há também um firme propósito explícito no reconhecimento da incerteza, nos reveses da vida estética, sem louros, sem heróis e sem tesouros; e na identificação do caos, do egoísmo, da descoberta dos inúmeros significados, escondidos e esmagados.

Neste livro, As Últimas Palavras, vazias e cheias, são parecidas às palavras de Cristo, pregado àquela cruz, na hora da agonia, no momento derradeiro: Pater, dimitte illlis non enim sciunt quid faciunt (p. 89). Aparentemente, não dizem nada, mas insinuam a possibilidade de muitas pontes, ligando o ser humano sedento (de amor, de fé, de esperança, de confiança, de segurança, de paz, de fraternidade universais) do tempo de agora.

Antagonicamente, elas
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Não dizem tudo o que querem dizer

Mas também não dizem nada que não querem dizer,

Elas apenas seguem o tempo impróprio dos homens

Enquanto continuam tendo sede de humanidade

Na ânsia eterna de beber o oceano (p. 108).

 

 

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[1] FONSECA, Aleilton e PATRÍCIO, Rosana Ribeiro (Orgs) Cantos & recantos da cidade: Vozes do lirismo urbano. Itabuna: Via Litterarum, 2009.

 

 

 

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[Resenha publicada originalmente na Revista Mosaicum, n. 19, jan./jun. 2014, p. 21-25.]

 

 

 

 

 

 

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Arolda Maria da Silva Figuerêdo é natural de Caravelas, Bahia. É licenciada em Letras, com experiência na área de Letras – Literatura Brasileira, Teoria da Literatura, Língua Portuguesa e Literatura Portuguesa. Especialista em Literatura Brasileira e mestranda em Crítica Cultural. Professora de Literatura da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisadora do Projeto Representações das cenas urbanas e tipos humanos na Literatura baiana, do Grupo de Pesquisa Literatura e Representações Urbanas – CNPQ – UEFS. E-mail: figueredo.arolda@bol.com.br.

 




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