Lírico, mesmo que direto: Carl Adamshick


.
A poesia de Carl Adamshick nos encontra à deriva, entre objetos pessoais que flutuam na superfície e o repuxo que vem de um mar profundo. Ele tem um tom direto, e até mesmo seco, no desenho de suas frases: “Mesmo que o tenha amado, você não o amou”. Misturado a um lirismo voluptuoso, sem qualquer ferrugem do tempo: “Que a felicidade seja uma roda, um trono iluminado girando/ na imensa agulha da noite.” Sua poesia nos atrai nessa onda giratória, sem nos perguntarmos para onde estamos sendo levados. É uma experiência um pouco tensa, para ler de olhos bem abertos. Quanto mais espaço, para deixar-se cair, melhor.

O poema abaixo “Even Though”/“Mesmo que”, traduzi de seu primeiro livro, Curses and Wishes (Luisiana State University Press, 2011), que recebeu o Walt Whitman Award da Academy of American Poets. Carl Adamshick também faz um trabalho incrível como editor, por trás da pequena e prestigiada editora Tavern Books, em Portland, OR.

 

 

MESMO QUE

Mesmo que você tenha se arrependido de dormir
com ele, você não se arrependeu de dormir com ele.

Mesmo que o tenha amado, você não o amou.
Você tentou, mesmo sabendo que não tentou.

Você via outro mundo nesse mundo,
mesmo sabendo

que existia apenas um mundo.

A rua está fazendo aquela coisa que eu gosto com a lua.
Pássaros tomaram seus rumos entre as árvores.

Que a felicidade seja uma roda, um trono iluminado girando
na imensa agulha da noite.

Esquecemos de quase tudo
mesmo acreditando que vivemos para lembrar.

Torpor e significado
tocam nossos ossos, fazendo-nos chorar por estranhos.

Que seus segredos permaneçam escondidos
naquele lindo lugar coberto de sofrimento.

Vejo a solidão
como uma concha chamuscada de névoa num ninho alto
de lascas de metal, num dia frio

de outono sem vento, o sol estendendo
um mapa ancestral no chão seco
que não conseguimos ler, mesmo que
nossa língua venha da terra.

Senti a lesão profunda de uma sentença
e quero comer
no banquete de silêncio.

Que a traição seja o caminho de casa;

o retorno, um fardo de alegria.
Um certo des-desentendimento me deixou
aberto e fechado ao mesmo tempo, extasiado
com a magnitude das escolhas do mundo,

mas também à vontade,
flutuando na onda de luz desse ser.

Que o desfilar da esperança seja a coroação.
Que você vista a coroa do exílio.

Que você esqueça daquilo que mais ama.

A vida é e não pode ser
um fracasso.

Ódio dorme no desabrochar branco
em galhos de lilases no crânio.

Vivo no sobrenome da minha mãe.
Fui puxado para dentro como um oceano
puxa à luz do dia.

Chore, se precisar chorar,
sinta a perda como a única coisa profunda que nos une,

mesmo que você acredite
que cada um de nós esteja sozinho num campo infinito
de carvão.

Que os dados não tenham olhos
e que você continue atirando-os no veludo verde
da mesa.

Que você tenha a noite,
com seus galhos escuros, toda noite.

 

Poema de Carl Adamshick. Tradução: Flávia Rocha

Publicado com a autorização do autor.

 

 

 

EVEN THOUGH

Even though you regretted sleeping
with him, you didn’t regret sleeping with him.

Even though you loved him, you didn’t love him.
You were trying, even though you knew you weren’t trying.

You could see another world in this world,
even though you knew

there was only one world.

The street is doing that thing to the moon I like.
Birds have taken their paths through the trees.

May happiness be a wheel, a lit throne spinning
in the vast pinprick of darkness.

We forget almost everything,
even though we believe we live to remember.

Oblivion and significance
brush our bones, leave us weeping for strangers.

May your secrets remain hidden
in that beautiful place covered in suffering.

I see loneliness
as a shell of mottled smoke in a high nest
of metal shavings, a cold

autumn day without wind, the sun unfolding
an ancient map on parched ground
we can’t read, even though
our language comes from the earth.

I felt the deep bruise of a sentence
and wanted to eat
at the banquet of silence.

May betrayal be a way home;

the coming back, a burden of joy.
A general un-understanding has left me
both open and closed, overwhelmed
by the magnitude of the world’s choices,

but also, at ease,
floating on the light wave of its being.

May the defilement of hope be a coronation.
May you wear the crown of exile.

May you forget what you hold dear.

Life is and cannot be
a failure.

Hatred sleeps in the white blooming
lilac branch of the skull.

I live in my mother’s maiden name.
I was taken in as an ocean
takes in daylight.

Mourn, if you must mourn,
feel loss as the only profound thing we share,

even though you believe
each of us is alone forever in an endless field
of carbon.

May the dice have no eyes
and may you keep throwing them on the table’s
green velvet.

May you have night,
with its dark branches, every night.

 

Poem by Carl Adamshick.

Published with the author’s consent.

 

 

 

 

 

.

Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistas Bravo!RepúblicaCarta Capital, e  Casa Vogue, entre outras publicações. É autora dos livros de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005) e Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu o curso de Criação Literária coordenado pela escritora Veronica Stigger. E-mail: flavia@aicinema.com.br


Comente tambm via Facebook