Antero de Quental


POESIA COMPLETA DE ANTERO DE QUENTAL


………..Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte

 

POESIA I [Odes Modernas e Primaveras Românticas]

Lisboa: Abysmo | Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, Obras Clássicas da Literatura Portuguesa – Século XIX, Outubro de 2016, 332 páginas.

Este é o primeiro volume da edição crítica da Poesia de Antero de Quental, onde se reúnem os livros Odes Modernas (1865; 1875) e Primaveras Românticas (1872). Seguir-se-ão o segundo e terceiro volumes – Sonetos Completos (Maio de 2017) e Poesia Dispersa (Outubro de 2017). Pretende-se com esta edição disponibilizar ao leitor de hoje o conjunto da obra poética do Autor: a que ele publicou em livro e manteve; a que publicou em livro mas destruiu ou de algum modo alterou; e a que publicou dispersamente ou deixou inédita. No volume dos Sonetos Completos serão ainda republicados, com o necessário tratamento filológico, as traduções de alguns sonetos para alemão, italiano, espanhol e francês que Antero de Quental entendeu incluir na sua edição definitiva de Os Sonetos Completos (1890) – que, nesta edição, é acrescentada por recuperação dos restantes sonetos do autor que ele publicou dispersamente ou que, por diversas razões, entendeu eliminar, transformar ou mesmo destruir. Com a publicação do terceiro volume teremos finalmente reunida, em edição crítica e sob um critério comum, toda a poesia de Antero de Quental.

Tratando-se de uma edição crítica, dotada de todos os aparatos que permitem ao leitor interessado acompanhar o processo de construção/evolução dos poemas na esfera do autor, ela foi pensada e realizada a pensar igualmente no leitor comum nosso contemporâneo, interessado apenas na fruição do texto poético. Assim, o volume – e a colecção de três volumes em que se integra – considera duas partes estruturais para cada um dos livros que contém: o texto crítico, com grafia actualizada e sem quaisquer anotações, impresso em papel branco; e os aparatos, com as notas filológicas necessárias para cada um dos poemas, impresso no final do texto crítico e em papel de outra cor – dando assim ao leitor uma informação clara acerca dos respectivos conteúdos.

 

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ODES MODERNAS (extracto)

À HISTÓRIA

VI

Se um dia chegaremos, nós, sedentos,
A essa praia do eterno mar-oceano,
Onde lavem seu corpo os pustulentos,
E farte a sede, enfim, o peito humano?
Oh! diz-me o coração que estes tormentos
Chegarão a acabar: e o nosso engano,
Desfeito como nuvem que desanda,
Deixará ver o céu de banda a banda!

Felizes os que choram! alguma hora
Seus prantos secarão sobre seus rostos!
Virá do céu, em meio de uma aurora,
Uma águia que lhes leve os seus desgostos!
Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora…
E os pés de ferro dos tiranos, postos
Na terra, como torres, e firmados,
Se verão, como palhas, levantados!

Os tiranos sem conto – velhos cultos,
Espectros que nos gelam com o abraço…
E mais renascem quanto mais sepultos…
E mais ardentes no maior cansaço…
Visões de antigos sonhos, cujos vultos
Nos oprimem ainda o peito lasso…
Da terra e céu bandidos orgulhosos,
Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!

O mal só deles vem – não vem do Homem.
Vem dos tristes enganos, e não vem
Da alma que eles invadem e consomem,
Espedaçando-a pelo mundo além!
Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem
As auroras, um dia, e logo o Bem,
Que encobria essa sombra movediça,
Surgirá, como um astro de Justiça!

E, se cuidas que os vultos levantados
Pela ilusão antiga, em desabando,
Hão-de deixar os céus despovoados
E o mundo entre ruínas vacilando;
Esforça! ergue teus olhos magoados!
Verás que o horizonte, em se rasgando,
É porque um céu maior nos mostre – e é nosso
Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!

É nosso quanto há belo! A Natureza,
Desde aonde atirou seu cacho a palma,
Té lá onde escondidos na frieza
Vegeta o musgo e se concentra a alma:
Desde aonde se fecha da beleza
A abóbada sem fim – fé onde a calma
Eterna gera os mundos e as estrelas,
E em nós o Empíreo das ideias belas!

Templo de crenças e de amores puros!
Comunhão de verdade! onde não há
Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,
Uns para a luz… e outros para cá.
A li parecerão os mais escuros
Brilhantes como a face de Jeová,
Comungando no altar do coração
No mesmo amor de pai e amor de Irmão!

Amor de Irmão! oh! este amor é doce
Como ambrosia e como um beijo casto!
Orvalho santo, que chovido fosse,
E o lírio absorve como etéreo pasto!…
Dilúvio suave, que nos toma posse
Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto
O coração minguado… que admira
Os sons que solta esta celeste lira!

Só ele pude a ara sacrossanta
Erguer, e um templo eterno para todos…
Sim, um eterno templo e ara santa,
Mas com mil cultos, mil diversos modos!
Mil são os frutos, e é só uma a planta!
Um coração, e mil desejos doudos!
Mas dá lugar a todos a Cidade,
Assente sobre a rocha da Igualdade.

É desse amor que eu falo! e dele espero
O doce orvalho com que vá surgindo
O triste lírio, que este solo austero
Está entre urze e abrolhos encobrindo.
Dele o resgate só será sincero…
Dele! do Amor!… enquanto vais abrindo,
Sobre o ninho onde choca a Unidade,
As tuas asas de águia, ó Liberdade!

 

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PANTEÍSMO

I

Aspiração… desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa…
A isto chamo eu vida: e, deste modo,

Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!

A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus – seu olho baço

Foi feito para ver brilho e beleza…
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!

Sim, no rugido há vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente…

Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingénuo cantor que nos encanta…

Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mudo hino

Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo,

Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade…

É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana…

É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!

Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!

Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!

Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!

Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo

Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!

Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!

Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!

Essência tenebrosa e pura… casta
C todavia ardente… eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta…
Choras na voz do mar… cantas ao vento…

II

Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através dos soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.

Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando…

Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o livra cm extensões tamanhas!

Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,

Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!

Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!

Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;

Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;

Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse…
Já dominava o espaço, omnipotente!

Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o germe misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

III

Fecundou!… Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,

O pó cresce em mim… engrossa… alteia…
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!

Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está… sendo tamanho!

Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!

Surgir! surgir! – é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito…

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Eis quanto me ensinou a voz do vento.

1865-1874

 

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Mais informações e como adquirir a Obra, aqui.

 

 

 

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Luiz Fagundes Duarte é Filólogo e professor da Universidade Nova de Lisboa. Participou da edição crítica de Fernando Pessoa (Ricardo Reis), 1994; de Eça de Queiroz (A Capital!); editou também de Vitorino Nemésio: Poesia (1916-1940), publicado em 2006, e Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga (2003). E-mail: lfagundesduarte@gmail.com




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