Ahô-ô-ô-oxe


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Amador Ribeiro Neto (Caconde, 1953) é professor de Teoria da Literatura, poeta, contista, crítico literário e de música popular. O livro de poemas Ahô-ô-ô-oxe (2015) ganhou publicação doze anos depois de Barrocidade. Durante esse período, o autor lançou Lirismo com siso – notas sobre poesia brasileira contemporânea (2015) e Imagens & Poemas (2008). Além de maturar a própria poética por meio da leitura crítica da poesia de outros poetas em diversos ensaios e resenhas. Tudo marcado por um rigor ético e estético pouco comum em tempos de estilos requentados e facilmente consumíveis. E equilibrando-se entre o mergulho em si do cotidiano e a busca do universal da linguagem. Aliás, a linguagem é, sem dúvida, a matéria básica da poesia de Amador Ribeiro Neto.

O título do livro é o resultado da condensação trans-barroca e da montagem eisensteiniana entre a “voz de sereia longínqua chorando, chamando” da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos – “Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – yyy…… / Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – yyy……” – e a interjeição nordestina “ôxe”. Público e íntimo. Amplidão e microesfera. Língua Portuguesa e Nordeste. Pátria e região. Mar aberto e porto seguro. Todos aliados a Paraíba que abriga o poeta e fornece elementos à sua poesia sem cais. É o caso do “apôi / nordestino” do poema “zen-pessoense-paulistano”.

O poeta trabalha naquilo que a linguagem tem de mais material: a presentificação não convencional das letras sobre a página, seu desenho, sua arquitetura. O sentimento drummondiano do mundo permeia essa poesia em sua recusa à autorreferencialidade vulgar, na criação de um “eu retorcido” figurativizado nas palavras quebradas e nas torções mórficas e semânticas do verso. Uma poesia que exige um leitor não ingênuo, porém, vivente de um mundo também cindido, onde os sentidos surgem das fugazes montagens sintáticas e sonoras das letras. Refiro-me, por exemplo, ao poema “bandeira do meu partido”. A palavra “partido” (verbo e substantivo) é estilhaçada sobre a página. Podemos identificar alguns significantes da referida bandeira – “PT” / “AR” / “ID” / “O” – plasmando a desilusão partidária do sujeito poético. A bandeira está rota. O “ID” psicanalítico desdobra-se em “IDO”, passado, partido. E o sujeito segue sem esperanças. Sem perder de vista a universalidade do tema, seu caráter social, o conteúdo lírico promove o confronto da linguagem consigo mesma. “Meu partido é um coração partido”, diria Cazuza na letra da canção “Ideologia”.

Amador Ribeiro Neto faz isso também em “neopo(eitaporr)ético”, quando absorve o lixo lógico eletrônico, indicando que na poesia tudo nada cabe. Desse modo, o que se anuncia como hermético é convite e aboio, mesmo o inelegível da cultura, aquilo que a história e o social não dão conta e só consegue ser significado na arte. Nessa mesma clave, o metapoema “poesia esconjuro” é outro exercício bem realizado do dobrar-se para dentro da linguagem. O uso de uma escrita singular à internet, calcada na mistura de regionalismos, nas rimas internas e oralidade, tematiza o ofício do poeta hoje. Cito: “tuadobrinhaminhaliranossaprosacadêapo / rradapoesiacazzo // manda vê keu naum kero sabê // orra meu / vlw // íxi”.

Note-se que “poesia esconjuro” marca o centro do livro Ahô-ô-ô-oxe com “o que se diz ao editor na hora uroboru”, cujos versos “poeta copia poeta / poeta copia-se / poeta a si copia / palavra pia” refletem e refratam o poema vizinho. Ambos deslocando o lugar ainda sacro da poesia, do bardo. O leitor fica sem eira nem beira, nessa poesia aberta ao diálogo, às misturas, aos contatos. Movimentos já sinalizados no título do volume. O poema “o que se diz ao editor na hora uroboru” é antecedido por “ofício do poema”. Assim como “poesia esconjuro” é seguido pelo poema “repente entre repentistas”. É a poesia como núcleo do livro. É Amador Ribeiro Neto indicando o motor da luz de seu trabalho: “guardar / rimas / vogais / consoantes / nos armários”. Ou seja, o livro-todo é significado também pela montagem das partes. Se “o todo sem a parte não é todo”, como cantou Gregório de Matos, a escolha da distribuição dos poemas ao longo do livro auxilia eficazmente a sua apreensão: sua estética “neopo(eitaporr)ética”.

Em tempo: diferentemente das referências explícitas presentes no livro Barrocidade, quando grande parte dos poemas foi nomeada com o nome próprio de escritores, pensadores, cancionistas, elencando a paideuma de Amador Ribeiro Neto, em Ahô-ô-ô-oxe esses astros estão devidamente assentados, devorados, exigindo a atenção do leitor. O poeta dilui a saturação da urbe. Daí um sentimento do mundo em maturação. Lá é o assombro reverente aos deuses, aqui, raramente nomeados, os astros dançam orbitando a poesia. Eis o repente que o poeta engendra a partir dos motes dados pelas leituras e audições de sua formação. Sua busca por singularidade se orienta pela assimilação e devoração crítica. Se em Barrocidade já se anunciava essa lírica, como no caso do poema “saudades” – “assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim” –, essa voz parecia propositadamente sufocada pelo excesso de barulho da cidade, agora ela ressoa menos ruidosa no poema “música para meus ouvidos”. Portanto, não é à toa que o poeta abre seu livro citando Álvaro de Campos. O clima de Ahô-ô-ô-oxe é alimentado por um “úmido e sombrio marulho humano noturno” pessoano. Do fundo do barulho feio, o poeta encontrou gente no meio. O que há de gente no mundo é filtrado na linguagem, nos modos de apresentação gráfica do mundo. Ao invés do monólogo, há um concerto de vozes que exigem atenção e, no mais das vezes, conhecimento prévio.

Diante desses sujeitos desenganados, mas cheio de sensualidade, observamos o recorrente uso de letras minúsculas, mesmo nas primeiras letras dos títulos dos poemas. Esse recurso sugere a indistinção entre as letras e os fonemas, já que o conceito verbivocovisual é bastante trabalhado pelo poeta. Seja em “ao sul do teu corpo”, quando a sofisticada diagramação da palavra “península” mapeia o corpo do outro e localiza o ponto exato – “penis / nu / a / sul”, ou “peninsula nua” –, seja em “dádiva”, em que a distribuição das letras que formam o vocábulo “céu” triangula-se em “é / cu”. Insinua-se novamente o jogo entre a dessacralização da poesia e a fisicalidade do poema. A afirmação da pragmática, ou do corpo-alma, em detrimento da especulação metafísica.

É nesse direcionamento que entendemos a aparição de palavras compostas só por letras maiúsculas. Elas mimetizam o conteúdo dos poemas. Elas são o poema, já que forma é conteúdo. E também é quando o sujeito parte para o berro, para a vocoperformance da linguagem. Caso de “littera literatura”, poema que abre o livro e atua como grito de alerta contra quem ainda crê na pureza da língua: “SE PURA LITTERA ATUA / SEPULTURA-LITERATURA”; e “slonga à moda da casa”: “TROT / SKY / BON”; além do já citado “bandeira do meu partido”, entre outros.

Mas talvez seja “corpo a corpo consigo” o poema que melhor sintetize as filigranas proliferadas ao longo do livro. Cito: “quebrar / o // aparta / mento // de fora / de dentro // quebrar o / pensamento / sem lógica / com muito // (confina) feri (mento)”. É essa “lição augusta” (título do derradeiro poema do livro), essa “despauesia”, essa “poundesia” o que caracteriza Ahô-ô-ô-oxe. Além da voz da sereia, Amador Ribeiro Neto ouve a voz da musa e, como um privilegiado dessa audição musal possível apenas aos poetas, oferece ao leitor sua “canção transnordestina”, sua contra interpretação do mundo resultante do corpo a corpo da/na linguagem.

 

 

 

 

RIBEIRO NETO, Amador. Ahô-ô-ô-oxe . João Pessoa: Katarina Kartonera, 2015.

 

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é paraioca, professor de Cultura e Literatura Brasileira da UERJ, pesquisador de poesia e canção popular e colecionador de sereias. E-mail: leonardo.davino@gmail.com

 




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