Affonso Ávila


………………………Entrevista: Affonso Ávila

…………………………..by Guilherme Mansur

 

 

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“O poeta não é um ser solitário, mas sim um ser solidário”

 

O poeta mineiro Affonso Ávila, autor de “O visto e o imaginado”, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia de 1991, é também um dos mais importantes especialistas do barroco. Autor de textos que valorizam a era do barroco, talvez o período legítimo de um tempo que se abre à modernidade, o poeta lança o livro de ensaios “Minor-livro de louvores” (Rona Editora), que trata dos sinais, lugares e pessoas que marcaram a sua trajetória. O livro é uma espécie de exercício de afetividades. Mas o poeta Ávila é mais profundo do que o ensaísta. Afinal, o poeta fala a língua de todas as civilizações, torna o tempo presente, recria a linguagem por meio do ritmo, inventa a imagem de um mundo que nos diz respeito e que nos revela, de fato, o que somos. Como escreveu Octávio Paz, a história da poesia moderna é do “contínuo dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes intolerável da inspiração”.

 

Como é que você convive com a inspiração, essa inspiração intolerável?

Não sou um poeta que cultiva a inspiração. A inspiração é mais um estado de espírito consequente a uma série de reflexões, de sentimentos, de experiências. Não me julgo um poeta inspirado. Sou um poeta mais construtivo. Trabalho mais com a palavra pensada do que com uma palavra sentida.

A inspiração seria mais um problema para o homem comum do que para o poeta?

Sinceramente, acho que a inspiração, tal como ela é tomada, no sentido semântico, seja uma forma de impressionismo, quer dizer, uma coisa que vem de fora para dentro, uma inspiração. No caso da minha poesia, é uma poesia de expiração, quer dizer, é uma coisa refletida. Às vezes escrevo uma sequência de poemas em poucos dias, e às vezes gasto muito tempo em um poema. Então, não posso mensurar pelo tempo o processo poético. Sou um deslocado em relação à ideia de inspiração.

Você é um discípulo dos poetas da família de Paul Valéry e João Cabral de Melo Neto, que são poetas que tratam a poesia como uma ideia do imaginário?

Quando publiquei o meu primeiro livro, ainda tinha uma marca muito grande de sensações, de descobertas. Mas os críticos pressentiram, constataram que havia uma construção grande atrás daquilo. Então minha poesia se desdobra numa linha bem construtivista. Acredito que haja uma afinidade com o João Cabral, um dos grandes poetas da nossa língua, o maior poeta vivo de quem eu tenho recebido sempre uma atenção muito grande. Sempre que Cabral é chamado a dar um depoimento, ele sempre me distingue. Acredito que ele reconheça que tenho qualquer parentesco, qualquer identidade com aquilo que ele pensa realmente a respeito da poesia.

A poesia é devaneio, com método?

Talvez, no fundo, a poesia seja, como eu mesmo chamo um dos poemas do meu próximo livro, a lógica do erro. É uma ideia cartesiana. O poeta não é só coração. O Fernando Pessoa já dizia isso. O poeta é um fingidor, ele pensa uma idealidade, racionaliza aquela idealidade e transmite essa idealidade através de uma forma.

Qual a diferença fundamental em ter a poesia e a prosa?

A prosa é, normalmente, um discurso lógico. A poesia é um discurso com sequência sintomática definida. Bem, todos os dois são discursos. Um é discurso mais objetivo e o verso é um discurso mais subjetivo. O poeta é um criador de linguagem. E ele ao criar  acrescenta alguma coisa. Eu já disse em texto que o poeta acrescenta realidades à realidade.

O poeta é aquele que está à margem.

Você estando à margem, está ao mesmo tempo centrado, está à margem porque existe um centro e você sai dele para ver ou então refletir sobre esse centro.

Quando você fala que um poeta vive à margem, eu penso no mundo subterrâneo, como se o mundo fosse vazado subterraneamente pelo poeta.

Eu ligo muito o poeta aos mergulhadores. O homem está sempre no fundo do oceano. Essa água revolta, que é a vida, o Universo. O poeta está sempre lá no fundo, e ao mesmo tempo ele vem à tona no momento certo e dá o recado dele. Ele tem um compromisso muito íntimo, muito pessoal. É um compromisso que é que com toda a humanidade. O poeta não é um ser solitário, mas sim um ser solidário. Ele é solidário porque trabalha com a língua e nada mais solidifica, nada mais faz o homem comunicar, viver em comunidade do que a língua. O poeta é um ser comunitário.

Fala-se muito da inutilidade da arte, da poesia.

Todo artista cria em estado de estesia. Não é problema de inspiração. Estesia é uma maneira específica de comportamento, é um estado momentâneo de vibração, talvez interior, talvez até física do homem. Essa é a estesia. Ela é que comanda a arte e a poesia está dentro disso.

A poesia é a revelação do mundo profano, sagrado, do mundo abandonado.

Todas essas lendas que estão afogadas na vida do homem refluem nesse açude, nesse grande oceano. Eu lembro mais uma vez Fernando Pessoa, um grande mestre, o maior poeta de nossa língua, quando fala que o mito é o nada que é tudo. Nós trabalhamos com a lenda, com aquilo que está dentro de nós como herança de pensamento quase impressentida.

O prosador usa a linguagem mais como instrumento de crítica e análise, enquanto o poeta deixa o pensamento em liberdade.

O prosador usa também como narrativa, descrição e reflexão. Quer dizer, ele foge um pouco dessa linearidade do discurso estrito, prosaico. A poesia já não tem fronteiras, nós estamos na época da multimídia, da intersemiótica. A poesia sempre esteve muito à vontade com a prosa. Os grandes poetas da fase moderna da poesia já indicavam esse caminho. A poesia de Walt Whitman quebra inteiramente com o problema do verso, com a medida do verso e o inglês sempre foi muito rigoroso com isso.

“Minor_livro de louvores” é um exercício de sensibilidade, de afetividade. É o primeiro livro de memórias?

É o primeiro livro de uma série de seis que pretendo ainda publicar. Esses cinco novos volumes, eu tenho ainda tempo bastante para lançá-los. E comecei pelos louvores. O “Minor” é um livro de louvores.

O tempo é uma invenção do imaginário ou da memória?

Não acredito que o tempo seja uma invenção da memória. Há um tempo interior que mistura o passado, presente e futuro. Então esse tempo interior de que fala o Bergson, é um tempo fora da cronologia. Há o tempo cronológico, o tempo histórico, o tempo de hoje. Mas o tempo é imponderável. O tempo não é só de um homem, o tempo é de uma memória coletiva. Sou apenas presença, um elo nessa memória que vem de longe. A vida é infinita. E somos apenas um instante, uma passagem que a gente, o criador, o poeta que fazer marcar. Esse meu livro fala disso, ou seja, dos flagrantes de emoções, flagrantes de lugares, flagrantes de obras de arte, flagrantes de intimidade.

O barraco é uma pérola imperfeita, como sugere a definição?

Há uma controversa muito grande sobre o problema semântico da palavra, sobre a origem da palavra, muitos acham que o barroco viria de uma forma de raciocínio escolástico e também um  raciocínio meio encurvado. O barroco encarna a própria beleza. Eu vejo o barroco como uma mulher. Ela tem que ter movimento e tem que ter curva. Então eu acredito que seja a própria beleza.

O barroco seria o período legítimo que abre o tempo da modernidade?

Acredito que o barroco é um conflito entre um momento de transformação, de invenção, de modificação do pensamento do homem e uma vontade de permanência de uma ideia, de um sentimento que é o caso da religiosidade medieval. O barroco é uma vontade de continuidade do passado dentro da modernidade. O barroco é um momento determinado e também uma marca no nosso caso, no caso brasileiro e latino-americano, de um tempo que define uma psicologia, uma maneira de ser, de estar, de ver o mundo.
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[Jornal do Brasil, caderno “Ideias/Livros”, 29 de junho de 1996]

 

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Pedro Maciel é autor dos romances “Previsões de um cego”, ed. LeYa, “Retornar com os pássaros”, ed. LeYa, “Como deixei de ser Deus”, ed. Topbooks e “A hora dos náufragos”, ed. Bertrand Brasil. Página do escritor http://www.facebook.com/pedromaciel.j




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