A voz do ventríloquo


[Desenho de Carlos Carah]

 

.

A Voz do Ventríloquo é o sétimo livro de Ademir Assunção. O quinto de poesia. O primeiro pelo Selo Edith (capitaneado por Marcelino Freire e Vanderley Mendonça).

O lançamento em São Paulo será nos dias 14 (Mercearia São Pedro – Rua Rodésia, 34 / Vila Madalena – a partir das 20h) e 15 de maio (Estação Caneca – Rua Frei Caneca, 384 / Consolação – a partir das 19h30).

O lançamento do dia 15 será seguido por show de Ademir e banda, a partir das 22h – e integra a programação do projeto Cemitério de Automóveis 30 Anos – Artes do Subterrâneo.

A Voz do Ventríloquo foi premiado no Programa de Ação Cultural (ProAC 2011) para publicação de livros inéditos, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.

 

 

.

A VOZ DO VENTRÍLOQUO

press-release

Prezado(a) leitor(a)

 

Você tem em mãos uma bomba, prestes a explodir. Pode ser daqui a uma hora. Pode ser daqui a uma semana. Pode ser daqui a dois anos. O detonador está acionado e ninguém sabe o momento exato da explosão.

Sim, “A Voz do Ventríloquo” tem uma dose altamente explosiva de inquietação, melancolia, lirismo e vingança.

Vingança contra o Sistema de Babilônia (no dizer do antigo poeta) que nos quer bois conformados rumo ao matadouro. Mortinhos da Silva. Com as contas pagas e uma enorme dívida com a própria vida.

Lirismo para aqueles que conseguem ouvir os blues das baleias no fundo mais fundo do Mistério. E para os que não conseguem também.

Melancolia por uma atmosfera cada vez mais depressiva ao redor, marcada pela falta de oxigênio intelectual e dominada por ideias descartáveis.

Inquietação com o esvaziamento das palavras, que vão perdendo o sentido no pregão do consumo, no hiper-mercado da fé, no mega-shopping da ciranda financeira.

Há, neste livro, uma carga altamente explosiva de musicalidade, de imagens inesperadas, de críticas, critérios e delírios.

A bomba agora está nas suas mãos. Se vire.

 

assinado: O Ventríloquo

 

 

 

 

O OLHO AZUL DO MISTÉRIO

 

desço dos céus para beijar

os lábios quentes da fera — desço,

vejo dragões pastando na grama

azul, incêndio nas cortinas

dos apartamentos — desço,

escuto um coro de crianças

bêbadas, vozes batendo no casco

do navio fantasma ancorado

no Cais da Última Utopia — vejo,

sinto na pele os dedos de uma androide

aflita, quase em pânico, mãos

de neblina, pálpebras que se fecham

toda vez que toco o bico dos seios — escuto,

encaro olho no olho o olho

do Grande Gavião Terena, leopardos

lambem o leite da Via Láctea, saltam

com garras envenenadas sobre

as penugens de Vênus, penetram

o cu da lua, pregas se rompem,

espelhos se estilhaçam e rasgam a carne

dos banqueiros que sugam o vinho

da vida com canudinhos cedidos

pelo senhor McDonald — sinto,

e por isso escrevo, e por isso deixo aqui

palavras escritas na água, na carne

dos que sofrem, escrevo com sangue, escrevo

com porra nas paredes das salas

iluminadas com a luz monótona dos aparelhos

de televisão, escrevo com mijo nos muros

das cidades do Ocidente, convoco hidras,

provoco tumulto, estrelas sentam-se no sofá

e tomam café marroquino, os sentidos

mixam o onde e o quando na câmara

oca de ecos, a pele se arrepia, relógios

praticam saltos ornamentais em piscinas

vazias, neve ao redor dos cabelos, chove

na terra inteira, dedos de açúcar tocam

a escama dos peixes, o corpo todo pressente

a presença de um deus, e você finalmente encara

o úmido olho azul do mistério

 

.

O TRIUNFO DO GENERAL MANDÍBULA


faca entre os dentes, trinados

de gralhas nos ouvidos, mergulho

no rio dos sonhos, desço ao mundo

dos mortos, pirata na proa

do navio fantasma, golfinhos

saltando no mar revolto, demônio

vestido com roupas de fada, buraco

esculpido na camada de ozônio, ninguém

responde ao chamado, vozes

estranhas na secretária eletrônica,

a agência do bradesco arde

em chamas, punks desfilam nas ruas

de copacabana, o caos ecoa nas ruínas,

escuras esquinas do inferno, pompeia,

são paulo, istambul, atenas, a moda

do outono é a decadência do inverno,

dizem que os profetas só predizem

desatinos, pássaros tenebrosos nublam

presságios, o cacto rubro desconhece

a flor do destino, é no silêncio

que os banqueiros multiplicam seus

ágios, quebram-se dentes, racham

mandíbulas, ossos estralam nas tumbas,

o vento varre os edifícios da cidade,

baleias destroçam submarinos, bruxos

eslavos rasuram signos mágicos, otários

neochics imitam macacos, cadelas

burguesas tomam no rabo, hackers

detonam a musa da TV a cabo, nada faz

sentido nessa névoa de bosta, lama

espessa subindo dos pés ao pescoço,

caronte enlouquecido brandindo

seus remos, vermes homicidas à espera

do almoço

 

 

JACK KEROUAC NA PRAIA BRAVA
.

sonhei com jack kerouac

sentado na varanda da casa

de waldemar cordeiro. eu acabara

de acordar e dei de cara

com aquele vulto imerso

na neblina. bem acima da copa

das árvores a lua cheia ardia

entre nuvens espessas, com sua

cara de gângster. eu disse: “ei, man,

onde é que vamos parar?” jack

deu uma longa tragada

no cigarro, fumaça branca na névoa

branca, e me estendeu

o copo de uísque.

continuou encarando a lua, pálido

como um fantasma. disse

que estava a bordo de um navio

mercante da marinha americana na costa

da indonésia até a semana passada.

perguntou se ainda havia hippies

nas ruas, feministas queimando sutiãs

em praça pública e negros

enforcados nos galhos de grossos carvalhos

no novo méxico. “oh, não, jack, isso

faz tanto tempo. agora eles mandam os jovens

negros pobres para a guerra no iraque.”

descemos até a mercearia da praia brava

atrás de umas latinhas de cerveja

e de uma garrafa de conhaque. no caminho

contei-lhe que leminski e itamar assumpção

estiveram nesta mesma casa no carnaval

de 1988. “oh, yeah”, disse jack. “os grandes

poetas são como as marés: engolem os

barcos dos imprudentes e lançam os destroços

na praia”. quando voltamos da mercearia,

minha filha de 16 anos lia jorge luis borges

e meu filho de 13 lia david goodis. nina

simone cantava just call me angel of the morning.

jack abriu uma lata de cerveja, bebeu

um longo gole olhando as folhas da mata

e disse a eles: “não deixem que os idiotas

calem sua voz. aquela voz que vem lá do fundo

de vocês mesmos. contem comigo

pro que der e vier”. minha filha

sussurrou no meu ouvido: “quem é esse

cara?” “jack kerouac”, eu respondi. “uau”,

ela balbuciou. meu filho levantou os olhos

do livro e gritou: “eddie acabou de acertar um

cruzado de direita na cara do leão de chácara”.

eu olhei para jack e em silêncio

fizemos um trato: “deixe-os viver. ainda é cedo

para contar-lhes sobre as mentiras do mundo”.

jack jogou pra dentro um bom gole

de conhaque e assentiu com a cabeça. a noite

estava fria. a lua continuava socando as nuvens

com sua cara de gângster mal-humorado.

 

 

A VIDA EM TECNICOLOR


quando ontem é onde, quase nada,

e o futuro está passando agora,

via satélite, bundas e bombas na tela plana

do menos, bem menos, a vida exposta

no salto do grilo na grama, as brumas,

grandes nuvens bordadas na retina calma,

calma, calma como a lua deitada

no pano branco estendido no falso

mármore frio, a lua, uma cadela

de raça peluda, como ursa, órions e névoas

entre touros de gases, minúcias, a pele

arrepiada pelas carícias, os toques, de dentro

o tempo nos dizendo a hora, vãobora

 

 

A ORIGEM DO MUNDO

(um esboço)

…………O famoso quadro de Gustave Courbet (1866)

 

 

sem isso, nada disso

nem eu, nem você, nem ptolomeu

nem a música das noites em perpétuo movimento

nem os arrepios de pele, nem o estrondo do raio

nem o som do vento

nem a rebelião dos beats, nem a caverna de platão

a caravana, a bonanza, o uivo do cão

a voz aveludada de chet baker

a orelha cortada de van gogh

os versos mais loucos de leminski

a revolta dos marinheiros no porto de helsinki

o soldado russo morrendo de frio

os labirintos, espelhos e tigres de borges

as pilhas de corpos nos ocasos de treblinka

os lábios entreabertos tocando de leve os mamilos

os braços arrancados da vênus de milo

a revolução cubana, os riffs de keith richards

o passo displicente da garota empurrando um carrinho de supermercado

as bombas caindo sobre dresden

a caravela ao léu no mar revolto

o último olhar do poderoso rei deposto

a dança mágica do velho tuareg

a cabala, o kabuki, o astrolábio

os engenhos da geometria celeste

a lágrima no olho do pai diante do jazigo da filha

a noite de são bartolomeu

os sinos repicando ao norte do himalaia

a beleza da menina deslizando na praia

o monge em zazen, os círios de belém

o ardente segredo de diadorim

o corpo profanado da heroína

o tabaco, o antidepressivo, as ruínas de hiroshima

nem as carícias mais íntimas

nem kafka, nem zappa, nem zapata

nem a lembrança do amor que se perdeu

nem cristo, nem cruz, nem deus, nem judeus

 

sem isso, nem isso

esse poema

: o fim e o início

 

 

.

 

 

 

 

 

.

Ademir Assunção é essencialmente poeta, mas também escreve ficção e trabalha como jornalista. Publicou quatro livros de poemas: LSD Nô (1994), Cinemitologias (1998), Zona Branca (2001) e A Musa Chapada (2008 – este em parceria com Antonio Vicente Pietroforte). Dois de ficção: A Máquina Peluda (1997) e Adorável Criatura Frankenstein (2003). Lançou ainda um cd de poesia e música: Rebelião na Zona Fantasma (2005). É editor da revista literária Coyote, junto com os poetas Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. E-mail: zonabranca@uol.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook