A vida de Felice


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Se Felice fosse uma menina obediente e educada, um pouco mais esforçada na escola e prestasse mais atenção no que a professora dizia e tirasse boas notas, seus pais demonstrariam a satisfação de ter uma filha exemplar — igualzinha à filha que todos os pais gostariam de ter — levando-a ao cinema pelo menos uma vez por semana e ao parque aquático pelo menos uma vez por ano. Felice poderia tentar falar mais baixo e não rir de qualquer bobagem e arrumar a cama sem que sua mãe pedisse duzentas vezes. Podia encurtar o papo-furado com as amigas ao telefone e diminuir o tempo que ficava na internet e assim sobrariam alguns minutos pra conversar mais com seu pai e podia ser que justo nesses minutos a mais ele dissesse que a amava muito e talvez perguntasse como havia sido o seu dia e mostrasse a foto dela que trazia na carteira, um pouco amassada de tanto exibir a filha querida aos demais.

Acontece que ela não era assim e chegava atrasada na escola porque sentia muito sono de manhã e enrolava o mais que podia para se levantar. Havia engordado comendo salgadinhos e bebendo refrigerantes, o garoto que ela gostava nem olhava pro lado dela e Felice era tímida demais pra chamar a atenção dele de alguma outra forma que não fosse ficando quieta e olhando pelo rabo dos olhos. Quase não via o pai porque ele morava com a nova mulher num bairro longe distante. Ele aparecia nos finais de semana, geralmente com a meia-irmã de Felice, que era mais nova e só gostava de ir ao zoológico. Não adiantava pedir pra ir ao cinema ou ao parque aquático porque ouvia sempre que ela precisava ter mais paciência com a irmã menor. Felice passava muito tempo sozinha em casa vendo TV, conversando no MSN e ao telefone e quando a mãe chegava do trabalho implorava pra que ela não ficasse fazendo tantas perguntas porque estava exausta e com dor de cabeça. A vida de Felice era essa e não outra e mesmo tudo sendo meio assim, meio calabresa, meio mussarela, a maior parte do tempo ela se achava feliz.

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[História inspirada no conto Nas Galerias, de Franz Kafka.]

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Cláudio Fragata é formado em Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Começou a carreira como estagiário de O Jornal da Tarde, em 1971. Passou por importantes veículos de imprensa, como Globo Ciência, Galileu e Gula. Atualmente, é editor da revista gastronômica Gosto. Como editor da Divisão Infantil e Juvenil da Editora Globo, desenvolveu, entre outros trabalhos, o projeto editorial dos Manuais da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa. Editor da revista Recreio, da Editora Abril, onde publicou dezenas de contos e poemas infantis. Prêmio Abril de Jornalismo pelo conjunto da obra. Publicou vários títulos infanto-juvenis, entre eles, Seis tombos e um pulinho: as aventuras de Santos Dumont, O voo supersônico da galinha Galatéia, As filhas da gata de Alice moram aqui, e Zé Perri: a passagem do Pequeno Príncipe pelo Brasil (Editora Record); O mal do Lobo Mau (Editora Positivo); A princesinha boca-suja (Editora Scipione), Jura? e Balaio de Bichos (Difusão Cultural do Livro) e Adorada (Editora FTD). Para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial, coordenada por Rubens Ewald Filho, escreveu as reportagens biográficas Jorge Loredo: o perigote do Brasil e Carmem Verônica: o riso com glamour. E-mail: cfragata@uol.com.br




Comentários (3 comentários)

  1. Carina Naufel, Que graça de estória!!!Linda demais!!Me identifiquei com as imperfeições-perfeitas de Felice.
    3 janeiro, 2012 as 15:07
  2. C. Abreu, Gosto de texto assim, quando leio o que uma pessoa geralmente fala! Muito bom!
    3 janeiro, 2012 as 15:46
  3. Sônia Barros, Gosto demais das histórias do Cláudio! “A vida de Felice” eu ainda não conhecia. Adorei!
    7 janeiro, 2012 as 17:21

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