À Sombra do Iluminado


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O poeta Rainer Maria Rilke abre a primeira de suas “Elegias de Duíno” com um dos versos mais emblemáticos e expressivos do drama da criação poética – metáfora da condição agônica do poeta e seu anseio de desvelar e dizer do seu espanto diante do mundo, e da ânsia de compartilhar o mistério enunciado e ser ouvido: “Se gritasse, quem das legiões dos anjos escutaria / o grito?… / … Pois o belo não é senão / o princípio do espanto que mal conseguimos suportar”. Penetrar as funduras irreveladas da existência e de seu próprio ser, capturando-lhes as fraturas e lampejos de seus segredos e verdades – são procedimentos que evocam a alquimia da criação poética.

Rilke evocou a solidão, o espanto e a experiência de desvelamento da vida – elementos enformadores do processo criativo. A poesia de Pollyanna Furtado é plasmada por essas forças que se tensionam e se tecem compondo a tapeçaria de seu canto denso e reflexivo: “Eu, memória desarmada, vencida pelo espanto. / Eu, o silêncio de crianças mortas. / Eu, o grito de mães feridas. / Eu, a túnica de sangue embebida em ácido. ”.

A inquietude e o questionamento de si e do mundo são marcas definidoras da poesia de Pollyanna Furtado. É evidente nos poemas que compõem este livro o caráter ontológico de suas reflexões: o eu lírico vive uma experiência excruciante na sua relação com o mundo – eivado de sombras e esvaziado de sentido. Sua atitude, entretanto, não é de desistência ou de negação de tudo, mas de comprometimento com um olhar mais profundo e revelador das possibilidades de seu estar-no-mundo e o encontro de uma nova experiência capaz de lhe iluminar o caminho – como expressa no poema “A outra margem”: “O tempo finalmente se azula / e rompe a banalidade dos dias. / Enquanto os exploradores de abismos / vacilam à vertigem do possível. // Adivinho a outra margem. / Minha alma antiga, / se entrega, sem solenidade, / num mergulho plástico, / à águas do agora”.

“À Sombra do Iluminado” é um livro que nos convida a pensar sobre a nossa presença no mundo – nossos medos, nossa busca e valores, capazes de nos ajudar nessa travessia de “Vias estreitas / atalhos sem avisos”. A geografia de nosso existir é acidentada e comporta muitos riscos. E contra a incerteza de tudo, o ser humano é chamado a todo instante a ressignificar sua história como condição para seguir. Afinal, “A vida não tem norte nem destino. / É um caminhar sem fim”. Nisso está a mágica de tudo: afirmar nossa capacidade, justificar nosso existir, nossa humanidade e, em meio às sombras, ajudar na tessitura dos sonhos. Sem perder a delicadeza de perceber as pequenas revelações que se anunciam nas coisas mais simples: “De tardezinha / a lua surge fininha. / Sorriso no céu”. Pollyanna Furtado vive o seu espanto de ser-no-mundo e o transfigura poeticamente: “Eu vi uma rosa rude / se fechar na boca da noite”. A escuta de seus versos é uma revelação.

 

Tenório Telles é  escritor e autor de Viver e Canção da esperança & outros poemas.

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Confira alguns poemas do livro:

 

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ROSA DE SOMBRA

 

No vermelho da sombra,
esconde-se uma rosa azul.
Rosa precária e triste,
sem pétalas nem odor.

Aquela mancha fria,
dissolvida ao pé da porta,
de talos inacabados
é sombra, coisa morta.

Eu vi uma rosa rude
se fechar na boca da noite.
Sem ressoar de sinos.
Rosa venosa de Vênus,
venenosa.

Matéria lendária de sonho,
um vulto apenas na manhã.
Nem um pássaro quis beijá-la.
A rosa se desfez.

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A OUTRA MARGEM

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O tempo finalmente se azula
e rompe a banalidade dos dias.
Enquanto os exploradores de abismos
vacilam à vertigem do possível.

Uns enredados à memória
se embaraçam em expectativas
e não conseguem se libertar
de calendários perdidos
nos porões da infância.

Adivinho a outra margem.
Minha alma antiga,
se entrega, sem solenidade,
num mergulho plástico,
às águas agora.

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AMAR-TE

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Amar-te
enquanto a manhã não vem.
Dos interstícios do fogo
à devassidão.

Amar-te
hoje e amanhã.
Quem sabe eternamente.

Amar-te
em silêncio ou
durante a tempestade.

Amar-te
sem férias, nem recessos.
A seco ou depois do banho.

Amar-te
na cama ou sobre o chão.

Amar-te
até sentir que nada mais existe
além do amor que a ti devoto.

Amar-te
em fúria, depois do furacão.

Amar-te
de joelhos, pedindo o teu perdão.

Amar-te.
Amar-te.
Amar-te.

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NARCISO CEGO

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Nas fronteiras do sonho,
a oscilação do abismo
de uma alma seduzida
sobre o espelho d’água.

Na iminência trágica,
o horror e o fascínio
paralisam os gestos
antes de nos lançar
ao desconhecido.

Velo uma luz adormecida
no seio do primitivismo,
no mesmo instante
em que procuro tateante
o Ser que sou.

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À SOMBRA DO ILUMINADO

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No intrincado de tuas teias,
eu me enrolo toda.
Te sigo cega, sem sentido.

A tua forma me informa tão pouco de ti.
A minha forma me deforma tanto de mim.

Eu sumi. Não me encontro no lugar,
onde estava há pouco.

O que será de mim
se a loucura me consumir?
Colecionar cacos de vidro?
Dançar descalço em qualquer canto?

Para onde estou indo?
Está escuro aqui!
Eu me contemplo à sombra do iluminado.

 

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FRAGMENTOS DO SER

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Eu, memória desarmada, vencida pelo espanto.
Eu, o silêncio de crianças mortas.
Eu, o grito de mães feridas.
Eu, a túnica de sangue embebida em ácido.
Eu, espelho provisório, precária imagem.
Eu, sonho putrefato de flores esquecidas.
Eu, pedaço de existência irradiado ao infinito.
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INDAGAÇÃO A GASTON BACHELARD

 

Abro a gaveta do criado mudo:

papéis rabiscados, penas, pílulas, retratos…
Não sei por qual razão não consigo manter a ordem!
Gavetas e armários são nossas mentes exteriores?

 

 

 

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[O livro pode ser encomendado no site da Editora 7Letras]

 

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Pollyana Furtado (1981) é paranaense radicada no Amazonas. Formou-se em Letras e especializou-se em Linguística pela Universidade Federal do Amazonas. É aluna de Mestrado em Letras – Estudos Literários (UFAM) e professora do ensino fundamental. Lançou os livros de poemas FractaisÀ margem da luz (edição do autor, 2007) e o ABC da Floresta Amazônica com Thiago de Mello (Conhecimento, 2008). A autora participou de eventos de literatura no Brasil e no exterior.




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