A serviço daqueles que sofrem


por Editoria da Musa

No dia 10 de dezembro de 1957, o escritor argelino Albert Camus fez seu discurso de agradecimento à Academia Sueca pelo Prêmio Nobel que lhe fora atribuído.

Camus nasceu na costa da Argélia, em Mondovi, um distrito de Constantina na época. Era um pé-preto, ou seja, de uma família pied-noir, como eram chamados os franceses que se instalaram nas colônias do Magreb. Sua mãe era analfabeta e seu pai um operário agrícola. Camus fez uma tocante dedicatória a sua mãe em seu livro O primeiro homem: “A você, que nunca poderá ler este livro”

Camus cresceu no bairro popular de Belcourt, em Argel e estudou na escola comunal da capital e, depois, como bolsista no Liceu Bugeaud. Na universidade de Argel, estudou Letras Superiores. Formou-se em Filosofia com o trabalho “Metafísica cristã e neoplatonismo, Plotino e santo Agostinho”.

Na faculdade descobre Jean Grenier, filósofo e autor do livro As ilhas, que foi seu mentor e amigo durante toda a vida, e a quem ele dedica O homem revoltado. A tuberculose não deixou que seguisse a carreira de professor. Dedica-se, então, ao jornalismo e ao teatro. Com a invasão da França, Camus ingressa no movimento de Resistência à Ocupação como redator do jornal clandestino Combat. Pode-se, grosso modo, dividir a vida e a obra de Camus entre os ‘anos argelinos’ (1913-1942) e os ‘anos franceses’ (1942-1960).

Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, publica dois romances notáveis: O Estrangeiro e O Mito de Sísifo.

Em 1947 publicou A Peste, romance que foi traduzido para o português por nada mais nada menos do que Graciliano Ramos. Entre julho e agosto de 1949, veio até a América do Sul para proferir conferências e visitou o Brasil. Foi recebido por personalidades francesas e pelo escritor Oswald de Andrade que o levou a uma partida de futebol.

Um ano antes do prêmio, publicou o livro A Queda, no qual ironiza a convicção de que a humanidade é essencialmente má.

A Academia Sueca justificou o prêmio concedido com o entendimento de que sua obra colocou em relevo os problemas que se apresentam em nossos dias à consciencia dos homens.

Por conta dos tempos bicudos que vivemos, precisamos urgentemente de dezenas e dezenas de novos Albert Camus.

Eis seu discurso:

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Vossas Excelências, Vossas Altezas Reais, Senhoras e Senhores,

Ao receber a distinção com a qual vossa livre Academia tão generosamente me honrou, minha gratidão foi tão mais profunda ao considerar a extensão com que esta recompensa ultrapassa meus méritos pessoais. Todo homem e, especialmente, todo artista, quer ser reconhecido. É meu desejo também. Mas não me foi possível apreender vossa decisão sem comparar seu impacto ao que eu realmente sou. Como um homem ainda jovem, rico apenas em suas dúvidas e com sua obra ainda em marcha, acostumado a viver na solidão do trabalho ou no retiro da amizade, como este homem não sentiria uma espécie de pânico ao ouvir o decreto que o transporta subitamente, sozinho e reduzido a si mesmo, ao centro de uma luz ofuscante? E com quais sentimentos ele poderia aceitar esta honra se, neste momento, na Europa, outros autores, entre estes os maiores, estão reduzidos ao silêncio, e se, ao mesmo tempo, sua terra natal vem conhecendo um interminável infortúnio? Eu experimentei essa confusão e agitação interior. Para recuperar a paz, foi necessário, em suma, colocar-me em termos com essa sorte tão generosa. E, já que não posso rivalizar com ela apoiando-me somente em meus méritos, não achei nada mais para me ajudar senão aquilo que me sustentou por toda a vida e nas circunstâncias mais adversas: a idéia que tenho da minha arte e do papel do escritor. Permiti somente que, num sentimento de reconhecimento e amizade, eu vos diga, da maneira mais simples de que sou capaz, que idéia é esta.

Pessoalmente, eu não posso viver sem minha arte. Mas eu jamais coloquei essa arte acima de tudo o mais. Se, em compensação, dela necessito, é porque não está separada de ninguém e me permite viver, tal como sou, no mesmo nível dos demais. A arte não é, a meu ver, um divertimento solitário. É um meio de comover o maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada do sofrimento e das alegrias comuns. Ela, pois, obriga o artista a não se isolar, ela o submete à verdade mais humilde e mais universal. E aqueles que muitas vezes escolhem seu destino de artista porque se sentem diferentes logo aprendem que alimentam sua arte, e sua diferença, ao admitir sua semelhança com todos. O artista se forja no perpétuo retorno ao outro, a meio caminho da beleza, da qual não pode abster-se, e da comunidade, da qual não pode fugir. É por isto que os verdadeiros artistas não menosprezam nada: eles se obrigam a entender em vez de julgar. E se eles têm um partido a tomar neste mundo, que possa ser aquele cuja sociedade, nas palavras de Nietzsche, não seja mais governada por um juiz, mas por um criador, seja ele um operário ou um intelectual.

O papel do escritor, ao mesmo tempo, não está separado dos deveres difíceis. Por definição, ele não pode se colocar, hoje, a serviço daqueles que fazem a história: ele está a serviço daqueles que a sofrem. Do contrário, eis que estará só e privado de sua arte. Todos os exércitos da tirania, com seus milhões de homens, não o libertarão da solidão, mesmo e sobretudo se ele concorda em caminhar junto deles. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações no outro extremo do mundo, ao menos basta para retirar o escritor do exílio cada vez que ele consegue, em meio aos privilégios da liberdade, não se esquecer desse silêncio e transmiti-lo, repercutindo-o por meio da arte.

Nenhum de nós é suficientemente grande para essa vocação. Mas, em todas as circunstâncias da sua vida, obscura ou provisoriamente célebre, lançado aos ferros da tirania ou momentaneamente livre para se exprimir, o escritor pode reencontrar o sentimento de uma comunidade viva que o justificará, com a única condição de aceitar, na medida do possível, as duas obrigações que fazem a grandeza do seu ofício: o serviço à verdade e à liberdade. Já que sua vocação é reunir o maior número possível de homens, esta não pode se acomodar às mentiras e à servidão que, onde quer que governem, fazem proliferar o isolamento e a solidão. Sejam quais forem as nossas fraquezas pessoais, a nobreza de nossa tarefa terá sempre raízes em dois compromissos difíceis de manter: a recusa de mentir sobre aquilo que sabemos e a resistência à opressão.

Durante mais de vinte anos de uma história demente, abandonado sem socorro, como todos os homens da minha idade, nas convulsões da época, fui amparado assim: pela obscura sensação de que escrever nos dias de hoje era uma honra, porque este ato não me obrigava apenas a escrever. Ele me obrigava particularmente a suportar, tal como eu era e segundo minhas forças, com todos aqueles que viveram a mesma história, o sofrimento e a esperança que compartilhávamos. Esses homens, nascidos no início da Primeira Guerra Mundial, que tinham vinte anos quando da chegada de Hitler ao poder e dos primeiros processos revolucionários, que foram posteriormente confrontados, para completar sua educação, com a guerra da Espanha, com a Segunda Guerra Mundial, com o universo dos campos de concentração, com a Europa das torturas e prisões, devem agora criar seus filhos e suas obras em um mundo ameaçado pela destruição nuclear. Ninguém, suponho, lhes pode exigir que sejam otimistas. E sou mesmo da opinião que devemos compreender, sem cessar de combatê-los, os erros daqueles que, por um lance do desespero, têm reivindicado o direito à desonra e se precipitam no niilismo da época. Mas a verdade é que a maioria de nós, em meu país e na Europa, tem recusado esse niilismo e já se colocou em busca de uma legitimidade. Foi preciso desenvolver uma arte de viver para esses tempos de catástrofe, para nascer uma segunda vez e, em seguida, lutar francamente contra o instinto de morte na obra da nossa história.

Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer. Ante um mundo ameaçado pela desintegração, onde nossos grandes inquisidores tentam estabelecer definitivamente o reinado da morte, ela sabe que deve, numa espécie de corrida maluca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz (que não é aquela da servidão), conciliar novamente o trabalho e a cultura, e recriar entre todos os homens uma Arca da Aliança. Não há garantias de que ela possa cumprir essa tarefa imensa, mas é certo de que, em qualquer lugar do mundo, ela já tem o desafio duplo da verdade e da liberdade, e, ocasionalmente, sabe morrer por ele sem ódio. É ela que merece ser saudada e encorajada onde quer que se encontre, sobretudo lá onde ela se sacrifica. De qualquer forma, é a ela que, seguro de vosso acordo profundo, gostaria de transferir essa honra que ora me tendes outorgado.

Ao mesmo tempo, após haver ressaltado a nobreza do ofício de escrever, eu teria de devolver o escritor à sua verdadeira posição, não tendo outros títulos senão estes que ele compartilha com seus companheiros de luta: vulnerável mas obstinado, injusto e apaixonado pela justiça, edificando a sua obra sem vergonha ou orgulho à vista de todos, sem deixar de se dividir entre a dor e a beleza, e dedicado enfim a extrair de seu ser duplo as criações que ele tenta construir obstinadamente no movimento destrutivo da história. Dito isso, quem poderia esperar dele soluções acabadas e beleza moral? A verdade é misteriosa, fugidia, está sempre a ser conquistada. A liberdade é perigosa, tão dura de desfrutar quanto estimulante. Devemos caminhar em direção a esses dois objetivos, dolorosamente, mas decididamente, cientes, de antemão, de nossas falhas em tão longo percurso. De agora em diante, que escritor ousaria, de boa consciência, ser um pregador da virtude? Quanto a mim, devo dizer uma vez mais que nada tenho com essa posição. Jamais pude renunciar à luz, à felicidade de existir, à vida de liberdade em que cresci. Mais certo é afirmar que esta nostalgia explica muitos dos meus erros e faltas, ela certamente me ajudou a compreender melhor meu ofício, ela ainda me auxilia a me manter, cegamente, junto a todos esses homens silenciosos que não suportam, mundo afora, a vida que lhes coube senão através das lembranças e dos retornos a esses breves e livres momentos de felicidade.

Reduzido, portanto, a isto que realmente sou, aos meus limites, a minhas obrigações morais, assim como à minha fé exigente, sinto-me mais livre para vos demonstrar, por fim, o alcance e a generosidade da distinção que vós viestes a me conceder, mais livre para vos dizer também que eu gostaria de recebê-la como uma homenagem a todos aqueles que, partilhando da mesma luta, não receberam qualquer privilégio, senão que, ao contrário, conheceram o infortúnio e a perseguição. Resta-me então agradecer-vos, do fundo do meu coração, e fazer-vos publicamente, como testemunho pessoal de gratidão, a mesma e velha promessa de fidelidade que cada verdadeiro artista, a cada dia, faz a si próprio, no silêncio.

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Comentários (1 comentário)

  1. Jô Drumond, Na Juventude, li toda a obra de Camus. De vez em quando, releio algumas delas. Atualmente, em tempos pandêmicos, sugiro a leitura de A peste. Não conhecia esse discurso do Autor. Passei a admirá-lo ainda mais, após a leitura desse texto. Obrigada pela postagem.
    13 abril, 2021 as 9:41

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