A poesia experimental de Ashbery


 

Em 2012, o poeta John Ashbery, mentor e principal figura do “grupo de Nova York”, um conjunto de poetas surgidos a partir dos anos 1950, recebeu das mãos de Barack Obama a “National Humanities Medal”, pela sua obra literária. Era a consagração de um autor que publicou quase trinta livros e marcou a poesia de língua inglesa nesse meio século.

Nascido em Rochester, em 1927, sua mãe era professora de biologia e o pai agricultor. Estudou num internato masculino, onde descobriu a poesia e a sua homossexualidade. Formou-se em Harvard e Colúmbia. Na década de 1960, dirigiu a edição europeia do Herald Tribune (1964/67) e foi editor da revista Art and Literature (1967), quando viveu na França, e esteve à frente da Academy of American Poets.

Foi esse percurso que se encerrou no passado dia 3 de setembro. O anúncio do seu falecimento, por causas naturais, foi feito pelo irmão, em Hudson, Nova York, onde o poeta vivia com seu companheiro David Kermani.

Comumente apodado pela obscuridade da sua poética, no ano passado Ashbery surpreendeu a crítica e leitores, ao publicar um poema na revista The Nation intitulado “Efeito dominó”, em que discorria sobre a vitória de Trump. A atitude revelou-se como um dos raros posicionamentos do poeta, que era cobrado pela ausência de compromisso político.

Para o crítico Harold Bloom, o poeta era “o primeiro clássico da era pós-moderna”, mas também o representante derradeiro das vanguardas de língua inglesa.

Ashbery estreou em 1956 com o livro “Some Trees”, seguiram-se outros títulos que marcaram a poesia anglófona, cujo ponto mais elevado foi o célebre “Autorretrato em espelho Convexo” (1975), livro coroado com os três principais galardões de literatura dos Estados Unidos, o Pulitzer, o National Book Award e o Nation Book Critics Circle Award.

Sua estreia literária deu-se por acaso, quando amigos enviaram poemas seus para a revista “Poetry”. Desde então, Ashbery não parou mais de publicar. Ele fez parte de uma geração brilhante que reunia escritores como Richard Wilbur, W. S. Merwin e Adrienne Rich. Mas o grupo a que pertenceu e que o tornou conhecido, congregava autores como James Schuyler, Kenneth Koch e Frank O’Hara. A morte prematura deste último desfez o agrupamento que se reunia em Cedar Tavern des Village, e Ashbery consolidou sua obra ao longo dessas décadas.

Ashbery estabeleceu um diálogo contínuo com as artes plásticas, e foi amigo de pintores como Jackson Pollock ou Willem de Kooning, próceres do expressionismo abstrato. Aliás, o próprio poeta chegou a afirmar numa entrevista que compunha seus poemas como uma “grande salada”.

O seu magma poético narrativo concentra um alto teor experimental, liberta uma força vocabular densa. É a linguagem bombardeada por uma bateria colossal de informação e referências, como se imitasse os procedimentos da pintura abstrata. O espaço de atuação da sua poesia acolhe tanto as referências eruditas como a Parmigianino, ou mais populares como o personagem Popeye. Trata-se de uma colcha de retalhos cerzida com conversas do cotidiano, implodindo a linearidade do discurso.

Herdeiro direto de Walt Whitman, Ashbery sabota a realidade com a sua linguagem, daí ser criticado pelo tom obscuro. Muitos críticos taxaram-no como demasiado intelectual, com influências da teoria literária e do ensaio. O poeta respondeu taxativo: “Um pássaro, para cantar, não tem necessidade de ser especialista em ornitologia”.

Dotado de um fôlego expressivo, ele socorreu-se muito do poema longo. Seu grande livro indiscutivelmente foi o premiado “Autorretrato em espelho convexo”, escrito após ler uma resenha no The New York Times, sobre Parmigianino – Francesco Mazzola (1503-1540) –, embora o próprio autor  não considerasse o seu melhor livro.

O poeta Charles Simic tentou explicar a dificuldade que o leitor enfrenta diante da obra de Ashbery: “Escreve muito bem, mas muitos dos seus poemas são irremediavelmente obscuros. Admiro-o, mas tenho esse problema. Há leitores que o adoram e a maior parte do tempo não têm ideia do que fala senão em termos gerais. Posso viver de maneira ambígua, mas não em muitos poemas”.

Mas o poeta defendeu sempre sua expressividade, demonstrando que mantinha sua independência criativa: “A principal preocupação do poeta é dar vida à obra de arte de tal maneira que se torne impossível tentar explicá-la”, afirmou no livro “A vanguarda Invisível” (1972).

Na verdade, o difícil é encontrar um nexo explicativo sobre o que se lê, escavar significados para estabelecer um sentido, o que implica um trabalho de Sísifo. O poema de Ashbery assemelha-se a uma orquestra tocando vários ritmos em simultâneo, mas sem perder a harmonia. Ele é coloquial e reflexivo; a expressão é fragmentária e caótica, deslocando a tensão verbal e a consciência para captar a totalidade.

A crítica Dana Gioia no livro “Can Poetry Matter”, tem uma frase lapidar que resume bem o poeta: “É um maravilhoso poeta menor, mas um embaraçoso poeta maior”.

Levará tempo ainda para se deslindar a poesia deste autor, mas ela caracteriza bem os paradigmas destes últimos cinquenta anos, não há dúvida.

É a velocidade do tempo atravessando a história e a arte dos homens.

 

 

 

 

 

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Jorge Henrique Bastos é jornalista, tradutor e editor, organizou “Poesia brasileira contemporânea, – dos modernistas à actualidade”. (Antígona, 2002). E-mail: jorgehenriquesbastos@gmail.com




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