A poesia e a sua ração de chamas


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O poeta cearense Francisco Carvalho (1927) é uma das grandes vozes ainda por ser resgatada em nossa tradição lírica. Com uma extensa obra e pautada por uma densidade raramente encontrada entre seus pares, já nos anos 60 publicaria dois livros fundamentais à poesia brasileira, Dimensão das coisas (1966) e Memorial de Orfeu (1969), títulos que foram curiosamente excluídos da edição de seus poemas escolhidos, Memórias do espantalho (2004). Aos dois iniciais se juntam outros de igual relevância poética, tais como Os mortos azuis (1971), Pastoral dos dias maduros (1977) e Barca dos sentidos (1989). A rigor, estes 5 títulos constituem todo um programa estético que ainda não encontrou correspondente voz crítica para um diálogo necessário. Ilhado no Ceará, por opção própria, declarou certa vez que “a literatura produzida no Nordeste, com as devidas ressalvas, não tem a menor repercussão nos grandes centros de efervescência cultural, de onde as elites mercadológicas e intelectuais ditam a moda das roupas e dos poemas”. Ao visitar sua correspondência ou entrevistas à imprensa local (material disperso e sem perspectiva de deixá-lo de ser), sempre nos deliciamos com seus achados críticos, tais como este: “O bom poema não deve ser confundido com uma orgia de palavras eruditas. A poesia pode resultar de palavras banais, dessas coisas que estão à flor da pele do cotidiano. O poema não precisa ficar o tempo todo bolinando a metafísica.” A seguir um diálogo entre o poeta atípico e nosso colaborador Floriano Martins.

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Floriano Martins: Onde se inicia o poeta Francisco Carvalho?

FRANCISCO CARVALHO: Mais ou menos por volta de 1942, com a publicação de um folheto de cordel sobre a seca no Ceará. Nascido e criado no interior do Estado, onde era marcante a influência dos cantadores de viola e dos chamados “poetas de bancada”, era natural que começasse por onde comecei.

FM: Henry Miller costumava se perguntar até que ponto valia a pena levar uma vida de escritor, se ela exigia tantos e cruéis sacrifícios. Para você, vale a pena?

FC: Como Henry Miller, centenas de vezes me tenho perguntado se vale a pena ser escritor, quando se sabe que a sociedade moderna caminha em outras direções, ou porque a literatura já não lhe oferece respostas convincentes às suas perplexidades, ou porque a sensibilidade do homem contemporâneo está hoje inteiramente magnetizada pelos aspectos visuais da existência. O verdadeiro espetáculo é a vida. A vida colorida e pulsante. A vida em toda a sua plenitude selvagem. Por melhor que seja, a literatura não passa de uma pálida metáfora da vida. O extraordinário progresso da tecnologia no campo da eletrônica, privilegiando sobretudo o avanço da informática, transformou o universo em um espetáculo sem precedentes. A aldeia global foi convertida em uma verdadeira orgia pirotécnica, onde as invenções se sucedem em ritmo de vertigem. A televisão, o videogame e o computador como que acordaram o velho instinto de magia que bruxuleia milenarmente na alma do homem. Ninguém resiste ao fascínio desses inventos maravilhosos. Já os mecanismos da literatura são enfadonhamente conservadores. A verdade é que ninguém hoje se sente estimulado a ler um volume compacto de ficção ou poesia quando sabe que a alguns metros dos seus olhos, em alguma praia paradisíaca, deusas de carne e osso exibem gloriosamente a sua nudez ensolarada – “bundas em flor” (Joaquim Cardozo) e seios e dorsos e coxas que rivalizam com as formas mais ousadas e sensuais da estatuária universal – em um espetáculo irresistível de plasticidade e beleza. É difícil ser escritor em qualquer latitude. Mas essa dificuldade terá de ser multiplicada por setenta vezes sete se se trata de ser escritor em um país tropical, onde o sol funciona como uma espécie de termômetro das nossas sensações. Esses são apenas alguns dos desafios que o escritor tem de enfrentar. Mas o pior desafio talvez seja a falta de mercado para o seu trabalho. O produtor literário é um dos poucos trabalhadores que não recebem remuneração condigna. Isto acontece principalmente nos países subdesenvolvidos, onde prevalece a velha deformação burguesa de se pensar que o poeta e o romancista têm a obrigação de divertir a sociedade capitalista. É profundamente irritante verificar que os praticantes de atividades subalternas são regiamente pagos pela mesma sociedade que rejeita o escritor. Um bom corredor e um bom saltador, primários que sejam intelectualmente, têm assegurada a sua independência econômica pelo resto da vida. Qualquer desportista mediano dos tempos modernos leva uma existência suntuosa e nababesca, que nem Salomão, com todo o seu esplendor, jamais poderia ter sonhado. Tudo isto para mostrar que o escritor, com as exceções que toda regra comporta, é a escória da sociedade capitalista. Além disso, o escritor ainda sofre as pressões da sociedade em que vive e é constantemente discriminado pela própria classe. Tudo é cobrado ao escritor, desde o emprego correto dos pronomes até as suas preferências ideológicas. Só a vocação justifica a existência do escritor. Do contrário, é mandar tudo às favas, ser um anarquista bem sucedido, respeitar as leis de Deus e as do Diabo, gerar filhos para povoar os vazios da pátria e, no final de tudo, morrer “santamente” como um velho mendigo debruçado na soleira da porta.

FM: Há muitos anos você me disse uma frase que guardo-a comigo até hoje: “O primeiro verso quem nos dá é Deus”. Lembro um verso do “Canto I” de Altazor Vicente Huidobro), que diz: “Deus, se tu existes é a mim que o deves”. E mais à frente, no mesmo Canto: “Eu quero ser o pára-raios de Deus”. Qual a sua visão sobre a provável onisciência do artista, da relação, enfim, entre o artista e Deus?

FC: Deus ou o Acaso – sempre tive a impressão de que o primeiro verso de um poema chega até nós através de uma energia cósmica. O mesmo já não acontece com o restante do poema. O primeiro verso funciona como uma espécie de núcleo da teia. Armado o núcleo, você tem de urdir pacientemente o resto da malha significante. É verdade que algumas vezes acontece de sair o poema de um jato, como se um impulso desconhecido nos levasse a descobrir cada uma das palavras que haverão de funcionar no contexto da estrutura poética. É bastante conhecido o episódio de Fernando Pessoa, que teria escrito de uma só vez os quarenta e nove segmentos do longo poema O guardador de rebanhos, por sinal um dos mais belos textos atribuídos ao heterônimo Alberto Caeiro. Mas fatos assim só acontecem de raro em raro, de forma que serão sempre tratados como exceção. O verso de Huidobro referido por você é produto de uma velha divergência filosófica, envolvendo o cristianismo e o materialismo. Para o primeiro, o homem é criação de Deus. Já para o segundo, Deus não passa de produto da imaginação do homem. Clarice Lispector escreveu o seguinte: “Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho”. Pelo visto, a autora de Perto do coração selvagem também acredita que Deus é uma criação do homem. Deus é Deus. O homem é o homem, subproduto da História. Ou seria o contrário, a História é que seria subproduto do homem? Isto me leva à colocação polêmica de Ortega y Gasset, segundo a qual “o homem não tem natureza, tem História”. Não existe onisciência no artista. O que existe no artista é o desejo de ultrapassar a si mesmo, de superar-se, de triunfar de suas próprias limitações. Se o artista acredita em Deus, deve conviver em harmonia com essa possibilidade. Se não acredita, e se as suas convicções filosóficas não lhe causam nenhuma espécie de incômodo, deve usufruir dessa liberdade para esculpir o mais ousadamente possível a sua criação. Mas um artista comprometido com a ideia da existência de Deus não será por isto mais limitado do ponto de vista criador. Chego até mesmo a pensar que a ideia de Deus pode alargar o horizonte de conflitos do artista, tornando-o mais fecundo e mais sensível à natureza metafísica do universo. O importante é que o artista, admita ou não a ideia da existência de Deus, seja um ser conflituoso, um espírito dialético, constantemente trespassado de incertezas e dúvidas. Um sujeito cercado de certezas por todos os lados jamais desejaria ser “o pára-raios de Deus”. Deus também me causa medo. É que recebi na infância, simultaneamente com a ideia de Deus presente em todas as coisas, a ubiquidade operante, a noção de pecado e a noção de castigo. A noção de que o remorso acompanharia o pecador pelo resto da vida. A noção de que a culpa teria de ser expiada no fogo do inferno. O importante é que se creia em alguma coisa ou se duvide de alguma coisa. Só a neutralidade é estéril. Como diria o poeta Murilo Mendes, “se os deuses não existissem, como aprenderíamos a polemizar?”.

FM: Em recente entrevista, o poeta norte-americano Lawrence Ferlinghetti declarou que acredita que não haja mais nem poetas nem escritores com talento nos Estados Unidos. E acrescentou: “Aqueles que escrevem deixaram de ter convicções ou idéias militantes”. Para você, que já declarou em entrevista anterior que ainda não saímos do Modernismo de 1922, o que lhe parece esta poesia que temos atualmente? Para onde caminha a poesia que é feita hoje no Brasil?

FC: Espero que o Sr. Ferlinghetti saiba o que está dizendo. Desconfio do simplismo das generalizações. As generalizações só funcionam bem no contexto poemático. Acho que se um indivíduo vai à máquina de escrever e passa algumas horas em luta feroz com o anjo ou o demônio da poesia, há de estar forrado, necessariamente, de alguma convicção. Do contrário, mandaria tudo às favas. Já quanto a essa história de idéias militantes, suponho que nem mesmo o Sr. Ferlinghetti tem muita convicção a respeito do que vem a ser isto. A poesia que se pratica atualmente no Brasil? Com as exceções que toda regra comporta, não sinto nenhum constrangimento em responder que é uma poesia de excelente nível. Existem, naturalmente, os equívocos entronizados pelos críticos grupais. Mas estou certo de que o tempo se encarregará de colocar as contrafações no seu devido lugar. Acredito, entretanto, que a qualidade dessa poesia permanece estacionária. Todos os movimentos literários que se seguiram ao Modernismo de 22 foram certamente importantes. Mas a verdade é que esses movimentos acabariam se diluindo por falta de propostas convincentes e, sobretudo, pela constatação de que os seus projetos de implantação de uma nova realidade estética frustraram completamente as expectativas mais otimistas. Chego a pensar que a poesia finissecular caminha inexoravelmente para o discurso atípico, completamente despido de sentimento e de mediação estética. Uma espécie de retórica programada para a sociedade capitalista – uma sociedade que só acredita em valores tangíveis, como o lucro e a desintegração nuclear.

FM: “Perde o rascunho do poema / perde a pauta de música / perde a promissória / perde o vício do amor / perde o teu olho / mas não perde a tua liberdade”. Eis um trecho do poema “Perde o teu olho”, do livro Rosa dos Eventos. Eu gostaria que você me falasse um pouco do significado desta palavra (liberdade) em sua vida.

FC: Liberdade é uma bela metáfora que tem fascinado os poetas através dos tempos. E continua a exercer o seu fascínio sobre os poetas da idade moderna. Antes de mais nada, porque se trata de uma bela palavra, rica de plasticidade e de sonoridade. E é sabido que os poetas são particularmente sensíveis a essas qualidades. No poema “Perde o teu olho”, não falo evidentemente da liberdade como a faculdade mecânica que leva o indivíduo a deslocar-se de um lugar para outro. Falo da liberdade interior, da liberdade do espírito, que sopra onde quer. Da liberdade de acreditar. Da liberdade de viver e de morrer. Da liberdade de pensar e de não pensar. Da liberdade de amar e de não amar. Da liberdade de escolher os caminhos da alma, ainda quando esses caminhos não passem pelo reino encantado da felicidade dos outros, nem levem ao paraíso imaginado pelos manipuladores do Poder Econômico. Liberdade de ser diferente das outras pessoas, sem que esse fato possa ser considerado um gesto de desaprovação aos seus atos. Liberdade de sonhar e de escrever poemas, sem compromisso com o modo de pensar e de sentir das outras pessoas, mas apenas fiel aos apelos de minha interioridade e da minha circunstância. Liberdade de escrever poemas de amor ou poemas sociais, poemas líricos ou metafísicos, sem ser incomodado pelos patrulhadores de ideias políticas ou de conceitos estéticos, pelos “sargentos literários” que proliferam vertiginosamente no tumultuário universo da literatura. É assim que entendo a liberdade, que tenho procurado usufruir dela na minha existência absolutamente horizontal. Mas tenho de reconhecer que a liberdade encarada nestes termos é pura utopia. Os homens são os seus condicionamentos. São as marcas deixadas pelo remorso. São os fragmentos da infância, com os seus devaneios e as suas deformações. O que se aprende na infância transforma-se em verdade irremovível na vida adulta. Mas o problema da liberdade apresenta várias outras implicações. A de natureza econômica, por exemplo. Não pode existir liberdade sem independência econômica. Jamais o empregado de um banco se atreveria a ironizar o patrão em um poema satírico. O mais provável seria que escrevesse um poema de exaltação às virtudes cívicas de seu chefe. De qualquer forma a liberdade, com todas as suas limitações possíveis, ainda é algo por que se deve lutar com todas as flechas do corpo e da alma, mesmo que essa luta possa eventualmente parecer sem sentido; mesmo que nessa luta tenha de perder o rascunho do poema, a pauta da música, a promissória, o vício do amor e o próprio olho. Que tudo isto leve a breca, mas que a liberdade, mutilada nas asas ou na sua autonomia de vôo, permaneça acorrentada ao destino do homem até a sua morte.

FM: Lembro uma frase de Clarice Lispector, que dizia mais ou menos assim: “um fragmento de espelho é suficiente para se ir com ele ao deserto, meditar”. Não lhe parece que o homem esteja pagando um preço demasiado caro por ter-se afastado de si mesmo e que deveríamos todos fazer um último esforço para nos resgatarmos a nós mesmos? Acaso não estamos vivendo uma espécie de Babel revisitada?

FC: Sua pergunta daria combustível suficiente para desenvolver um ensaio. A frase de Clarice Lispector a que você se refere, como tudo o que saiu da pena privilegiada dessa escritora, está carregada de propósitos metafísicos. É uma dessas frases magnéticas onde a poesia, apenas de relance, mostra o dorso fustigado pelo mistério. Um fragmento de homem também é suficiente para encetar a busca da unidade perdida. Não há como não concordar com a colocação de que o homem está pagando um preço demasiado caro por ter-se afastado de si mesmo. De fato, o homem se afasta de si mesmo na medida em que se distancia de sua interioridade. Na medida em que renuncia à totalidade do ser. O homem começou a corromper-se a partir do momento em que imaginou que a sua libertação estava na posse e no domínio dos valores temporais. O homem é esse fragmento de espelho de que nos fala Clarice Lispector. O homem departamentalizou-se de acordo com as exigências da sociedade industrial. O homem é o braço, a perna, o nariz, o tórax, as orelhas, os olhos. O homem já não é mais o espelho a refletir o universo em sua totalidade. Cada fragmento do homem é um pedaço do espelho, um reflexo mutilado da realidade. É isso mesmo. Estamos em plena Babel revisitada. Concordo que sem uma postura individualista o homem jamais se dará conta do vazio em que se acha mergulhado. Em certos momentos o homem precisa de solidão para poder reencontrar a identidade perdida. A besta e o homem em luta permanente no íntimo do homem. O lado sombrio do homem vai a Sodoma e Gomorra. O lado iluminado do homem está sentado à direita de Deus. O homem não conseguiu domar a besta com dois séculos de cristianismo. Nem jamais o conseguirá. O homem, cadáver adiado que procria (Fernando Pessoa). O homem é a sensualidade que se embriaga à hora da ceia. Uma argila fragmentária. O que me espanta no homem é o seu hedonismo insaciável. Não bastassem os prazeres do vinho e da sensualidade, ainda aspira à bem-aventurança eterna. O problema é que nenhum dos pedaços do homem está em conflito consigo mesmo e com os outros. Cada pedaço do homem ignora o outro pedaço. Os departamentos do homem são labirintos sombrios. Cada pedaço do homem está morrendo à míngua de solidariedade. O olho do homem não quer saber de seu braço nem de sua perna. O coração do homem bate as horas da agonia, mas o resto do homem não escuta o som nem o gemido de sua morte. Cada pedaço do homem só se interessa pelos seus problemas específicos. A boca do homem não quer saber das lamentações das vísceras. E assim vai o homem se dilacerando pela vida afora, como se não fosse eterno. Como se não fosse preciso preservar o fragmento de espelho para ir com ele meditar no deserto.

FM: Ernesto Sabato defende que a arte, por ser mais integradora, mais representativa da personalidade humana do que a ciência ou do que o melhor tratado de filosofia, caberá a ela a difícil tarefa de resgatar o “pensamento mágico”, desterrado pela sociedade em que vivemos, sociedade favorecida pela super-valorização da razão pura, da ciência e da técnica.

FC: O que se verifica é que a arte vem gradativamente perdendo terreno no mundo moderno. Falo, principalmente, da arte literária, sem dúvida a mais conservadora de todas as artes. Já as artes plásticas operam em um raio de ação muito mais abrangente. O mesmo acontece com a música. A pintura moderna, por exemplo, lança mão de técnicas as mais variadas e vai assim tentando resgatar o “pensamento mágico”, que sempre foi uma espécie de pedra filosofal da arte. Apesar de todas as suas limitações formais, apesar dos computadores e dos video-games, que são os verdadeiros mágicos da era eletrônica em que vivemos, acredito que a literatura não esgotou ainda todo o seu potencial de magia e toda a sua capacidade de exploração das possibilidades lúdicas da alma do homem. O que falta, na realidade, é talento e imaginação capazes de reverter as estruturas da nossa produção literária, de forma a transformá-las em algo que não seja apenas a sombra da realidade. Algo inusitado e vibrante que não pareça mais um documento, rotineiro e linear, da nossa tradição lírica. Ainda recentemente, em artigo publicado na revista Veja, o escritor Paulo Leminski falava com desencanto sobre os rumos da ficção brasileira, que lhe parece inteiramente comprometida com o realismo fotográfico, um realismo anêmico e bem comportado, que não vai além do rigor do pormenor e da exatidão do desenho e da cor. Dizia Paulo Leminski: “Dê a seu ficcionista favorito uma máquina fotográfica e um manual de instruções. E nós vamos ficar livres de tantos contos e romances que se querem literatura mas não passam de jornalismo enfeitado com plumas e paetês do estilo mais em voga”. Concordo. Acho que a imaginação é a grande saída para a literatura. Quer dizer, para resgatar o “pensamento mágico”, banido pela sociedade capitalista em que vivemos. Nesse sentido, os escritores de língua espanhola (Borges, García Márquez, Cortázar etc.) têm sido incomparavelmente mais arrojados do que os escritores brasileiros. A ficção de qualquer desses escritores continua a empolgar a imaginação das pessoas pela sua extraordinária dimensão mágica, pela sua capacidade de metamorfosear a realidade, enfim, pelo seu realismo fantástico. É nessa direção que devemos caminhar se desejamos resgatar o “pensamento mágico”. Do contrário, a nossa literatura acabará morrendo por falta de vitalidade e excesso de bom senso.

FM: Publicar é ainda uma forma de ação ou é uma maneira de dissolvê-la no anonimato da publicidade?

FC: Não publicar é o anonimato. Publicar continua sendo de certa forma o anonimato. Mas o livro publicado, por menor que seja a sua repercussão, passa a ser do domínio público. O texto impresso ganha outra dimensão, além de sugerir outros propósitos e outros significados. O tamanho do livro, a cor do livro, a diagramação do texto, o desenho da capa, a arte gráfica – são detalhes da maior importância, que fazem do livro um objeto estético, um referencial à parte. Todo autor deve empenhar-se no sentido de publicar as suas produções inéditas. Apesar da evidência de que não existe mercado para a literatura. Os bons escritores deste país (é de pasmar) chegam a virar notícia quando conseguem esgotar uma edição de três milheiros de exemplares. Não estou, evidentemente, argumentando com as exceções. Apesar de tudo, o importante é publicar. Não há vantagem alguma em ser um escritor póstumo.

 

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[Publicado originalmente no Diário de Cuiabá]

 

 

 

 

 

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Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção do Brasil. E-mail: arcflorianomartins@gmail.com




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