A mesma fumaça


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O agente literário americano Bill Clegg conta a sua peregrinação no mundo do crack. E o que me espanta é ver como o “mundo do crack” é o mesmo em Nova York e em Fortaleza. Certamente é o mesmo em qualquer outra cidade. Vejam as semelhanças: eu também trabalho com literatura, sou escritor, e também, assim como Bill, fui viciado em crack. Mas a maior semelhança é o que o crack faz com o usuário, com todo e qualquer um usuário contumaz, que foi o caso de Bill e o meu. Os tremores, as convulsões, a libido aflorada e a paranóia. A paranóia sobretudo com a polícia. Estamos sempre sendo espreitados e seguidos por ela, que, para nós, nóiados, vai aparecer a qualquer momento.

Escrevi um livro sobre o crack, onde, assim como no livro de Bill, exploro o viés literário que o tema pode render. Contar acontecimentos biográficos mesclando com o que até pode ser mesmo ficção é uma maneira interessante de escrever sobre uma experiência de vida. Talvez o ponto de equilíbrio que Manuel Puig tanto procurou no passado e que Cristovão Tezza hoje procura. Para falarmos só neles. Não nos estendamos, já que o que importa é o tema central do relato de Bill Clegg: o crack. De como ele escraviza e despersonifica seu consumidor.

É assustador e agonizante ler Retrato de um viciado quando jovem. A maneira que o personagem-autor se afasta do seu companheiro, da sua família, do seu trabalho, tudo em nome da fumaça com “gosto de remédio, ou de desinfetante, mas também um toque adocicado, como o sabor da lima”, e o entra e sai de muitos hotéis de Nova York sempre fumando uma quantidade cada vez maior de crack provoca uma agonia no leitor que chega a pensar que a via crucis não terá fim. No meu caso, algumas pessoas chegaram a dizer que o que de melhor poderia me acontecer seria morrer.

Eu também fumei crack em muitos hotéis de Fortaleza, também me afastei e adoeci minha família e quase que acabo por completo com minha carreira de escritor. Mas isso não é “privilegio” de Bill, nem meu. Qualquer outra pessoa em nosso lugar, não importando a profissão, faria o mesmo, em Nova York, Fortaleza ou em Nova Guiné. O crack é implacável e seu efeito no ser humano é o mesmo em qualquer lugar do planeta.

O crack apareceu nos Estados Unidos nos anos de 1970, nas décadas seguintes (1980/1990) se tornou um problema social de graves proporções no país, com um número grande de dependentes e muitas manchetes diárias de crimes e violências cometidas em nome da manutenção do vício. No Brasil a droga chegou no começo dos anos de 1990 e é hoje um problema social seríssimo. Nossa mídia, como nos Estados Unidos, estampa todos os dias as atrocidades que os doentes, os viciados em crack, cometem dominados pelo vício. O Brasil é hoje o maior consumidor de crack do mundo. Espero que isso não aconteça com o oxi (que na verdade é a pasta base da cocaína) que já se espalha pelo país.

O domínio e posterior escravidão que o crack impõe ao viciado começam como um amor a primeira vista. Uma paixão que pode virar até maior que o próprio amor maternal. Bill conta que a paixão pelo crack e por Noah, seu namorado e verdadeiro amor, aconteceram simultaneamente. Eu testemunhei pessoas dizerem que amavam mais o crack do que a própria mãe. O que, em termos específicos, apenas reforçava o quanto o crack realmente escraviza e despersonifica.

A pessoa não é mais ela. É uma outra, um estranho completo. Melhor, torna-se um zumbi. Um morto vivo que não come, sequer bebe água, apenas fuma pedra e aplaca os sintomas da droga com muito álcool. No caso do nosso autor personagem aqui com muitos litros de vodca. E para o zumbi tanto faz se ele está fumando num quarto de um luxuoso hotel ou se num terreno baldio cheio de fezes. A miséria é a mesma.

Bill foi parar por duas vezes em clínicas de tratamentos para dependentes químicos. No livro fala um pouco da rotina desses lugares. Eu passei por dez internações em lugares como esses e vejo que lá, como aqui, a rotina é a mesma. As melhores clínicas são as que trazem o tratamento do NA – Narcóticos Anônimos. É bom lembrar que recaídas fazem parte do tratamento. Cheguei a pular o muro de uma clínica, onde eu estava internado, para ir usar crack.

O pior é que o crack, nos primeiros anos, dá muito prazer. É como tirar férias deliciosas de si mesmo. Fatalmente as férias se tornam redenção. A morte como redenção. Ansiosamente desejada pelo crackeiro. Mas em vão. Por mais que se fume, – Bill, nos capítulos finais, fumou uma quantidade absurda de crack desejando a tão ansiada e ilusória morte – é rara uma overdose de crack. O que desejamos com tamanho sinal de fumaça é sermos ouvidos. O que realmente Bill Clegg queria era escrever o livro que escreveu. No fim das contas, venceu a literatura.

 

RETRATO DE UM VICIADO QUANDO JOVEM (2011) / BILL CLEGG / TRADUÇÃO JULIA ROMEU / COMPANHIA DAS LETRAS / 216 PÁGINAS /

 

 

 

 

 

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Cláudio Portella (Fortaleza, 1972) é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003), Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; 1º Reimpressão, 2011), Crack (2009), fodaleza.com (2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011) e Net (2011). Colabora em importantes jornais, revistas e sites do Brasil e do exterior. E-mail: clautella@ig.com.br




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