A dor dorme com as palavras


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Em 20 de abril de 1970, Paul Celan se suicidou, jogando-se no rio Sena, em Paris, onde morava. Durante toda a sua vida, tendo escolhido escrever seus textos em alemão, sua língua materna e também língua dos assassinos de seu povo, Celan contradiz Adorno e mostra, com seu projeto literário, a possibilidade de se fazer poesia depois de Auschwitz. Contudo, em sua poesia haveria de se destacar a marca indelével de uma experiência traumática na qual a catástrofe consiste justamente na privação do direito de dizer, apontando para o fracasso dos meios simbólicos que usamos para dar sentido ao que nos acontece. Ironicamente, no final da vida, uma acusação injusta de plágio novamente tentaria retirar do poeta esse direito.  Algo no suicídio de Paul Celan parecia mostrar, portanto, que, se a escrita poética não deixa de funcionar do ponto de vista estético, o mesmo talvez já não se pode dizer sobre seus efeitos na mente do escritor.

Atenta a tudo isso, a psicanalista Mariana Camilo de Oliveira debruçou-se sobre a obra de Paul Celan, para nos mostrar, em A dor dorme com as palavras: a poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe, que a dor resultante da relação entre a catástrofe, o real do trauma e os limites da representação, antes de nutrir a escrita, traz consigo uma impossibilidade de sentido sempre renovada, por ser arredia à rede simbólica. […] [Trechos da orelha do livro A dor dorme com as palavras: a poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe. Por Ana Cecília Carvalho]

 

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Paul Celan, um realista singular

Márcio Seligmann-Silva

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A dor dorme com as palavras, de Mariana Camilo de Oliveira, é destes ensaios que conseguem simultaneamente ser um trabalho feito com paixão e com rigor. Não é fácil estudar a poesia de Paul Celan, um dos melhores poetas do século xx, mas também, reconhecidamente, um autor complexo, que demanda maturidade e estudo daqueles que se aproximam de sua obra. Neste ensaio, percebemos como sua autora enfrenta essa dificuldade aliando disciplina e apurado estudo das fontes primárias e secundárias a um enorme respeito aos poemas. O resultado é uma escrita enxuta, econômica, que, sem mimetizar seu autor-tema, permite uma inteligente aproximação reflexionante. O teórico e crítico literário tem que ser capaz de abrir portas, de iluminar, de perspectivar a obra estudada. Tudo isto acontece neste ensaio, sem a pretensão ou o vão desejo de ter encontrado alguma maravilhosa “chave de interpretação”. Para um autor que desfaz a hermenêutica, tentar enfrentá-lo com a ideia de decifração seria a receita certa para o fracasso.

Antes, Mariana Camilo de Oliveira propõe uma série de movimentos de aproximação e distanciamento do texto, desenhando uma coreografia de leitura que aos poucos leva o leitor ao âmago de várias questões fundamentais quando se trata dos poemas de Celan. Ela evita o biografismo, mas sabe respeitar o teor testemunhal da obra de um poeta que modelou seus poemas com a argila, a terra e as cinzas da época que lhe foi dado viver. Seria uma insanidade – que infelizmente repete-se ainda – ler Celan como se este fizesse “poesia pura”. Mas a armadilha estaria em reduzir o poema à historiografia. Mariana Camilo de Oliveira de modo algum cai neste erro. Ela permite que o poema desdobre-se em outros textos, para em seguida, em uma contração, voltar ao poema que nunca fica perdido em meio à filologia ou às necessárias comparações. […] (p.13)

Mariana Camilo de Oliveira nos introduz com uma mão segura e delicada neste universo poético que provoca vertigem, mas também apresenta uma poesia única, talvez mesmo inimitável. Eventualmente essa singularidade tenha a ver com o que Celan declarou em uma carta (de 23.06.1962) ao seu amigo Erich Einhorn: “Ich habe nie eine Zeile geschrieben, die nicht mit meiner Existenz zu tun gehabt hätte – ich bin, Du siehst es, Realist auf meine Weise” (“Eu nunca escrevi uma linha que não tivesse a ver com a minha existência – eu sou, você o vê, realista ao meu modo”). Sobre esse “realismo” e sobre muitos outros aspectos da poética de Paul Celan, temos muito a pensar a partir deste belo texto de Mariana Camilo de Oliveira. (p.16)

 

[Trechos de: SELIGMANN-SILVA, Márcio. Paul Celan, um realista singular. In: CAMILO DE OLIVEIRA, Mariana. “A dor dorme com as palavras”: a poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.]

 

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Prefácio

Por Georg Otte
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[…]

São os vestígios da negação e do silêncio que permitiram a Celan questionar o veredito de Adorno, segundo o qual escrever um poema após Auschwitz seria um “ato bárbaro”, significaria colaborar com a catástrofe. Celan escreveu o poema após Auschwitz, mas esse poema – se ainda cabe chamá-lo assim – não neutraliza a catástrofe conferindo-lhe qualquer lógica, mas “acumula incansavelmente ruína sobre ruína”, transformando as palavras em escombros e o poema numa catástrofe verbal. É o fracasso da significação e da sintaxe que faz o sucesso dessa representação, a catástrofe verbal é a única capaz de representar a catástrofe histórica do Holocausto.

O poema de Celan dá voz ao silêncio. O livro de Mariana Camilo de Oliveira cumpre a difícil tarefa de falar desse silêncio, de falar do indizível. Ao invés de preenchê-lo, negando assim o que há de mais precioso nessa obra, suas reflexões ecoam o vazio e o ampliam. Ao invés de oferecer soluções ao leitor, ela optou pela única solução possível: oferecer mais vestígios. (p. 20)

 

[Trechos de: OTTE, Georg. Prefácio. In: CAMILO DE OLIVEIRA, Mariana. “A dor dorme com as palavras”: a poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.]

 

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A dor dorme com as palavras

 

Pesadez

conduzida pelo silêncio.

Paul Celan. A morte é uma flor.

 

Com essas palavras fala a poesia da qual nos aproximamos. As silenciosas, leves, insonoras e, simultaneamente, de peso talvez material – “um íntegro silêncio, uma pedra” –, que engendram a dor em seu interior, feridas, cicatrizes, coágulos, “palavra-limiar”, da qual se deseja ser retirado “feito casca”. São as palavras que, como o poeta, fizeram a travessia “sem saída, no beco da História” do século XX. Que deixam em suspensão a possibilidade do dizer. Perpassadas de impossibilidades – indizíveis –, contudo, escritas.

É nesse beco da História que viveu Paul Celan. Pseudônimo anagramático e literário de Paul Antschel, nasceu na cidade romena de Czernowitz, Bucovina (hoje pertencente à Ucrânia), aos 23 de novembro de 1920, filho de judeus falantes de alemão. No ano de 1942, os pais de Celan foram deportados para um campo de extermínio em Michailowka e ali morreram. Celan foi deportado para um campo de trabalho onde esteve durante 18 meses. Residiu em Bucareste, onde trabalhou como tradutor e leitor em uma editora, em Viena, até estabelecer-se em Paris, em 1948. Obteve grau em filologia e literatura alemã e passou a lecionar dois anos depois. Traduziu, para o alemão, poemas modernos franceses, russos, italianos e portugueses, de poetas como Shakespeare, Paul Valéry, Henri Michaux, Ossip Mandelstam e Fernando Pessoa. O poeta recebeu, então, importantes prêmios da literatura alemã, como o Bremer Literaturpreis, em 1958, e o Georg-Büchner-Preis, em 1960. Paul Celan suicidou-se em Paris, aos 20 de abril de 1970 […]. (p. 21-22)

Ao longo da obra – através do crescente uso dos versos curtos e vazios, de motivos enigmáticos, da ruptura da sintaxe, do enxugamento da palavra até a letra e da materialidade das imagens –, o leitor se vê no limiar do dizível, remetido a todo momento aos limites representacionais da linguagem, em especial no que tange a experiência catastrófica. […] (p. 22)

A poesia celaniana é, antes, vazia, elíptica, avessa à pretensão de completude, fraturada, deixa apenas vestígios e restos daquilo que escapa à simbolização. A leitura se dá num local de permanente risco: o leitor, frequentemente, não sabe como reagir diante da obra de um autor que experimentou o traumático ou irrepresentável. Simultaneamente, portanto, impõe riscos a uma crítica que procura resistir à tendência de tornar-se uma “camisa de força” ou “máquina de desleitura” (ou que, de maneira reativa, rejeita o vivido e sua transformação operada através da experiência da escrita). […] (p.24)

E a narrativa da vivência terrível era, de fato, necessária aos sobreviventes. Intriga-nos, contudo, a escrita de Celan efetuada, em sua integridade, em língua alemã, com tudo o que ela abarca.

Esta, transmitida a Paul Celan por sua mãe, fora a mesma daqueles que a assassinaram, tornou-se um tema caro e recorrente para o poeta – a questão da Muttersprache-Mördersprache. Na mesma língua escrevia seus poemas e a ela dedicava seu trabalho acadêmico em Paris, convivendo permanentemente com essa duplicidade, como se a língua pudesse atravessar a catástrofe e restituir-se. Talvez lhe parecesse possível ressignificar a experiência pregressa através da escrita nessa língua que, em sua ambivalência, entranha a língua materna, a poesia, a tradição, mas, também, a difamação, a humilhação e o que há de mais terrível e avesso à simbolização, levando-nos a pensar na função da escrita em Celan.

Aos aspectos da vida de Paul Celan que agregam singularidade a um entrelaçamento entre a experiência e a escritura – e que suscitam, por certo, interesse nesta investigação – soma-se o fato de que se trata de um autor que, de maneira trágica, põe fim à própria vida. O autoextermínio de um escritor evoca, também, efeitos de leitura paradoxais: por um lado, a obra passa a ser lida por este viés, levando ao diagnóstico do escritor e à busca dos sinais que anunciam este terrível destino na obra; por outro, em contrapartida, alguns buscam, de maneira defensiva, ignorá-lo, partindo para uma “análise puramente formal” e “desvitalizada do texto”, como se fosse possível tratar indiferentemente o sofrimento enredado na contiguidade entre o vivido e o escrito. […] (p. 24-25)

[…]

Este exprimir através do silêncio mostra que há, na lírica celaniana, uma “ética da representação”, sempre atrelada à sua técnica, incorporando o silêncio na sua poesia de maneira a não produzir um excesso de aisthesis em sua apresentação do real, que “cega” e inviabiliza a reflexão sobre a mesma. Formulamos, desse modo, a noção de testemunho metonímico – diferente do testemunho mimético (imitativo), que teria uma pretensão totalizante. O testemunho metonímico é um índice, e assim é, ele também, uma espécie de “estilhaço” resultante da explosão da catástrofe. […] (p.173)

A palavra é, ela mesma, um cadáver que deve ser lavado, como no poema:
Uma palavra – bem sabes:
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um cadáver.

Vamos lavá-lo,

vamos penteá-lo,

vamos voltar-lhe os olhos

para o céu.

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Encontramo-nos no âmbito do indizível – não aquele que está além da linguagem (da “mística inefável” ou do “sublime espiritualista”), mas justamente, em sua materialidade, aquilo que está aquém da linguagem. […] (p.174)

Mostram-se os dois aspectos da escritura (em especial no âmbito do trauma): aquele que restaura, da língua que torna possível a articulação; e o disruptivo, vinculado à definição psicanalítica de sublimação sob a égide da segunda teoria das pulsões, para o qual a única maneira de deter a escritura e a revivescência do terrível parece ser a morte. A dor das e nas palavras (que são sem exterior): é somente nelas e através delas que se pode restaurar o que fora fraturado, mas elas não oferecem garantias àquele que realiza tal imersão. O uso das palavras é feito, na poesia, para se proteger daquilo que parece advir senão das mesmas. (p.175)

 

[Trechos de: CAMILO DE OLIVEIRA, Mariana. “A dor dorme com as palavras”: a poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mariana Camilo de Oliveira é natural de Belo Horizonte, MG. Formou-se em Psicologia e em Letras Germânicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é Mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Reside atualmente em Buenos Aires, Argentina, onde atua como docente na área de humanidades de Centro Cultural Ricardo Rojas, Universidad de Buenos Aires – UBA, e atua na área de tradução literária e técnica das línguas alemã, inglesa e espanhola. É autora de “A dor dorme com as palavras”. A poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011),  co-autora de Por uma literatura pensante – Ensaios de literatura e filosofia, org. Gustavo Ribeiro e Eduardo Veras (Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2012 [no prelo]), tradutora, juntamente com Georg Otte, de FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico (Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010) e conta com publicações de artigos e ensaios nas áreas de literatura e psicanálise. E-mail: marianacamilo@yahoo.com.br

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