A dialética da autoestrada


(capa: Lilli Ferreira)

              Conheci Ana Maria Isabell na minha militância Sadomasoquista; foi em um dos encontros promovidos pela Bella, no Clube Dômina. Não foi nenhuma festa noturna; foi uma tarde de debates em que eu, o Glauco Mattoso e a Wilma Azevedo fomos convidados para falar de literatura BDSM. No final do debate, uma mulher se aproxima – “sem sexo, só poesia”, como diria o poeta Delmo Montenegro – e me diz que gostaria de conversar. Embora doze anos mais nova – eu sou de 1964 –, praticamente passamos pelas mesmas coisas, ainda mais se considerarmos os avanços da literatura e do sadomasoquismo.

              As questões sexuais para os BDSM não são as mesmas das demais minorias sexuais, como gays, lésbicas ou transexuais. Nos atos sexuais, sem dúvida, há erotização dos sujeitos, mas também é preciso considerar a erotização dos ritos; em outras palavras, há sexualidade no que cada parceiro é e também no que os parceiros fazem. Se gays, lésbicas e transexuais enfatizam a diversidade sexual dos sujeitos eróticos, o sadomasoquismo, o exibicionismo e o voyeurismo, por exemplo, enfatizam os ritos. Desse ponto de vista, o conceito de minoria pode ser estendido a todo aquele que estaria distante do que é considerado ritual sexual padrão, quer dizer, na nossa cultura burguesa e protofascista, a monogamia heterossexual, com ritual ligeiro, sempre em posição de missionário, isto é, o homem por cima da mulher.

              No Brasil, o SM é pouco discutido – o mundo noturno do SM não combina muito bem com a cultura tropical brasileira –. Entretanto, somos alguns… na literatura, embora autores como João do Rio, no começo do século XX, aproximem-se desse universo, o marco inicial do BDSM brasileiro é, sem dúvida, a Wilma Azevedo.

              O primeiro conto BDSM que li na vida foi da Wilma, chama-se “Submissão”; li na revista Status, uma revista masculina dos anos oitenta do século passado. O BDSM exclusivamente literário, porém, um pouco distante das preocupações jornalísticas da Wilma Azevedo, só se realizaria plenamente na obra do Glauco Mattoso; com o Glauco, o sadomasoquismo torna-se tema de várias formas literárias: poemas, contos, romances.

              Com a intenção – e até mesmo necessidade – de tematizar essa diversidade sexual, quando comecei a escrever prosa e poesia, escrevi sobre sadomasoquismo. Meu primeiro romance, “Amsterdã SM”, é um romance BDSM; meu primeiro livro de poemas, “O retrato do artista enquanto foge”, é quase todo composto de poesias BDSM. Ana Maria Isabell queria, justamente, conversar comigo sobre como tematizar o sadomasoquismo, não apenas nos significados da poesia, mas em suas formas literárias. Tenho preocupação semelhante; meus poemas eróticos são, antes de tudo, sonetos, madrigais, haikai, poesia concreta.

              Isabell é médica; a mesma profissão do poeta concreto brasileiro Edgard Braga, de quem gosto bastante – tanto que tenho dois poemas seus tatuados no corpo –. Além de apreciar a poesia do Braga, Isabell gosta de outras artes experimentais, por isso é bem fácil dialogar com ela a respeito do sadomasoquismo e de suas expressões por meio de poesias visuais, concretas, conceituais. Esse experimentalismo, tanto poético quanto erótico, é o que dá forma ao livro “A dialética da autoestrada”, que é também o título do primeiro poema. Não se trata, nesse poema, necessariamente de poesia visual, mas da distribuição do tema ao longo de pequenas estrofes, formando pequenos conjuntos relativamente autônomos, expressa no mosaico feito das muitas sensações vividas por quem fala nos versos.

              Que tema seria esse, dividido prismaticamente em séries e estrofes? Um tema BDSM, constante em sua poesia – sendo possível defini-la por meio dele –; especificamente, um poema podo, no qual a narradora – o poema está no feminino, marcado, entre outras classes de palavras, nos adjetivos – expressa suas sensações ao caminhar descalça por uma autoestrada. “Aconteceu comigo”, isso ela me contava, “resolvi fazer essa experiência auto erótica, sexo comigo mesma ao longo da estrada”. Foi em uma das praias do litoral paulista; ela voltou caminhando descalça da praia até a casa em que se hospedava, pelos acostamentos da rodovia… “nada como se arriscar a ficar machucada”.

              O livro é tanto manifesto experimental quanto manifesto BDSM; Isabell traduz seu masoquismo nos muitos modos da poesia experimental se expressar. Vou comentar, em linhas gerais, alguns desses procedimentos, assim como as referências a alguns poetas ou poemas que consegui perceber:

              (1) há recorrência às poesias visual e sonora; em “sete poemas sobre sete dores”, no poema 2, ela faz um haikaicom o desenho de anéis de arame farpado em cinco-sete-cinco anéis:

              (2) em “três poemas com interjeições de prazer e dor”, ela combina poesia visual e sonora, eis o poema 1 dessa série:

              (3) há recorrência ao letrismo, isso se vê em “sm em três poemas visuais”, eis o poema “bondage letrista”:

              (4) Ana Maria cita poetas da poesia experimental portuguesa; em “sete poemas sobre sete dores”, o poema 5 é inspirado em “Tijoleira”, do Alberto Pimenta:

se eu quero enlouquecer?
ficar bem alta, quase suspensa
entre a laje e o teto?
cravo
crivo
cara
cera
cardo
cerdo
cerda
corda
carpo
corpo
certo
corto
curto

              (5) da mesma serie anterior, o poema 6 é inspirado em “O interregno”, da Ana Hatherly:

o que, justamente, não incomoda
é o tempo transcorrido entre o primeiro nó
e o último, a dor percorre tudo
isso em forma de curva

o e, u a en e, ão in o o a
é o em o an o i o em e o i ei o ó
e o ú i o, a o e o e u o
i o em o a e u a

qu , j st m t , n c m d
t p tr sc rr d tr pr m r n
lt m , d r p rc rr t d
ss f rm d c rv

              (6) no poema 2 da série “três poemas feitos sob arame”, há referências a artistas performáticos que também dialogaram com a dor, como Pyotr Pavlensky e Singalit Landau:

Pyotr Pavlensky
enroscado
em um rolo de arame farpado
nu
em frente à Assembleia Legislativa de São Petersburgo
na Rússia

Singalit Landau
dançando hula
com um bambolê feito de arame farpado
nua
entre Jaffa e Tel Aviv
em uma praia de Israel

            Adepta do “we fuck alone” – como sugere o videoartista Gaspar Noé –, Ana Maria Isabell parece personagem de história em quadrinhos.

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Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior,
confira minha coluna “Leituras de um brasileiro”

http://www.cartamaior.com.br/

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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