A claridade marítima da poesia


A claridade marítima da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

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Há autores tão intensos que deveriam ser enterrados no mar. Como a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que faleceu aos 84 anos. Seu obituário não é o da terra, da enxada e do chão, mas da lonjura e das ondas, do baile áspero e inesperado nas pedras. Seu verso tornava o corpo mais salgado. Quando a pele de sua escritura recebia o espasmo de um lábio, oferecia toda a sua sede como recompensa. A autora de 40 volumes de poesia e prosa, premiada com distinções máximas como o luso-brasileiro Camões (1999) e o espanhol Rainha Sofia (2003), é uma legenda em Portugal e, por incrível que pareça, permanece inédita no Brasil.

Seu nome aristocrático e longo contrastava com os versos curtos, incisivos, flutuantes. Estava completando 60 anos de lírica, desde seu primeiro livro surgido em 1944, quando tinha 24 anos, sob o título genérico de Poesia. O último legado que deixou foi a encadernação leve e hipnótica de O Búzio de Cós (1988). Sophia arrebatava (seduzir era pouco). João Cabral de Melo Neto (de pia batismal que não perdia de extensão para ela) dedicou-lhe um poema em A Educação pela Pedra (1965), que dá a exata dimensão de sua importância: “Sofia vai de ida e de volta (a usina); / ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima, / e usando apenas (sem turbinas, vácuos) / algarves de sol e mar por serpentinas. / Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal, / em cristais (os dela, de luz marinha).”

Uma de suas diferenças é que não fazia uma poesia derramada, confessional, declaradamente feminina. Continha o gesto. “Passam os carros e fazem tremer a casa.” O timbre sóbrio e clássico de quem muito se calou antes de falar. Misturava a serenidade com a abstração, a metafísica com a adoração do mar. “A luz me liga ao mar como a meu rosto. / Nem a linha das águas me divide.”

Só seguia a lei do desejo. Emergia mistérios e dúvidas, interrogava como sua forma de afirmar. Empregava somente as palavras que havia conquistado. Vocabulário simples, límpido e preciso, sem academicismo, com idéias transparentes e organizadas.

Sua atualidade é antiguidade, fascínio órfico, igualdade entre deuses e homens, como em gravuras da Grécia Antiga. Tem a nobreza da permanência. Contornou seu país, metaforicamente, pela linha litoral. Contrariando os filósofos, banhou-se mais de duas vezes na mesma água. Encontrou e cuidou de Deus na orla como quem lava a ossada de uma baleia. Enxergou o longo braço do mar, com “as ilhas na mão”. Não tecia uma poesia de exploração marítima, de aventura, mas de espera, fincada no senso de observação incomum, farol brumoso que sinaliza os caminhos para a frota. Preferia ficar diante das janelas do que das portas. Não partia desesperada para fora do corpo, se repartia. Ficou para narrar e não esquecer de quem viajou para trazer os lugares de sua imaginação para perto de seus olhos. Utilizou seu fôlego épico ao enraizamento. “Tudo em mim se cala para escutar o chão de teu regresso.”

O futuro consistia numa espécie de surpresa do passado. Sua crença não era resignação, entretanto, alegre paciência de entender o ritmo de cada idade. Sabedoria de compreender e ouvir o sonho em cada pessoa. Ampliava os versos de Homero, em Odisséia: “antes ser na terra escrevo de um escravo do que ser no outro mundo rei de todas as sombras”.

Mandei para o largo o barco atrás do vento
Sem saber se era eu o que partia.
Humilhei-me e exaltei-me contra o vento
Mas não houve terror nem sofrimento
Que a praia não trouxesse,
Morto o vento.

Suas descobertas são puras, maravilhamentos miúdos entre o visível e o invisível, tal esse medo de ser informada de que o vento voltaria morto das águas. Reconhece no vento seu próprio marido, reservando a si o pudor da notícia e da futura viuvez. Sophia media os passos, diferenciava o que podia ser visto de jeito uniforme pela pressa. Um exemplo: “o sol é pesado e a luz leve”. A simplicidade arejava a respiração. Cada necessidade resplandecia em seu lugar.

Em O Cristo Cigano, traça um perfil das pessoas sensíveis, “não capazes de matar galinhas porém capazes de comer galinhas”. Ele termina o texto com um pedido ferozmente manso, dizendo as verdades sem levantar o tom da voz: “perdoai-lhes Senhor / Porque elas sabem o que fazem”. Sophia respeitava o avesso, o impacto do repuxo, desarrumando frases e destinos prontos. Nada podia ser somente a aparência. Ensina que o amor separa mais do que o ódio. “Separados fomos por cítaras e canto / Como outros por prisões ou por espadas.”

Literatura, de acordo com sua visão, era uma consciência mais funda do que a inteligência, uma fidelidade mais pura do que poderia controlar. Os versos apenas repercutiriam os dias densos, tensos. Escrever significava louvor e protesto, o rigor de não deixar nada para depois. “A poesia não me pede propriamente uma especialização, pois a sua arte é a arte do ser”, conceituava em Arte Poética II.

A escritora perseguia a si, com elegância do se manter unida até o fim, de não dispersar as palavras para longe de seu domínio. Enquanto a maioria dos escritores tenta se multiplicar e se dividir para evitar a repetição, Sophia se pacificava em uma lealdade inalterável a sua origem. Tinha a cosmovisão de uma Cecília Meirelles e a feitiçaria metafórica de Clarice Lispector. Já era em vida tão grande quanto Jorge de Sena, que não deixou de lhe fazer uma pergunta, um tanto estarrecido: “como quem pode matar-te?”

Ninguém pode matar o que não viveu para morrer. Sophia vivia seu merecimento. Ela costumava dizer que sua lembrança mais longínqua era a de um quarto refletido de azul, onde uma maçã enorme repousava na mesa. Não conheceu desertos, bastaram as dunas. Preservou essa imensidão marítima na casa a ponto de elaborar a inscrição: “Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar”.

Seu poema buscava a perfeição anônima, o cântico solar. O verdadeiro poema luta contra o autor, ansiando pelo anonimato. O autor que se considera maior do que seu poema está fadado ao autoritarismo e à displicência. Amar é disciplina. O poema não pode ser totalitário, ele só se faz na doação, depois da escrita, no leitor.

Resistindo ao excesso verbal, Sophia abdicava do que não comovia. Educada para as pausas mais do que para música. Favorecia os mitos mais do que as histórias. Ela poetiza para fundar o silêncio, não aboli-lo. Não se prende a uma caligrafia, e sim ultrapassa a letra em nome da memória visual. “Deixa-me limpo / O ar dos quartos / E liso / O branco das paredes. // Deixa-me as coisas / Fundadas no silêncio.” Fala para contentar a mudez. A mudez das coisas apetecidas e saciadas. Nela, o poema talvez seja a responsabilidade de viver, o máximo que se pode chegar da liberdade.

 

 

 

[Publicado originalmente na Revista Agulha]

 

 

 

 

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Fabrício Carpinejar é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, jornalista, poeta e escritor, com dezenas de livros publicados e ganhador de inúmeros prêmios. Filho dos poetas Carlos Nejar e Maria Carpi, nasceu em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. É cronista, blogueiro e tuiteiro. Blogue: http://carpinejar.blogspot.com.br/ E-mail: carpinejar@terra.com.br




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