16 anos sem Caio Fernando Abreu


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………..Um libertário apaixonante e apaixonado sob o sol da contracultura

 

Uma noite, fiz a Beleza sentar-se no meu colo. E achei amarga.
O amor está para ser reinventado.
Por delicadeza, perdi minha vida
(Rimbaud)

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Todo escritor é fruto de um momento histórico particular. Como sujeito de seu tempo, sua obra reflete sua época, seja nos temas que discute, seja nos modos de discuti-los. A arte engajada de Brecht, por exemplo, não seria possível sem o marxismo, a poesia surrealista de Breton não existiria sem a psicanálise, o futurismo de Marinetti não nasceria sem a revolução industrial. Caio Fernando Abreu é cria dos anos 70: sua obra, assim, é atravessada pelos ventos da contracultura.

Nos anos 60, em plena ditadura militar no Brasil, havia uma espécie de “guerra santa” estética, polarizando a arte: de um lado, os artistas engajados; de outro, os independentes (ou “alienados”, no jargão da época). O homem era visto na perspectiva do sujeito universal do marxismo, interessava sua dimensão de sujeito coletivo: o homem era uma categoria sociológica, uma abstração teórica. Interessava falar do operário, do camponês. Falar do homem particularizado, individualizado, com suas dores e inquietações existenciais, com seus problemas pessoais, com seus dilemas passionais, era visto como desvio pequeno-burguês: condenação certa no tribunal da santa inquisição stalinista.

Nos anos 70, ainda sob as garras dos milicos, há uma mudança na perspectiva estética, sob a influência dos ventos da Primavera de Praga, do Maio de 68, do pacifismo anti-Guerra do Vietnã, do festival de Woodstock. Ganha a cena agora o homem de carne e osso, o sujeito individual atormentado por seus dramas pessoais, o homem que ama, que sofre por amor. A categoria operário, se dá conta de traduzir as noções de miséria, de exploração econômica, de desigualdade social, é muito genérica e imprecisa para traduzir os dramas da vida ordinária, os problemas particulares que afligem as mulheres, os negros e os homossexuais, por exemplo. Enfim, as “utopias fragmentadas” de que fala Foucault.

Um grafite nos libertários muros franceses de maio é bem emblemático a respeito dessa mudança de perspectiva na transição dos anos 60 para os 70: “Aquele que fala da revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver”. Em outros termos, era uma maneira de questionar o caráter do que se entendia por revolução: uma revolução que mantém a mulher presa a uma moral machista, submissa, sob o jugo do homem, não é digna desse nome. Uma revolução que não respeite as diferentes orientações sexuais, as diversas formas de prazer, as plurais formas de amar, não é passaporte para um mundo libertário. A revolução prometida pelos coveiros stalinistas é, assim, apenas uma outra face da opressão: o poder muda de mão, mas o autoritarismo segue dando o norte, à maneira da “revolução dos bichos” de Orwell.

Woody Guthrie, guru de Dylan e dos músicos de protesto, escreveu em seu violão folk: “arma de matar fascistas”. A máquina de escrever de Caio F. era uma arma contra toda forma autoritária de poder. Sua obra, vista em seu conjunto, é uma espécie de “barricada invisível” contra toda forma de preconceito, de ódio, de intolerância: seus contos, suas novelas, suas peças, suas cartas, seus romances são um antídoto contra qualquer manifestação de tirania.

Para Caio, o que confere à vida uma dimensão épica não é o compromisso histórico do soldado bolchevique, a sua luta contra a ordem capitalista. Como diziam os anarquistas e os surrealistas na revista Le Libertaire, o mais importante é o mais sutil: o capitalismo do espírito, o capitalismo das consciências. É contra isso que insurge a pena do escritor. A grande epopéia da vida humana, assim, é o amor: é no sujeito apaixonado que reverberam as repressões menos evidentes, as grandes travas, a “microfísica do poder”, a repressão que age nos capilares, penetra nos poros, direciona o olhar, modula os comportamentos. Em suas palavras: “o bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor”. Mudança de ponto de vista: ao invés de olhar para o grandioso, o heróico, trata-se aqui de procurar Deus nas miudezas, de ver as “grandezas do ínfimo”: é aí que reside o “humano, demasiado humano”. É como se dissesse que, para se chegar à revolução coletiva, é necessário primeiro passar por uma revolução individual.

É esse o sujeito que assume a cara de mil personagens na galeria de Caio F. Sem a pretensão de unidade, sem a ilusão de coerência: é o sujeito estilhaçado, em crise, fragmentado que fala em sua obra. Homens em busca de um sentido para suas existências, tentando colar os cacos, experimentando novas formas de vida, diferentes matrizes de pensamento, diversas possibilidades de se inscrever no mundo. Aliás, no conto “Os Sobreviventes”, do livro Morangos Mofados, há uma passagem que exemplifica bem o impasse desse ser angustiado em busca de um lugar ao sol: “já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?”.

É bem isso: “e agora, José?”. O difícil não é existir, como diria sua santa de cabeça Clarice Lispector: o drama é saber que se existe! A vida não tem um sentido apriorístico, não segue script: a gente é que dá sentido a ela, existindo, escolhendo. Afinal, como dizia Sartre, cujos ecos existencialistas também se fazem ouvir em Caio, o homem está condenado a ser livre. E a liberdade traz consigo a angústia da escolha e o peso da responsabilidade: ninguém pode responder por nós – “agora o que faço?”. Daí um dos aforismos do filósofo: “eu sou o que eu faço do que fizeram de mim”…

Que poder de síntese neste pequeno trecho de “Os sobreviventes”, emblema da inscrição do autor nos contraculturais anos 70: a presença do oriente na ioga, na acupuntura, na macrobiótica,  a procura da ampliação da consciência nas drogas, os ecos do marxismo e do engajamento político, a psicanálise chamando a atenção para o sujeito individual em contraposição ao coletivo, a loucura e os hospitais psiquiátricos, o suicídio como saída individual diante da falência das utopias… Está tudo aí, estão todos aí: a convivência dos contrários no mesmo indivíduo, negando a facilidade dos maniqueísmos. Não se trata de isto ou aquilo, mas de isto e aquilo. Todos juntos, reunidos numa pessoa só, como canta o mutante Arnaldo Baptista. Tudo ao mesmo tempo agora, como gritam os Titãs. Caio mostra que o grande dilema é resolver uma pequena distância, que parece, contudo, incontornável: fazer o dedo de Deus tocar o dedo de Adão. A grande arte é a arte do encontro. Como Michelangelo traduziu em imagem e Lacan pensou em palavras…

E Caio problematizou poeticamente em bela prosa, neste trecho de “Pela Noite”, terceira e última novela do livro Triângulo das águas: “Sei, sei. Você vai perguntar: mas houve um erro? Bem, não sei se a palavra é essa, erro. Mas estava ali, tão completamente ali, você me entende? No segundo seguinte, você ia tocá-la, você ia tê-la. Era tão. Tão imediata. Tão agora. Tão já. E não era. Meu Deus, não era. Foi você quem errou? Foi você que não soube fazer o movimento correto? O movimento perfeito, tinha que ser um movimento perfeito. Talvez tenha demonstrado demasiada ansiedade, eu penso. E a coisa se assustou, então. Como se fosse uma fruta madura, à espera de ser colhida .É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida . É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida por alguém que é exatamente você. Não aconteceria com outro. Depois quando ela foge, penso que não, que não era uma fruta. Que era um bicho, um bichinho desses ariscos, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo”.

De novo, a grande batalha do homem não é a luta de classes, mas a epopéia do amor: a luta pela arte do encontro. Como dizia Gérard Legrand na revista Le Libertaire: “Jamais, talvez, tanto quanto hoje, o amor foi ultrajado, reprimido e aviltado (…) esmagar o amor sob os golpes conjugados da miséria, da ignorância, do terror policial. A luta é fundamental: o triunfo do amor seria a ruína da pseudocultura cristã, a própria aurora da liberdade. Ao pé da letra, cada um desses triunfos parciais que são as uniões de dois seres sinceros e apaixonados ao ponto de apostar sua existência sobre seu encontro já estremece as colunas da caserna de orações. (…) Nada pode fazer com que o amor não seja um momento fora do tempo, o único estado de consciência, talvez, em que a existência individual se liberta de seus limites”.

Ah, a epopéia do amor: além de vencer a resistência do outro, para a conjunção das carnes e dos espíritos, ainda há que se vencer os outros. Nunca se é feliz de uma vez por todas, para sempre: a luta é diária – derrubar as muralhas dos ódios, as cercas dos preconceitos, as barreiras das intolerâncias… Que luta! Quanto ultraje, quanta repressão, quanto aviltamento! No conto “Terça-feira gorda”, esse percurso narrativo é traçado de modo emblemático: dois homens se aproximam, se fundem e são violentados pela gestapo de plantão. Depois do paraíso do encontro, o céu da separação: o amor esmagado pelos golpes da ignorância. Com a palavra, o próprio Caio F.: “Você é gostoso, ele disse. Não parecia bicha nem nada: só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. (…) Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz  uma cruz com a ponta da faca na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior rosado. Você sabia, eu disse, que o figo não é uma fruta, mas uma flor que se abre para dentro. O quê , ele gritou. O figo, repeti. (…) Mas vieram vindo, então, e eram muitos (…) O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. (…) Primeiro o corpo suado dele, dançando em minha direção. Depois as plêiades, feito uma raquete de tênis, no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”.

A conjunção “mas” é reveladora, mecanismo linguístico que expressa adversidade, contrariedade: depois do encontro, não há happy end – “Mas vieram vindo, então, e eram muitos”. Sempre há os outros, muitos outros, muitos outros olhares policialescos… Há sempre um mas no meio do caminho. Ah, Caio, “o Inferno são os outros”. E o Paraíso também! Ainda bem: por isso é que a gente prossegue, apesar de tudo a pesar… Para que tudo fique leve, até quando alguém nos levar… Deus e o demo vigem no homem, diria Riobaldo: “viver é muito perigoso”. Como você gostava de repetir: “A tragédia é o estado natural do homem”. Mas não sentido fatalista. Tragédia no sentido nietszchiano: o otimismo é a superficialidade; o pessimismo é a decadência – o que deve mover o homem é o otimismo trágico. Trágico porque tudo caminha para a finitude. Otimismo porque precisamos prosseguir – porque estar feliz, dizia você, é nossa melhor vingança! Porque só nos move o que nos comove!

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em co-autoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com

 




Comentários (3 comentários)

  1. Fred Silva, Morangos Mofados: um dos primeiros livros da geração de 1980 que li com grande estupefação.Surpreendente!
    12 fevereiro, 2012 as 21:34
  2. Carol Cleop, Não que minha opinião seja de grande referencia aqui, mas poucas vezes um texto prendeu minha atenção tão fortemente e me despertou tanta curiosidade.. Maravilhoso!
    13 março, 2012 as 3:04
  3. Moreno Pessoa, Bravo, Paulo, meu caro comparsa nas letras! Mais um presente literário que nos legou. Grato demais, Moreno Pessoa. o/
    16 agosto, 2013 as 1:06

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