A tumultuada jorgíada


A tumultuada jorgíada ainda será Paideuma para Haroldo de Campos

……….[Extraídos de As aparições, Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1966]

 

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A fortuna crítica do poema Invenção de Orfeu pode ser comparada ao significado político do Brasil para o mundo nos últimos quinze anos: do luxo ao lixo, para usar dos termos de um de seus “piores” leitores, Augusto de Campos. Tal guerra de leituras e julgamentos estéticos entre nossos grandes escritores (Murilo Mendes versus Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo), neste caso, não é simples fruto da subjetividade do gosto ou de aferramento a concepções estéticas divergentes. Com exceção do posicionamento concretista, que me parece bastante vinculado a uma vontade de primazia[1] e a uma disputa pela dominância do campo literário, a que eles, como vanguardistas exemplares, desejaram e conseguiram ocupar com táticas de milícia (tomando como modelo o vanguardismo da fase heroica, noves fora talvez o creacionismo quase solitário de Vicente Huidobro e sem dúvidas o desvairismo de Mário de Andrade, que expressamente não queria seguidores), à exceção dos concretistas, dizia eu, a voraz discrepância dos juízos estéticos a respeito do longo poema limiano reflete, na verdade, algo que considero constitutivo dessa Suma Poética de 1952: as intersecções entre o belo e o grotesco, entre a técnica e o erro, entre o musical e o prosaico, entre o órfico e o sirênico, entre natura naturans e natura naturata. São elas que erigem o “medonho teatro, o templo uivado” da Invenção de Orfeu.

Quem melhor se aproxima da compreensão dessa estranha ubiquidade estética-antiestética é meu conterrâneo Mário Faustino, que publica em sua célebre coluna “Poesia-experiência” no Jornal do Brasil (durante sete domingos entre julho e setembro de 1957) uma enxurrada de contradições intitulada “Revendo Jorge de Lima”. Ao mesmo tempo, um dos mais grandiloquentes no time dos defensores ―“A vasta poesia começa com a Invenção de Orfeu.”― e uma sumidade no dos detratores, Faustino poderia talvez dar por velha minha hipótese, tendo em vista sua lapidar expressão: “caos ante e antiestético”. Porém, a proeminência de seus juízos depreciativos com foco em erros de versificação e incapacidades de sustentação, “má dicção, gagueira, pé quebrado, ruim versificação, incapacidade de desenvolver e sustentar a frase musical, o jogo metafórico, a seqüência lógica, a sintaxe geral ― verbovocovisual, logofanomelódica”, e sobretudo as condenações de “mau gosto” no emprego de palavras chulas, de frases meramente prosaicas ou mesmo de imagens estranhas e extravagantes deixa patente que Faustino não percebeu o alcance constitutivo do gesto antiestético, reduzido a um jogo de “perde-e-ganha”.

Na conferência “Mário Faustino ou a Impaciência Órfica (Depoimento de um Companheiro de Geração)”, proferida por Haroldo de Campos em 1986, em Teresina, o destemido, combatido e combatente poeta-tradutor afirma com todas as letras que o motivo do afastamento ou do “desencontro” entre Faustino e o coletivo Noigandres não fora o interesse manifesto daquele pela “quantidade em arte”, o “poema longo” ou o barroco, mas sim a eleição de Jorge de Lima e sua Invenção de Orfeu como mártires dessa empreitada: “O Camões (e o Góngora) à mão foram (hélas!) Jorge de Lima”. Em consonância com o dilema da primazia sugerido em nota de rodapé, é extremamente curioso que Haroldo de Campos levante armas com tanto afinco em direção ao poema limiano. Logo ele, que resgata Odorico Mendes da marginalidade e o alça como grande tradutor do nosso Oitocentos, transcriador avant la lettre que já havia sido absorvido e retraduzido por dezenas de versos na Invenção de Orfeu, obtidos a partir de montagem não simplesmente da Ilíada, mas da Ilíada Brasileira, segundo a denominação do próprio Haroldo para a transluciferação odoricana de Virgílio. Também não deixa de ser notável que os exatos re/visores de Sousândrade e d’O Guesa (1868-1902) ―poema igualmente calcado na fusão de gêneros, entre a memória, o mito e a política, e no qual a organização estrutural passa longe de ser o ponto forte― registrem uma crítica tão displicente à “mal ajambrada” Invenção. Em outra nota de rodapé, Haroldo de Campos sugere que “O Guesa, muito antes e muito mais do que a tumultuada jorgíada do rapsodo alagoano, poderia ter servido de ponto de referência brasileiro para o projeto faustiniano.”

Mais curioso e interessante do que isso, somente a mudança radical de enfoque do próprio Haroldo de Campos, quando em 1999, num texto que integra o catálogo da exposição Brésil Baroque, entre ciel et terre, ocorrida no Petit Palais, depois de percorrer sintética mas amplamente as manifestações barrocas na poesia e no romance brasileiro, de Gregório de Matos e Guerra a Guimarães Rosa (mencionando sem falta a sua famosa querela com a Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido), Haroldo, para concluir retomando o tema central da poesia e da “survivance de traits de style baroque parmi nous, il suffirait de mentionner […] trois noms” (hélas!), nesta ordem: Jorge de Lima, Odorico Mendes e João Cabral de Melo Neto, o primeiro deles, “auteur d’un long poème, Invenção de Orfus [sic!] (1952), manifestement néo-baroque, dans la diction duquel on trouve un écho de l’héritage de Camoès.” A esta altura, dada a incorporação camoniana ao manierismo realizada pelos estudos de Jorge de Sena e muito antes por Pound e pelo próprio Faustino ―apontamentos estes que constam, de relance, na conferência sobre “Mário Faustino ou a Impaciência Órfica”―, o bardo lusitano está longe de representar aquele signo de passadismo por meio do qual ainda comparecia na crítica do irmão Augusto de Campos: “Jorge de Lima é o poeta dos ‘retornos’: retorno ao soneto, retorno a Camões, retorno ao decassílabo”. Vale lembrar que A máquina do mundo repensada (2000), empreitada épica neobarroquíssima em decassílabos e terza rima, é reescritura palimpséstica-haroldiana de Dante, Camões e Drummond. Portanto, no texto para o catálogo da exposição internacional de nosso maravilhoso imaginário barroco (um ano antes da publicação de sua máquina do mundo), ao incluir a “tumultuada jorgíada” em seu paideuma e erigi-la como primeira manifestação do neobarroco brasileiro, Haroldo de Campos cessa de estranhar o louvor faustiniano a Jorge de Lima e, para muito além disso, ultrapassa ele próprio o drama da filiação. “O nexo o nexo o nexo o nexo o nex”

 

 

 

 


[1]       Ainda que a Invenção de Orfeu e o primeiro número da revista Noigandres tenham saído no mesmíssimo ano de 1952, não é fácil entender que haja qualquer disputa pela primazia entre programas estéticos aparentemente tão distintos, que poderiam ser até pensados como opostos, de um lado a máxima distensão, do outro a máxima contensão; o “poetamenos” contra o “poema talássico sempre recomeçado” (nas sábias palavras de Alexandre Eulalio). Mas um oblíquo drama de filiação começa a se descortinar quando se sabe que “no meio da década de cinqüenta […], a maior influência poética modernista entre as novas gerações era justamente a de Jorge de Lima ― o Jorge de Lima do Livro de Sonetos e da Invenção de Orfeu.” (diz José Guilherme Merquior). E as cortinas se abrem inteiramente quando se lê num crítico estrangeiro como John Nist ―detalhe de muita importância no contexto internacionalista dos Noigandres, ainda que se trate de um crítico completamente refratário ao concretismo― que Jorge de Lima seria grande representante no Brasil do Imagism, o que o torna, por conseguinte, um dos introdutores de Ezra Pound nas letras tupiniquins. É ainda da pena de John Nist uma arguta passagem sobre certo orientalismo em Invention of Orpheus: “In an attempt to identify himself with all created things, he destroyed every barrier of individuality. What he achieved in ‘Invention of Orpheus’ is a lucid kind of delirium, in which the metaphysical atmosphere is more Oriental than European.”. Para completar, novamente com Merquior, desta vez num ensaio publicado em The Cambridge History of Latin American Literature, outra figura muito cara ao grupo Noigandres, Octavio Paz (correspondente e admirador do procedimento ideogrâmico), tem sua melhor poesia alinhada à “descendência” ou “progênie” da obra limiana: “The obvious counterpart of Invenção de Orfeu and its progeny, on the Hispanic side, was not the erstwhile avant-garde verse of Huidobro, the wry Realism of Vallejo, or the neo-romantic Muse of Neruda. Rather, it was the poetry of Octavio Paz (b. 1914), from ‘Piedra de sol’ (1957) to Blanco (1967), because it was here that the concept and practice of the modern poem as such overcame the traditional episodism, the customary occasionalism of the romantic or modernista lyric.”

 

 

 

[Este texto é um recorte adaptado da tese “Carnifágia malvarosa: as violações na Suma Poética de Jorge de Lima”, que publica material inédito do poeta alagoano. Disponível na íntegra em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-11082016-151600/pt-br.php]

 

 

 

 

 

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Daniel Glaydson Ribeiro – hoje pesquisa Gestão da Inovação e Tecnologias da Informação e Comunicação, de volta a Sobral, Ceará. Em 2016 organiza o livro Almanach Muda, com o grupo Ausgang de Teatro, em que escreve o capítulo “Poesia Muda: Butes Ostranênio” (nadando rumo às sereias em http://www.academia.edu/23638307/Poesia_Muda_Butes_Ostran%C3%AAnio). Ora poeta nascido em Picos, Piauí, mantém seu inconsciente digital ao alcance de todos: scritura.wordpress.com

 




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