Vingança de Odorica


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Capítulo 1 — A praia

 

 

I

Odorica está por volta dos quarenta. Sorriso amarelo, covinhas, cabelos ruivos e ralos, a pele do braço molenga. Descobriu que o marido a traía. Alguém depositou um bilhete delator no vaso da samambaia. Isto a perturbou de maneira violenta, ferindo o brio, abalando a pouca autoestima e confirmando consciência de um projeto de vida falido.

 

II

Depois da discussão truncada —  não conseguia completar uma só frase — , sentiu-se idiota quando de relance se deparou com o porta-retratos de moldura descascada, cuja fotografia de cores desbotadas registrara os dois, marido e mulher, de perfil, os queixos apontados para cima, os semblantes emocionados no altar. Um noivo sem escrúpulos. Um crápula. Uma noiva estúpida. Uma pata.

 

III

Decidiu viajar. Antes resolveu passar a tarde no salão. Retocou as raízes dos cabelos, mudou o desenho da sobrancelha para um formato invertido algo da letra V. Pintou as unhas dos pés e das mãos de vermelho. Depois da estrada, a imagem obtusa no retrovisor, estacionou num pico, levantou os óculos escuros e deitou os olhos no mar. Ventava. O peito batia lento. Na pousada barata, depois de refletir um pouco, escolheu o quarto número oito; todos os quartos estavam vagos no meio de abril.

 

IV

Fim de tarde, Odorica resolveu ficar no quarto, descansar da viagem. Não ligou a televisão, nem o rádio enferrujado disposto na mesinha de madeira, nem mesmo acendeu a luz. Por detrás das janelas, o vidro embaçado pela maresia, acompanhou o esmaecer das cores, com os olhos semicerrados que ainda não haviam chorado, e que, de maneira estranha, emanavam um brilho seco, felino emboscado, ave de rapina. Permaneceu imóvel por um longo tempo. Seu rosto não se distinguia mais na escuridão da noite nova, resolveu tirar as roupas, descalçar as sandálias, tomar um comprimido, dormir.

 

V

Despertou com o grasnar de uma ave exótica. Sentia-se bem, embora o efeito do comprimido secasse sua garganta e lhe provocasse um engulho oco. Olhou-se no espelho redondo do banheiro, os lábios cinza. As maçãs do rosto ainda conservavam a mesma feição do retrato de noiva, o pescoço engelhado em dobras profundas. Os seios despidos tombavam no tronco ainda com graça e rigidez. Vaga, lembrou-se das razões que a levaram àquela pousada, e, como se todo o passado azedasse a boca, resolveu escovar os dentes e depois sorrir com todos eles refilados e amarelecidos para o espelho. Passou o protetor solar no corpo, e nele reconheceu um frisson, que animou o início do dia.

 

VI

Na mesa do café da manhã, dispunham-se, sob moscas gordas, bananas enegrecidas, fatias desidratadas de melões, pãezinhos duros, uma jarra de suco de goiaba, uma jarra de suco de laranja, cobertas por uma espécie de renda de acrílico, fatias brilhantes de queijo branco, uma garrafa térmica cujo adesivo escrito à mão identificava “café” e outra, disposta ao lado e assinalada com a mesma letra trêmula, “café com leite”. Serviu-se de uma fatia de queijo e de uma xícara de café ralo. Quase cuspiu quando sentiu o exagero de açúcar. Sorriu para a funcionária mirrada que por ali passava e, não recebendo retribuição, levantou-se com o bolsão a tiracolo, os motivos de tucano, e partiu em direção à praia. No caminho de terra vermelha e batida, reparou nos arames farpados enferrujados que delimitavam as cercanias e moldavam a estradinha até onde começava a despontar o mar.

 

VII

O sol ia calmo, quase branco. Odorica ouvia o bramido do oceano, o zumzum de vespas ocasionais e os resfolegar das sandálias na terra morna. Shlept Shlept. A visão mergulhava nos pés, as unhas vermelhas, que entravam e saíam do quadro. Ignorava o mar que se apresentava e crescia para cima e para os lados. Seguia cabisbaixa. Ela não estava propriamente triste, mas fruía um alheamento prazeroso, infantil, que dispensava palavras soltas, frases inteiras, imagens nítidas, lembranças. Não era nada, nem mesmo um ente vivo. Eram simplesmente dois pés brancos, ressequidos e pintados de vermelho que preenchiam a totalidade e o significado da vida. Entravam e saíam do quadro repetidas vezes. Até que encontraram a areia branca.

 

VIII

Odorica sentiu-se alegre ao perceber-se só. Rodou a cabeça por todos os lados e não viu ninguém. Levantou os braços, como se comemorasse uma conquista. O mar adiante, verde, chacoalhava contido. A extensão de areia seca, a extensão de areia molhada. O azul do céu, azul, azul. Só um rastro delgado e falhado de avião. Branco esmaecido, cinza. Depois começou a achar esquisito. Tudo bem que não estivesse no período de férias, mas nenhuma viva alma? Nem mesmo um siri, um cachorro perdido, um cavalo xucro para compor a paisagem? Parou de questionar, como que ordenando-se com autoridade — obedecia às próprias leis com subserviência —, e decidiu deitar-se sob a sombra do guarda-sol que trouxe na bolsa. Abriu-o e viu reluzir as cores do desenho da lona. Verde, marrom, laranja, rosa, roxo. Um pôr do sol havaiano, emplastrado, ornado de coqueiros tortos. Ao fundo, um mar cor de rosa, de plástico, emanava cintilante a mais pura paz.

 

IX

Sentiu preguiça do mar, de levantar. Deitou sobre a toalha felpuda que recendia ao cheiro do amaciante preferido. O cheiro das manhãs felizes, quando tudo dentro de casa parecia funcionar. O café pronto, o pão amanteigado, o desodorante do marido. O cheiro do ombro do marido era a mistura do desodorante com o amaciante. O cheiro do sexo do marido era a mistura do esperma com o amaciante dos lençóis, das calças, da cueca. Ele estava partindo para o trabalho, as camisas bem passadas, a barba feita, os olhos ainda inchados de sono. Ela deitava o rosto sobre os ombros dele e lá ficava até que ele a empurrasse docemente alegando atraso. Estou atrasado, Odorica. Hoje tenho uma reunião importantíssima, ainda preciso organizar umas papeladas. Passa essa bolacha, passa essa banana, vou comendo no carro. Tchau, Odorica. Bom dia para você, amor.

 

X

O sol já descia sobre o mar como no guarda-sol. Mas ali o céu se fazia estranhamente azul escuro, as pinceladas alaranjadas, antecipando a noite com sobriedade e mistério. Odorica permanecia seca, deitada sobre a toalha, imóvel. A expressão de estátua, transe velado. Brilhava o óleo natural do rosto. Calma. Antiga. O vento frio da noite nascia, anunciando desconforto. Levantou estremecida. E partiu dali.

 

 

Capítulo 2 – O banho

 

I

Seguiu a trilha de volta, escurecida. Cada passo suscitava medo, dúvida. Afinal, por ali devia haver cobras, escorpiões, tarântulas. Alguma cova recoberta de folhagens secas, ardil de onça. Ela morreria com areia na boca. Os vermes gordinhos da sua carne antiga. Ela veria o pé diminuir, perder as unhas, o corpo dos dedos, arroxear, morrer. Ela gritaria, Marido! Marido! Ela chamaria o Velho da Recepção, a Funcionária Mirrada. Todos surdos. Ninguém estenderia a mão.

 

II

Divisou as lâmpadas de tungstênio da pousada. Penduradas nos bocais por fios velhos, empoeirados. As luzes falhavam dançando ao sabor do vento. Respirou fundo. Esfregou os pés sujos no capacho imundo da entrada. Sorriu para o velho da recepção, que, sequer um esgar, disse “…noite”, a boca murcha. Pé direito alto, a cor azulada, desigual, nos cantos mofada, à parede pendurado o crucifixo. Benzeu-se sem prática, para o lado errado. Entrou no quarto, limpo e perfumado com desinfetante de eucalipto.

 

III

O corpo suado coçava. Grãos de areia na xoxota, nas orelhas, nos bicos dos peitos. Fleuma irritadiça. Preguiça de tomar banho. De descobrir o pinga-pinga da ducha. Quem sabe, sortuda, não tomar uns choquinhos e apanhar mais da vida? Abriu a nécessaire, o xampu aberto. O liquido viscoso, perolado, excessivamente cheiroso. Aloe Vera. Para cabelos tingidos e maltratados. Hidratação profunda, reposição da queratina, recuperação dos fios quebradiços, do brilho natural dos cabelos. O liquido viscoso banhando as cerdas macias da escova de dente. O liquido perolado infiltrado nas caixinhas delicadas de maquiagem. Importada. Lembrancinha da última viagem da Prima Nariguda. O liquido excessivamente cheiroso embrenhado nos obês, nos cotonetes, nas pinças, no curvex, nos grampos, nas lixas de unhas, nas amostras grátis de perfume francês. Embrenhado. Como o sêmen do Marido, na calcinha, no ventre, nas coxas, no lençol.

 

 

Capítulo 3 – Pavão

 

I

Acordou doída. Odorica se contorce na cama e vira para o lado. Um susto lhe estremece o corpo semidesperto: um pavão de penas erguidas observa Odorica do parapeito da janela. Os olhinhos do pavão lutam contra os olhos dela. O bicho a vence. Ela foge arfando quarto afora, vestida de camisola.

 

II

O Velho da Recepção e a Funcionária Mirrada mal percebem o vulto branco que rasga a entrada da pousada. Tudo permanece igual. O Velho coça o nariz e a Funcionária olha entediada para a cruz pendurada na parede e se persigna.

 

 

Capítulo 4 – Odorica foi pro espaço

 

I

Odorica corre pelo caminho de terra batida como se guiada por uma força atávica: ela corre porque tem que correr. Já até se esqueceu do pavão. Odorica corre e não pensa nada. Os fios secos dos cabelos vermelhos ricocheteiam suas maçãs ao ponto delas sangrarem em minúsculos talhos.

 

II

Odorica encontra o mar. O mar encontra Odorica. Suspiram. Com os pés fincados na areia Odorica ergue os braços e depois os deixa caírem sobre o rosto ensanguentado. Limpa as faces com as palmas das mãos secas. (O esmalte vermelho começa a descascar e se confunde com o sangue.)

 

III

Odorica cantarola uma canção de ninar enquanto caminha convicta em direção ao mar. Adiante vê-se um amontoado de pedras que adentram na água. O mar rebate forte nas pedras provocando uma espécie de bruma espumosa no céu. Sereno, eu caio, eu caio. Sereno deixa cair. Sereno da madrugada não deixa meu bem dormir.

 

IV

Antes de entrar no mar Odorica tira a calcinha. A camisola permanece no corpo. Odorica respira fundo e se persigna sentindo a água morna e revolta acariciar seus pés. Odorica procura uma pedra. Acomoda-se nela. Abre as pernas e levanta o rosto para o céu.

 

V

O mar bate e rebate entre as coxas de Odorica. A xoxota incha: Odorica sorri.

 

 

 

 

 

 

 

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Natércia Pontes é cearense e tem 31 anos. É autora de “Az Mulerez” (edição do autor) e organizadora de “Semana” (Hedra). Publicou contos nos jornais Folha de S.Paulo, O Globo, O Povo, Diário do Nordeste. Escreveu para as revistas piauí, Aldeota, Ocas, O Casulo, Cronópios, Caos Portátil, Sítio (Portugal), entre outras publicações. Há 10 anos edita o blog natercia.blogspot.com. E-mail: naterciapontes@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Marcio Rufino, Muito bom o seu conto. Vc conduz a personagens e situações interessantes e em riquezas de detalhes. Seu estilo é promoroso. Quero convidá-la a visitar meu conto A Moviemntanormalidade publicado neste site. Saudações.
    6 agosto, 2012 as 16:37

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