Viagem Solitária é tornar-se o que se é


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O que somos é construído pelo sedimento de nossas experiências, em nossa viagem solitária pela vida. Se por um lado existe algo que pareça uno em nossa identidade, ao ponto de podermos dizer “eu” e sentirmos que estamos sendo o mesmo ser numa contínua progressão, por outro é fácil reconhecer que nunca somos fixamente essa mesma pessoa, e que a alteridade nos habita e faz com que hoje sejamos diferentes do que já estivemos sendo.

Para quem, como eu, vive uma relação identitária esperada e naturalizada, não é comum que se questione sobre a alteridade que aflora em si. Dessa forma, quando eu me transformo e me modifico, seja porque amadureço, me amedronto, envelheço ou mudo um juízo sobre algo, sou ainda percebido como um contínuo. Há, no entanto, pessoas a quem sempre se pergunta quando foi que se tornaram o que são. Que têm suas identidades interditas, em algum grau, pelo confronto com o que nossa cultura estabeleceu como natural — embora não seja possível saber no humano aquilo que é natureza, pois somos demasiado humanos. Talvez pela patente e necessária luta por afirmar sua diferença e, em muitos casos, construir sua identidade, as pessoas a quem se pergunta tais questões ligadas ao devir são vistos como não naturais. Como se pessoas com identidades ditas naturais — ou seja, naturalizadas pelas convenções aceitas pela sociedade — também não se inventassem a cada dia.

Embora eu me invente quotidianamente, já que sou, como toda gente, rondado pela alteridade que me constitui em contraponto, ninguém jamais me perguntou, por exemplo, quando foi que decidi ser cisgênero ou me descobri heterossexual. E essas explicações, para mim, estariam na ordem do indizível, das coisas que não têm nome. Sou criado, porém, de uma forma a acreditar na ilusão de que essas características seriam uma espécie de natureza, não levando em conta todas as construções simbólicas, de origens múltiplas, agregadas ao que venho sendo.

Até há bem pouco tempo, eu não me sabia um homem cisgênero. Como a maior parte das pessoas cis, eu simplesmente ignorava esse termo. Isso equivale a dizer que, aos meus olhos, a minha identidade era experimentada como uma espécie de natureza. Isso não quer, no entanto, dizer que eu ignorasse que houvesse homens e mulheres trans*.

Para mim, reconhecer a cisgeneridade – e toda sua construção – é um ato político. É compreender, em primeiro lugar, que eu ocupo um lugar específico no mundo, que tenho privilégios específicos por conta disso e que é a partir desse lugar discursivo que meu olhar se conforma. É, ainda, não aceitar como uma natureza a construção de minha identidade. E é, também, reconhecer minha liberdade para me determinar perante o mundo.

Eu sou alguém a quem todos sempre identificaram como pertencente ao gênero masculino e me identifico dessa forma. Mas, ao reconhecer que isso é uma construção, ganho ferramentas para questionar certos papéis que me são atribuídos pelo simples fato de eu ser homem cisgênero e heterossexual. Papéis esses que fazem com que alguns direitos que tenho, e que deveriam ser comuns a toda e qualquer pessoa, sejam, na verdade, privilégios.

“Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois” (Leya, 2011), a autobiografia de João W. Nery, é um livro que testemunha a história de alguém cuja biografia frequentemente é vista como um desvio do natural. De escrita memorialista, trata-se do segundo livro de memórias do autor e se trata de uma releitura de sua própria história. Em 1984, clandestino em sua própria identidade, Nery publicou o livro “Erro de Pessoa: João ou Joana?”, que narrava seu périplo da infância até a chamada cirurgia de redesignação sexual, a que se submeteu em 1977. “Viagem Solitária” retoma e atualiza essa história, incluindo também a narrativa de sua vida desde então.

Como leitor, me fica evidente que se trata da autobiografia de alguém a quem certamente sempre se pergunta como foi que se tornou aquilo que é. E que responde, em muitos sentidos, a essa pergunta que lhe deve ter sido lançada inúmeras vezes. Lendo sua história, numa narrativa impressionante, fluida, vertiginosa e envolvente, pude ver que ele é um homem como eu. Na narrativa de suas memórias estão inscritos também seus valores. Percebo então que partilhamos muitas de nossas visões de mundo, embora não nos conheçamos, tenhamos histórias de vida bem distintas e sejamos de gerações diferentes — ele é um pouco mais velho do que meu pai seria hoje, se estivesse vivo. Creio que essa identificação de valores e de concepções de mundo acentue ainda mais a visão que se forma: ele é um homem como eu. E por que não seria? Ao mesmo tempo, por que é tão diferente e precisa lutar tanto para que o vejam assim?

Há nele algo, que é da ordem de sua história de vida, que nossa sociedade tende a enxergar como uma diferença de substância, uma outra natureza. Não é. Tanto a minha identidade quanto a dele são construídas nesse caldo simbólico chamado cultura. Mas como eu sou um homem cisgênero, sou interpretado como natural. Já ele é um homem trans*.

João foi o primeiro homem trans* a se submeter a um procedimento de redesignação sexual no Brasil, quando tais cirurgias eram, além de bastante precárias, consideradas ilegais. Tanto que o cirurgião Roberto Farina, que o operou, foi condenado por lesão corporal grave depois que a cirurgia feita em uma de suas pacientes foi descoberta, quando ela fez um pedido de retificação de seu registro civil na Justiça paulista em 1975, o que foi negado.

O próprio João W. Nery, após fazer a cirurgia, acabou mergulhando numa quase clandestinidade. Ele tirou documentos falsos para poder viver como homem e durante muito tempo não mostrava o rosto ao contar sua história para veículos de comunicação, porque o mesmo Estado, que não lhe dava senão essa alternativa, via como um crime esse ato de mudança dos próprios registros. João, que antes da transição era formado em psicologia e começava a dar aulas numa universidade, passou também a não ter direito à comprovação de seus estudos e teve de fazer um supletivo para deixar de ser oficialmente um analfabeto.

“A ironia era precisar de um rótulo, do que todos tentam fugir”, escreve João. Quem acompanha as narrativas dessa viagem sente a angústia de alguém que se vê sem lugar no mundo, dessemelhante a toda pessoa que lhe rodeia. Mas também se maravilha com a força desse homem que, ante a premente necessidade de se reinventar, efetivamente se refaz.

“Iluminando o silêncio das coisas sem nome”, como diz o belo e preciso verso de um poema escrito pelo autor, “Viagem Solitária” é a partilha de uma experiência, feita com grande coragem e generosidade por um homem de mente inquieta. Um homem que descobriu “que há várias masculinidades diferentes e que são construídas também pelas tecnologias da cultura dominante”. Alguém que abriu à força de muita luta veredas para transitar pelos papéis designados a um homem, que era o lugar em que sempre se viu. Que ainda luta contra a invisibilidade a que as pessoas trans são relegadas, nos mais diversos aspectos da vida — no plano legal, no plano social, no plano simbólico. Mas que, apesar da dureza da vida, tem na empatia e na afetividade valores que lhe são caros e que buscou transmitir a seu filho que, para ele, foi seu maior “acerto” na vida.

Enquanto lia “Viagem Solitária”, era impossível não concordar com o que Antônio Houaiss escrevera sobre a história de João W. Nery no prefácio de seu primeiro livro: “é um livro imprescindível para a todos os que queiram ver melhor o espanto que é o ser humano. (…) Leiam-no e humanizem-se.” Tornar-se aquilo que se é sem dúvidas costuma ser sempre uma “Viagem Solitária”. Mas a leitura desse livro tem o poder de fazer com que, em nossas singularidades e idiossincrasias, nos sintamos menos sós.
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Teofilo Tostes Daniel é poeta e escritor nas horas cheias. Nas horas vagas bendiz o ócio, lê, canta no chuveiro e nas aulas de canto. Nas plenas, conversa com amigos, reúne-se em família, brinca com suas cachorrinhas e é feliz com sua esposa. E em horário comercial é analista de comunicação do Ministério Público Federal. Nasceu a tempo de aproveitar os últimos seis meses dos anos 70, o que talvez justifique alguns traços de sua personalidade. É formado em Produção Editoral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e vive em São Paulo desde 2006. Publicou “Trítonos – intervalos do delírio” (Patuá, 2015) e “Poemas para serem encenados” (Casa do Novo Autor, 2008). Participou ainda das coletâneas “Antologia Inaugural – Patuscada” (Patuá, 2016), “Di Menor” (Publicação digital na plataforma Issuu, 2015) e “História Íntima da Leitura” (Vagamundo, 2012) – projeto em que também realizou, junto com Paulo Mainhard e Fabiana Turci, um documentário com os autores. Colaborou ainda com a “Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX” (Elsevier/Campus, 2004). Tem contos publicados nas revistas eletrônicas “Mallarmagens” e “Diversos Afins”, e artigos nos sites “Transfeminismo.com” e “Rio&Cultura”. E-mail: teofilotostes@yahoo.com

 




Comentários (3 comentários)

  1. joao w nery, Emocionado com este texto potente e sensível. Feliz do livro estar também alcançando homens cis e heteros. Escrevi para isto. Para ser como um espelho, uma alteridade, para que outros também pudessem se ver, se questionar o até então indizível. Agradecido por ver alcançado o meu objetivo.
    11 junho, 2016 as 3:28
  2. Jordhan Lessa, Sou homem trans e renasci aos 46 anos, demorei tanto tempo, por que minha vida recomeçou quando conheci João Nery e sua história. Não inventaram ainda palavra que expresse a gratidão plena que dedico ao João, os mais novos o chamam de paizão, eu, particularmente o chamo de irmão e sigo os seus passos na tentativa de dar continuidade no que se transformou em nossa luta e não mais na viagem solitária de um homem só. Obrigado por publicar um texto tão lindo, obrigado também por se deixar alcançar por nossas vivências percebendo que somos homens com todas as semelhanças e diferenças comuns em todos os seres. Abraços!
    11 junho, 2016 as 16:51
  3. Teofilo Tostes Daniel, João, é uma honra imensa saber que você leu essas minhas palavras, e que elas reverberaram as intenções de seu poderoso livro. Obrigado, querido, pelas palavras e por esse generoso carinho. Jordhan, que alegria ver aqui seu comentário e saber da sua leitura a esse meu texto. Obrigado pelo carinho e pelo comentário tão generoso. Há pouco tempo atrás, conheci também sua história por essas infovias e estou aguardando ansioso o tempo propício para ler o seu livro, que já habita em minha estante… Grande abraço!
    26 junho, 2016 as 10:30

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