Valor deuso


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Conheci o Marcelo Tápia na FFLCH-USP faz bastante tempo; hoje, ele é o diretor da Casa Guilherme de Almeida, está fazendo lá um belíssimo trabalho na área de tradução. O Marcelo, ao lado de poetas como Frederico Barbosa e Claudio Daniel, é, sem dúvida, uma das pessoas que mais tem trabalhado pela poesia brasileira e pela área de Letras,em nossa geração.

Em 2009, quando eu e o Vanderley Mendonça fazíamos o selo [e]xperimental, na editora Annablume, editamos o livro Valor deuso, do Marcelo Tápia. Para falar do livro, escolhi o poema de que gostomais; creio que seja, para mim, um dos melhores poemas do Marcelo:

 

A princesa e o viandante
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Detrás do carro, no parque suspeito,
ele olhava a moça doida de tudo,
atendo-se ao volume de seu peito
esquerdo, a vista sob o sobretudo;

não era para seu bico, mendigo
valoroso que chegava de longe,
viajando por um trajeto antigo
desde um lugar de lá de não sei onde –

tanta sujeira impregnada na veste
e na pele, seu cheiro acre de rua,
seu aspecto, sua natureza agreste
faziam-no estranho e tão na sua,

que sua inteireza porca repelia
a qualquer um ou uma que o via;
mas não foi desse jeito nesse dia
co’aquela que o destino lhe trazia:

a moça, ao contrário das demais,
manteve-se ali quando ele surgiu
e descobriu nele um sentido a mais
à vida vã que a urbe lhe pariu —

rica e louca, levou-o para casa,
deu-lhe banho, vestiu-o com casaca
chique, possuiu-o como uma macaca
no cio, desvendando-lhe toda a mágica

do seu mundo; súbito penetrou-o
nas mansões dignas, deu-se a ele toda
e sorveu o que ele tinha de outro
mundo –  foi profundo naquela foda,
concúbito desvairado, maluco,
tresvariado com seu porco imundo.
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Em 1982, em seu livro PRIMI TIPO, a poesia do Marcelo era diferente. Eis o poema OND:
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……………………..como ondear um mar sem tontear-me o onde?

 

O que OND teria a ver com a “A princesa e o viandante”, publicado 17 anos depois? A Guerra de Tróia durou menos tempo…, todavia, talvez seja justamente lá, em Tróia, que os poemas se encontrem.

Embora ambientado na cidade – “à vida vã que a urbe lhe pariu” –, o mendigo viandante do poema remete a outro mendigo, esse vindo do mar. Marcelo está se referindo aos cantos finais da Odisseia, quando Ulisses, depois de 20 anos longe de Ítaca, sua terra natal, retorna disfarçado de mendigo para, depois de se certificar da fidelidade da esposa e matar seus pretendentes, ser reconhecido e tratado como rei.

Partindo deOND – entre outras ondas, uma onda do mar –, que mar Marcelo ondeou para chegar até “A princesa e o viandante”?

OND é poema concreto, mas é também poema alexandrino:(1) com suas doze sílabas poéticas, o verso “como ondear um mar sem tontear-me o onde?”éalexandrino; (2) em sua expressão visual, são traduzidos os modos de ser do mar – o poema, assim como o mar, é formado por ondas –.

Marcelo, certamente, fez o poema em confluência com a poesia de Augusto de Campos. Muitos poemas concretos de Augusto são poemas verbais;basta isolar os versos da verbivocovisualidade concreta para verificar isso. O poema Quasar, do Augusto, também esconde o verso alexandrino: “pensa no quase amar do quasar quase humano”.
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O Quasar, assim como OND, traduz os modos de ser do quasar: se cada letra é formada por muitas estrelas, as letras são galáxias; o poema Quasar, brilhando como galáxias inteiras, brilha como os quasares.

Marcelo, enquanto poeta concreto, remete aospoetas alexandrinos ao compor OND, iconizando o mar semelhantemente a Símias de Rodes, autor do célebre poema Ovo, citado com frequência pelos concretistas em suas referênciasà poesia visual de épocas passadas.

Alexandria… poesia grega… OND pode ser aproximado do epigrama. Em sua origem, os epigramas são poemas concisos; OND, formado por apenas um verso, é bem conciso. Eis este epigrama de Empédocles, traduzido por José Paulo Paes:
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Pois em verdade eu já fui rapaz, já fui donzela
Fui arbusto, pássaro, ardente peixe do mar.
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Símias pertence à poesia do período helenístico; Empédocles pertence ao período clássico; ao citar Ulisses em A princesa e o viandante, Marcelo cita Homero, poeta do período arcaico. Ondeando a Grécia, Marcelo é especialista, entre outras línguas, em Grego; sua poesia vem daquele mar.

O poema A princesa e o viandante não é conciso; ele não é sintético-ideogramático, como OND; ele é, diriam os concretistas, analítico discursivo. Trata-se de cantiga ao sabor das cantigas do renascimento; são quartetos formados por decassílabos heroicos, com rimas abab, exceto a coda, que é sexteto com rimas ababcc. Marcelo, para enaltecer seu mendigo como faz a princesa, perece ter escolhido uma forma poética à altura da cena, vestindo-o também com versos dignos dos heróis.

Em princípio, Ulisses não seria personagem estranha em cantigas que citam a poesia renascentista, ainda mais tratando-se do falso mendigo, que celebra, antes de tudo, outro ardil do herói. O mendigo de Tápia também não chega a ser o contrário, em que o mendigo é disfarçado de herói. Não se trata de disfarce, mas de transubstanciação: seu viandante é dignificado como guerreiro a entrar nos Campos Elísios; a princesa, ao contrário de Circe, que transforma homens em porcos, rebaixando-os à condição de animais, transforma o mendigo-homem-porco-imundo em quase deus.

Trata-se da poesia de engajamento social? Com certeza, mas não poema meramente engajado, feito para desabafar. Marcelo, ao falar de mendigos, fala, antes de tudo, de literatura; em literatura de altíssimo nível, Marcelo mostra o respeito que merece seu viandante.

Seria seu poema, na verdade, elegia? Trata-se de alegoria da morte? Seria o poema como são os contos de Andersen? Entre as muitas possibilidades de leitura,A princesa e o viandante é epifania de Ulisses; Ulisses se manifesta no mendigo de rua em nossas cidades modernas.

Isso se deu não apenas na poesia do Marcelo; seus versos são memória ou previsão – isso não tem importância no mito – de fato que se deu na cidade de São Paulo. Quem se lembra do Pelezão? Faz mais de década, na fila do CETREM, o Pelezão, mendigo da rua, foi seduzido por uma psicóloga, que fez sexo com ele dentro do próprio carro, à vista de todos.

Daqui a quinze dias, volto para falar de outro Marcelo; vamos falar da poesia do Marcelo Sahea.

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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