Uma ópera bem brasileira


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Relendo A ópera de três vinténs (1928), do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898 -1956), percebi que ela conta uma história dos “nossos dias”, como diria Roland Barthes, embora, no teatro de Brecht, esse presente nunca seja intemporal: “é um presente histórico, constituído por um eixo de acontecimentos coletivos de importância nacional ou mundial (a revolução russa, a guerra civil espanhola, […] a invasão hitleriana na França.”. O fato é que, em Brecht, opina Barthes, “a história é uma categoria geral: está por toda a parte, mas de maneira difusa, não analítica; ela está estendida, colada às desgraças humanas e ao verso de um papel; mas o que Brecht expõe à vista e ao juízo é a frente, uma superfície sensível de sofrimentos, injustiças, alienações e impasses”. Convém lembrar que Brecht entregava ao homem o seu próprio destino.

A tese de Barthes, de que o conceito de história para Brecht é difuso, se confirma na inegável atualidade da obra desse dramaturgo alemão em todo o mundo. No Brasil, por exemplo, vive-se uma miséria institucionalizada onde, como lemos em A ópera dos três vinténs, “qualquer um que pretenda exercer o ofício de mendigo precisa de uma licença da Jonathan Jeremiah Peachum & Companhia”. Por aqui, a J.J. Peachum & Companhia ganha nomes como, entre outros, bolsa-família, que não se sabe até que ponto realmente discute o tema da pobreza nem se pretende “saná-la”, ou se apenas quer, numa jogada populista, simplesmente institucionalizá-la.

Na peça de Brecht, um dos personagens afirma que “os donos do mundo são capazes de provocar a miséria [de institucionalizar a miséria], mas ver a miséria eles não suportam”. A frase parece muito sintomática por aqui, onde políticos sobrevoam as cidades de helicóptero, incapazes de olhar de perto para elas.

A miséria, assim como tudo que se perpetua, perde, com o tempo, o poder de impressionar, de sensibilizar, e a máxima de Brecht novamente vem à tona para explicar por que não nos sensibilizamos mais com a pobreza a nossa volta: “é que o homem tem a terrível capacidade de se tornar insensível a seu bel-prazer. Por exemplo, se um homem vê um pobre aleijado parado na esquina, na primeira vez, assustado, dá-lhe logo dez vinténs, mas na segunda vez solta apenas cinco, e se o vir uma terceira vez, o mandará friamente para a cadeia.” Há muito tempo nem mais para a cadeia mandamos nossos “mendigos”, simplesmente não os vemos mais.

Eis outro problema bem contemporâneo também “tratado” por Brecht: a crise na segurança pública — quem vai para a cadeia? Quem fica na cadeia? Quem se responsabiliza pela permanência do marginal na cadeia? Não contamos mais com a polícia. Da boca dos nossos policiais poderão sair frases como essa da ópera de Brecht: “com os diabos, eu não tenho culpa se o cara fugiu. Neste caso, a polícia não pode fazer nada.”

Não seria melhor dizer corajosamente que, citando Brecht, “a lei foi feita única e exclusivamente para explorar aqueles que não a entendem ou que, por pura necessidade, não podem cumpri-la”? Difícil não ver uma boa parte da história contemporânea brasileira, principalmente, descrita nas páginas de A ópera de três vinténs.

De fato, as peças didáticas de Brecht, com seu acentuado caráter político, fizeram do palco (que ele pretendia estender para as telas de cinema) uma tribuna, a qual exige um espectador também engajado. Este, como disse Walter Benjamin, “não pensa sem motivo”. Os textos do dramaturgo alemão não apenas transmitem ideias, mas sobretudo nos induzem à reflexão, ao excluir do palco o suspeito fascínio catártico.

Em tempos de manifestações, uma releitura da peça de Brecht é muito bem-vinda.

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é professora do curso de artes cênicas da UFSC. E-mail: dwa@matrix.com.br

 

 




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