Uma leitura enigmática


Sob um céu de verão, na feira do livro do parque Eduardo VII, veio-me à mão, por mão do autor, Uma Bondade Perfeita, de Ernesto Rodrigues.

De todas as minhas leituras, nenhuma me pareceu tão enigmática. Nenhuma me deu impressão semelhante. Nenhuma com tipo tão singular de desconcertante enigma. E li Kafka, Lovecraft. Mas esse é duma estranheza diferente. Como se a escrita hermética fosse – em sua narrativa fragmentária, sincopada – um enigma a decifrar, não quanto ao enredo, e sim quanto à própria escrita, o modo inusitado de narrar. Um outro modo de escrita, e para mim inteiramente novo, intrigante, do qual saltam frases lacônicas lapidares, que surpreendem o leitor como hieróglifos surpreendem os arqueólogos quando os decifram, dando-lhes sinal de um mundo outro despercebido.

Quem são esses personagens e que espaço é esse em que trafegam, soltos na trama? Sombras, signos, entes míticos, vultos obscuros? E de onde vêm, onde se originam, de qual dimensão procedem? Serão fitas descoladas de universos outros literários? Desconheço as leituras do autor, sabendo embora que é tradutor do húngaro para o português, o que, porém, não sei se terá alguma influência sobre esta espécie de novela policial atípica.

Será preciso reler este livro para ter certeza de que faz sentido essa impressão primeira, em que a curiosidade aguçou-se e bifurcou-se no sentido de indagar as impressões de outros leitores e de ler outras obras do autor, no intuito de captar o hermético e intrigante mistério.

Talvez uma pista seja dada pelo insólito narrador, cuja errância onírica tece a narrativa disruptiva de ângulos aparentemente desconexos, a salvo de linearidade, e ao mesmo tempo num espaço outro, como se tudo se passasse por trás duma espécie de camada vítrea, ou em outra faixa dimensional, num universo paralelo. Como se devêssemos ler o que não está escrito. Como se fosse posto em causa tudo aquilo que está escrito. Como se lêssemos hieróglifos num espelho. Como fotos no negativo. Ou mensagem vinda de outra galáxia, que ao transpor faixas de espaço-tempo aqui ressoasse como linha sonora indecifrada, porque interrompida nas interfaces do espaço e do tempo.

Ou talvez o mistério se encontre no autor (enquanto sujeito, não empírico, mas da enunciação), cuja pista se insinua e se nega nas linhas e entrelinhas.

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Luiza Nóbrega é escritora (poeta, ficcionista e ensaísta) e pintora, professora de Artes e Literatura recém-aposentada pela UFRN. Graduada em Direito com medalha do Mérito Universitário. Estudou Artes Plásticas no CPA (Rio de Janeiro), com Ivan Serpa, praticou com Nise da Silveira em seus grupos de estudos e foi discípula de Rolf Gelevski. Mestre em Literatura Brasileira na UnB, Doutora em Letras Vernáculas-Literatura Portuguesa na UFRJ e Universidade Nova de Lisboa e com dois posdocs (o primeiro, sobre Os Lusíadas, nas Universidades de Évora e Nova de Lisboa; o segundo, sobre Lêdo Ivo, na Università degli Studi di Perugia). Especializada na leitura dos discursos poéticos, dedicando-se especificamente a Camões e Lêdo Ivo. Membro de três Centros de investigação: dois em Portugal (Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e Instituto de Estudos Portugueses, da Universidade Nova de Lisboa) e um na Itália (Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani/Universidade de Perugia). Em novembro de 2015 coordenou o evento internacional POESIA SEM FRONTEIRAS: PAUTA E CENA COM LÊDO IVO, realizado na UFRN. E-mail: luiza14@gmail.com




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