Um sutil observador do proletariado



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Com a publicação de Domingos sem Deus, Luiz Ruffato conclui o quinto livro de “Inferno Provisório”, projeto que abarca um arrojado e consciencioso mapeamento histórico e sentimental, visando registrar e compreender o proletariado urbano que emergiu nas últimas décadas a partir do processo de industrialização da segunda metade do século passado e que tem em Cataguases, sua cidade natal, o ponto de partida para uma profunda investigação literária à luz do fenômeno social.

Em nossa literatura, a não ser Roniwalter Jatobá (“Sabor de Química” e “Paragens”), Antonio Torres (“Essa terra”), José Lins do Rego (“Moleque Ricardo) e Amando Fontes (“Os corumbas”), raros são os escritores que se debruçaram com tanto empenho e com um olhar escrutinador sobre o mundo dos trabalhadores e migrantes. Na tentativa de aprofundar esse olhar, Ruffato assimilou a necessidade de dar visibilidade a um contingente ainda pouco considerado em nossa ficção, tornando-se um fiel depositário de sua expressão, suas vozes e angústias, ao mesmo tempo preenchendo uma lacuna e homenageando suas origens. Desde Histórias de remorsos e rancores (1998), vem montando um quadro humano representativo da força de trabalho que migra de um lado para outro à procura de sobrevivência e novos espaços. A empreitada, ousada e meticulosa, possibilitou recolher um vasto material, geográfico, histórico e psicológico, que resultou na montagem de um painel sincero e sem caricaturas desse extrato que foi decisivo na construção do nosso incipiente capitalismo, porém sempre relegado à exploração e condenado à falta de mobilidade na pirâmide social.

Domingos em Deus coloca no centro da discussão o homem do interior, premido pelas circunstâncias, sem perspectivas financeiras, materiais e até culturais. Vivendo seus mo(vi)mentos pendulares, do trabalho rural em Rodeiro, Ubá e adjacências, para uma colocação nas tecelagens ou no comércio de Cataguases, cresce-lhe o sonho de uma ascensão pessoal e núcleo familiar, sustentando-se na esperança de melhores oportunidades na metrópole, geralmente São Paulo ou Rio. São seres que, na maioria das vezes, se deparam com outras privações e entraves, logo interditados pela realidade avassaladora que impede a concretização de seus projetos. É quando tudo se frustra pela constatação de que pouca coisa deu certo, que a nostalgia de uma eterna procura se confunde com a dor de um retorno inevitável. Disso, resta a sensação de um inferno que se renova no sacrifício do trabalho exaustivo e sem descanso (daí a pertinência do título), sem domingos para o descanso ou para a igreja, absorvidos pela rotina intensa e quase sem finalidades.

O plano de Ruffato também comporta uma mirada afetiva, a partir de suas raízes: a memória pessoal e o imaginário coletivo ajudam a estabelecer esse recorte, fundamental na avaliação de um período da nação brasileira a partir de um microcosmo peculiar: a região da Zona da Mata Mineira para onde confluíram seus antecedentes, imigrantes italianos, primeiramente aproveitados na lavoura e depois absorvidos em outras atividades nas pequenas cidades da região, onde gerações viveriam seus deslocamentos.

A elaboração do romance é composta de cinco livros e segue uma arquitetura e um ritmo fragmentários, porém, essas histórias aparentemente autônomas e independentes guardam uma unidade temática e um liame narrativo, pois se os personagens mudam de rosto, de nome e de situação, no fundo vivem situações, dramas, conflitos e cenários análogos. Essa ruptura da linguagem e de estrutura da obra ruffatiana encontrou seu ponto culminante no premiado Eles eram muitos cavalos (2001), o que, por vezes, suscita no leitor uma dúvida quanto ao gênero, se conto ou novela. Nesse recurso há uma lógica, que reflete o caminho evolutivo da prosa moderna, abstraída da tradição formal do romance burguês do século passado; e uma coerência, que traduz o universo dessas existências entrecortadas, amiudadas, descontínuas e sem linearidade geográfica e emocional, esquartejadas pela reciclagem de seus sofrimentos, mas que mantêm, no cerne, uma mesma pelagem e uma mesma alma.

O seis capítulos de Domingos sem Deus falam de sobreviventes: gente que partilha, desde muito cedo, as perdas, o vazio, o incômodo de viver e o permanente desconforto do não pertencimento, a reboque de seus dilemas, dores, tormentos e fracassos, com uma pungência e uma carga de verdade recorrentes nas histórias humanas. Só um escritor fiel à sua experiência existencial, testemunha da complexidade das relações familiares e sociais desse mundo e suas prisões, foi capaz de expor, com uma dimensão ética e épica, e com uma necessária dose de compaixão, lirismo e poesia, o percurso sem vitórias de Valdomiro, Sandra, Ana, Mirim, Margarete, Luis Augusto, Netinho, Rui, Marcela, Rafael, Gilson e tantos outros aguerridos protagonistas.

Ao fechar esse ciclo ficcional, Ruffato documenta uma classe tão pouco incursionado pelo romance contemporâneo e importante na formação da identidade nacional, no entanto sua escritura revela uma grande autenticidade e originalidade, que nos impactam moral e filosoficamente, ao percebemos que o autor emprega as tintas da ternura, ao invés de ceder à tentação panfletária ou ideológica ao retratar essas vidas minúsculas.

 

 

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Romance: Domingos sem Deus
Autor: Luiz Ruffato
Editora: Ed. Record, 2011
112 páginas

 

 

 

 

 

 

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Ronaldo Cagiano é autor de “Dicionário de pequenas solidões“ (contos) e “O sol nas feridas” (poesia), dentre outros. É mineiro de Cataguases e vive em São Paulo. E-mail: ronaldo.cagiano@caixa.gov.br




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