Um pedacinho de literatura


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Embora nem todos tenham a coragem de confessar, há cada vez mais gente zapeando entre livros, como se faz na TV a cabo: trechos de filmes, inclusive os péssimos; um programa de variedades português, o programa ótimo e cafona do Maradona (nossa, como rima), uma piada escabrosa de South Park, três partidas de futebol simultaneamente em diferentes países, etc.

Em relação aos livros, um cara como eu pode servir de exemplo radical: além dos livros sedutores que piscam o olho para mim nas livrarias, sebos e calçadas, há outros livros que não param de chegar pelo correio, e o resultado é que minha cabeceira está sempre cheia de livros de cabeceira, uma Torre de Babel que às vezes despenca no chão com estardalhaço, indo para a pilha do chão, que cresce cada vez mais, horizontal e verticalmente, isso para não falar da estante mor que já transbordou há muito tempo, espalhando livros pelo apartamento inteiro.

Então esse negócio de zapear foi se impondo aos poucos, à medida que o meu sentimento de culpa cultural diminuía. Zapear principalmente entre romances, pois descobri que a maioria dos romances, se você está a fim de ideias e formas originais, e não simplesmente de velhas ideias com um figurino charmoso, e isso inclui grande parte dos romances norte-americanos atuais badalados pela mídia, já deu o que tinha que dar lá pela página 80, se tanto. Aí você vai direto ao final da história e às vezes nem é preciso, pois parar um livro antes do fim só não é tão bom como sair de um filme ou de uma peça de teatro bem no meio, pois nesses dois últimos casos há uma intervenção estética sua, à vista de outros espectadores, que podem ser influenciados. Uma expressão ativa de liberdade. Agora, se a peça ou o filme é seu, ou adaptados de um livro seu, e você vê os outros fazendo isso, é meio desagradável, mas pode ser também que o espectador seja meio burro ou ignorante.

Voltando à leitura minimalista, tem gente que diz que o conto está de novo na moda, pois se ajusta melhor à pressa da vida contemporânea. Pessoalmente, prefiro mesmo o conto, porque posso ler um inteiro ou até mais de um, não necessariamente do mesmo livro, antes de dormir, mas não é verdade que o conto esteja na moda, a não ser entre os milhares de contistas. É só você conferir a lista de mais vendidos que, livros esotéricos e de autoajuda, biografias, etc., à parte, vai encontrar uma quantidade infinitamente maior de romances do que de eventuais livros de contos. Contos só se forem do tipo os cem melhores disso ou daquilo, nem que sejam “Os cem melhores contos eróticos de vampiro da Tasmânia”, selecionados pelo meu querido Flávio Moreira da Costa.

Mas, parando com as gracinhas, pois não sou cronista, há de fato o fato inquietante – e todos sabem disso – de que a quantidade de livros que se escrevem e publicam no Brasil (isso para não sair daqui), atualmente, é avassaladora, numa desproporção gigantesca com o número minguado de leitores. A conclusão que talvez se tire disso é que se deveria escrever menos e melhor. Sei que vão rebater: “Esse cara publicou os livros dele e agora não quer que os outros conquistem o seu espaço.” Posso ter lá as minhas mesquinharias, mas vou repetir e em negritos: o negócio é escrever menos e melhor. Não apenas porque assim a possibilidade de conquistar um certo número de leitores qualificados aumentaria, mas porque o artista – reparem que já mudei o tratamento – pode de repente sentir a alegria de que está criando obras menos perecíveis.

Merece respeito o cara que trabalha ali em seu canto na criação de sua pequena jóia não utilitária. E vou confessar a vocês que, em vez de zapear entre livros diversos, ultimamente, estou lendo umas quatro páginas por noite, no original, de Museo de la novela de la eterna, do argentino Macedonio Fernández (1874-1952). Livro de 266 páginas e que foi escrito durante décadas da vida do autor, que nunca o considerou pronto. Acabou por ser obra póstuma e um pilar da literatura argentina de invenção, o que não é pouco, influenciando gente como Borges (também pela obra anterior de MF e a convivência entre ambos), Cortázar, Arlt, Piglia e outros. Museo… é um livro curiosíssimo, pois constituído em sua primeira e maior parte de prólogos, notas, conversas sobre os personagens, advertências aos críticos etc., enquanto o romance propriamente dito, que afinal começa, é bem pequeno. Um romance conceitual, sim senhores (a definição é minha, mas suponho que outros tenham chegado à mesma conclusão), no entanto muito bem humorado e até lírico, pois, paradoxalmente, ou não, é uma declaração intensa de amor que Macedonio faz a sua mulher Elena (la eterna), morta muito jovem. Vanguarda e paixão. Isso mesmo, meus caros.

Tal opção mostra que resolvi, pelo menos temporariamente, deixar as pilhas de livros intocadas e curtir muito devagar essa obra fundamental. E penso que escrever pouco e devagar (e quem sabe ler assim?) é algo que se aproxima do silêncio, essa outra joia rara, cada vez mais rara. E transporto-me agora à pele de um autor de autoajuda e pronuncio: abençoada é aquela pessoa que pode se dedicar a fazer absolutamente nada durante bons pedaços de tempo e sem entediar-se com a sua companhia.

Mas o tema hoje aqui é literatura em pedaços, e vou terminar oferecendo aos amigos de Cronópios um pedacinho de literatura, trechos dos rabiscos que ando fazendo, com o título provisório de Zapping ou Coreografia. Uma sinopse de conto (nada de miniconto), para que o leitor adepto do zapping possa absorver rapidamente como que um conto inteiro.

Trata-se de uma história de futebol, dança e, helas, amor. Um torcedor fanático de um clube de futebol, que assiste pela TV a uma final de campeonato brasileiro, em que o seu time poderá sair campeão. Para isso, basta-lhe o empate, na casa do adversário, em São Paulo, enquanto o torcedor, Valfrido, mora no Rio. E o jogo está empatado em 1 a 1, no segundo tempo, fazendo o torcedor sofrer de uma angústia e tensão crescentes, à medida que se aproxima o final da partida. E, aterrorizado, Valfrido vê o seu time levar um gol já nos descontos, aos 46 minutos do segundo tempo.

Tem vontade de gritar palavrões, chutar cadeiras e móveis, quebrando o que vê pela frente. Já fez isso outras vezes em situações semelhantes. No entanto, dessa vez, queda paralisado, numa espécie de catatonia, tentando não se envolver emocionalmente com as comemorações do time e dos torcedores adversários lá no Pacaembu e com flashes de rua em São Paulo. Na última vez que Valfrido teve um ataque de nervos daqueles, por causa de futebol, correu em sua sala e bateu o topo da cabeça, de propósito, com toda a força, numa parede. O que lhe valeu algumas lesões no cérebro, causando-lhe uma descoordenação motora que faz dele uma espécie de boneco desconjuntado, porém com uma inteligência normal. E ele tem medo também do que pode acontecer dentro de si, caso represe a sua raiva – simulando um distanciamento crítico – como sofrer um acidente vascular cerebral, que o deixe paralisado. Então Valfrido agarra o controle remoto da TV e aperta com força dois botões ao acaso. E o número que aparece no seletor é 83, canal que ele nem supunha funcionar.

Imediatamente Valfrido é envolvido por música e por uma bailarina, que dança num cenário que reproduz uma casa e seus entornos, tudo estilizado em formas surpreendentes para Valfrido. Já a roupa que a moça usa, sem malha, apenas a calcinha, por baixo, é muito comum, simplicíssima, um vestido apropriado para quem está realizando tarefas domésticas, primeiro num quintal, recebendo raios terminais da tarde de sol, depois dentro de casa, onde Catherine Kantor (seu nome surge às vezes no letreiro), ajeita num vaso flores impossíveis que trouxe lá de fora, tudo isso sem parar de dançar, enquanto as frutas que a moça dispõe sobre a mesa, junto a uma garrafa de vinho e pães, formam uma composição pós-Cézanne, sem dúvida uma citação do mestre, que Valfrido, evidentemente, não pode identificar, embora, num determinado momento, ele associe os passos da moça a jogadas clássicas, e moderníssimas, de Zinedine Zidane, o jovem. Mas Valfrido logo afasta o mestre franco-argelino da cabeça, pois não quer pensar em futebol.

Uma das coisas que mais emocionam Valfrido é que a jovem bailarina é ligeiramente manca, como se Zidane (ele outra vez) jogasse machucado, ou talvez simulasse isso, depois de cavar uma falta. Ou quem sabe a moça feriu-se no quintal, antes que Valfrido sintonizasse o canal 83. Depois Valfrido vai ler no letreiro que a coreografia é de Pina Bausch, nome que passa a lhe dizer alguma coisa, pois ele adora toda a dança, enquanto a música é de Gustave Malevitch. Essa música parece vir de um grande rádio, daqueles antigões, e mistura ruídos diversos de uma cidade grande à noite, que a bailarina segue, concretamente, mas que a toda hora se transformam numa melodia que, apesar de um tanto triste, ou anunciadora de trevas, quem sabe doces trevas (o torcedor sente isso intuitivamente), permite a Catherine como que flutuar sobre o chão. E há um momento em que ela pára por um segundo, diante de uma escrivaninha, sobre a qual há manuscritos, estudos artísticos e pautas, e pega um porta-retrato e o olha com profunda nostalgia. Valfrido sente um ciúme pior do que a raiva pela derrota do seu time. Mas ao perceber que não há ali nenhuma fotografia, ele, interiormente, instala o seu retrato naquele porta-retrato.

Mas o que faz sua respiração verdadeiramente ficar presa é quando Catherine se aproxima de um armário, abre uma porta espelhada, e tira lá de dentro um traje. Depois, como se adivinhasse o desejo do moço que a vê, a moça retira o vestido pela cabeça, e está ali, com os seios de fora, diante do duplo de seu corpo. Fica assim por bem pouco tempo, mas suficiente para que se instale em Valfrido um amor e desejo para sempre, pela moça e pela personagem que ela encarna.

A roupa que Catherine agora veste faz dela uma espécie de pássaro grande como uma águia, cujo vôo é uma dança enérgica, que, por recursos de computador, vai alçando a bailarina a um monte escarpado. Depois aquela agitação cede lugar à quietude, tudo em consonância com a música, permitindo, porém, dissonâncias rítmicas do corpo, mas em geral como se Catherine agora estivesse planando, até pousar numa grande pedra, criada por computação gráfica, claro, mas muito convincente. E a ave-moça de rapina olha para um lado, para o outro, depois fixa seu olhar em frente, como se olhasse para Valfrido, especialmente.

E tudo vai caminhando para um final, para a noite, trevas, e também o torcedor, sem que agora sinta qualquer descoordenação em seus gestos, senta sobre um banco alto, que este cenógrafo que sou eu, fez aparecer ali, misteriosamente, naquela sala acanhada, onde uma vela ardia e agora se apagou, feitiço inútil, diante da camisa colorida do time de futebol de Valfrido. E também sobre Rio caiu a noite, tranquila, sem manifestações de torcedores, pois o time campeão é de São Paulo.

E enquanto os últimos movimentos de Catherine são o de abrigar seu corpo sob sua asa de águia, para logo dormir tendo diante de si o mais profundo abismo, Valfrido também consegue, com gestos surpreendentemente graciosos, deitar sua cabeça entre o ombro e o peito, e com os olhos cheios de sono, ouve até a última manifestação da música, depois que os nomes de todos que fizeram aquele espetáculo, contribuíram para ele, apareceram na tela, a noite caindo sobre Catherine, sua montanha, seu abismo, quando Valfrido, com um clique sob o controle, desliga a tevê, que era a única fonte de luz em sua sala. E Valfrido se deixa adormecer assim, como um pássaro, nem que seja por alguns minutos, com a sua dançarina-pássaro e seu abismo, fundindo-se a ela, naquele anoitecer para sempre inesquecível em sua vida. Ela, Catherine, que será para ele como la eterna, de Macedonio, sem que Valfrido o saiba.

Bem, acabou por ser muito mais do que uma sinopse, o texto escapou de minhas mãos e foi em frente. Mas na próxima prometo ser breve como minha proposta, meu projeto. Mas, querem saber?: bolas para os projetos!

 

 

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[Texto inicialmente publicado no site Cronópios]

 

 

 

 

 

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Sérgio Sant’Anna é carioca e um dos principais escritores brasileiros. Tem 18 livros publicados, inúmeros prêmios (Jabuti, Portugal Telecom, APCA) e livros traduzidos para vários idiomas. Seu livro mais recente é O homem-mulher, Companhia das Letras, 2014. E-mail: sergiosant@openlink.com.br

 




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