Um dia típico de um escritor brasileiro


 

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Há mais de quarenta anos (estou com 56, comecei cedo, aos 9) que me revezo entre oito profissões para ganhar a vida.

Me acostumei a, quando me interessa e preciso, exercer uma ou outra atividade e muitas vezes fazer tudo ao mesmo tempo.

Tenho sido jornalista, professor de pós-graduação, compositor, dramaturgo, roteirista de cinema e televisão, criativo publicitário, marketeiro político e treinador de executivos em web business e criatividade.

Nos intervalos, nunca deixei de ser poeta e, talvez por isso, ter uma montanha de livros de poesia para crianças, jovens e adultos, e estar com mais de quatro milhões de exemplares vendidos, o que, no Brasil, até a mim espanta.

Daí, de três anos para cá, resolvi ser apenas escritor profissional.

A decisão foi difícil mas estou satisfeito pelo seu principal efeito colateral: como meu status caiu de um carro importado para um fusquinha, nunca mais serei rico a ponto de atrair mulheres interesseiras.

Quem me amar vai me amar pelo que sou: um poeta tupiniquim, apaixonado mas durango.

Meio chato é quando novos conhecidos me perguntam minha profissão e eu respondo que sou poeta.

Inevitavelmente, vem a pergunta seguinte:

_Tá bom, mas você trabalha em quê?

Como poeta não trabalha mesmo nunca, segundo o senso comum, acordo eu bem cedinho disposto a escrever meu artigo para esta revista, já atrasado.

Mas, antes, abro os e-mails e vejo se tem alguma coisa urgente para resolver.

Tem várias, pela ordem:

Uma editora não quer aceitar meu contrato de um novo livro porque não abro mão dos 10% de direitos autorais. Como a maioria dos escritores possui outra fonte de renda paralela, também a maioria das editoras se acostumou a pagar menos de 10% já que o autor não vai depender dessa renda para sobreviver. Ou seja, escritor brasileiro é mal pago por culpa dele mesmo, tsc, tsc.

Outra editora alega que é impossível adiantar um dinheiro para que eu escreva um livro histórico, ou seja, um projeto que vai me consumir um ano inteiro. Ao contrário dos estados desunidos e das ôropas, aqui a editora lança uma porção de livros sem custo autoral inicial. Se colar, colou. Se for sucesso, ótimo. Lá fora, o critério é mais rígido. Lança-se menos títulos, mas se investe no projeto do escritor rotineiramente. O Brasil é um dos países que maior quantidade de livros edita no mundo. Mais de 10 títulos novos por dia! E as tiragens são cada vez menores.

E finalmente outro e-mail me informa que minha agente literária é uma chata porque teima em discutir item por item dos meus contratos. Traduzindo: a Maria Moura, minha agente, é uma pentelha porque é profissional cuidadosa. As editoras gostam de escritor que assina tudo sem ler nada, como eu já fiz muitas vezes.

Para não ficar ainda mais careca de preocupação com esses problemas que já estou careca de saber, deixo de lado e me concentro em escrever.

Nem começo e já sou interrompido por dois telefonemas:

O primeiro, um convite para bolar um artigo para uma revista de educação, dirigida as professoras. Pedem minha compreensão para o fato que só podem pagar cem reais pelas quatro páginas de texto. Olho o pedreiro que contratei para consertar as telhas estragadas pelas últimas chuvas em Sampa, com inveja. Ele está me cobrando o preço de 3 artigos da revista!

O segundo telefonema é um convite da secretaria de cultura para um mega evento de poetas e escritores paulistanos. Acontecimento bonito, bem organizado e bem divulgado. O único detalhe dissonante é que o edital não prevê nenhum cachê para os participantes. A alma da festa não irá receber um tostão para o pão nosso de cada dia. Escritores e poetas devem se contentar com os aplausos, desde que tenham dinheiro para a passagem até o palco, claro.

Mas vamos escrever que essa é a vida que escolhi e quis.

Paro na primeira frase porque chegou o carteiro com uma pilha de cartas. Nenhuma cartinha simpática de leitor. Nenhum cartão de feliz aniversário atrasado. Apenas contas a pagar e malas-diretas me oferecendo cartões de crédito. O correio eletrônico tornou o carteiro apenas um portador de más notícias!

Desanimado, leio que esqueci de pagar uma conta de IPTU de anos atrás. Mas posso ficar tranqüilo que a Prefeitura me oferece parcelamento da dívida. Desde que eu perca metade do dia indo até a tesouraria, evidente!

E nem isso posso fazer porque meus rendimentos de direitos autorais não cobrem o valor do IPTU. Acho que nem minha modesta casa vale tanto assim. Como são férias escolares, meus livros infanto-juvenis despencam nas vendas. Há muito tempo que as escolas, via programas do governo, são as únicas e principais compradoras de livros infanto-juvenis. E evidentemente não compram nas férias. E se amanhã o governo deixar de dar verbas para aquisição de livros para distribuição gratuita aos alunos, a maioria das editoras fecha as portas em seguida. Todos os envolvidos nessa questão, se fazem de cegos em tiroteio. Afinal, é chocante saber que em mais de uma década de distribuição gratuita de livros para estudantes de escolas públicas…não se formou um leitor a mais! Simplesmente porque a educação continua uma porcaria frita e os alunos, coitados, mal passados, não aprendem a ler. Sem saber ler, vão fazer o que com os livros que ganham? É como dar rapadura para um banguela. Simples e trágico assim.

Já que não consigo escrever o artigo para a Revista Discutindo Literatura, relaxo e vou para o lançamento de amigos escritores num bar de Vila Madalena. Vai ser bom rir um pouco que não sou de ferro e minha coluna muito menos. Tenho a popular “coluna de escritor”. De tanto escrever horas a fio com a coluna torta, o escritor é um candidato à corcunda de notre dame.

O lançamento é interrompido violentamente, o bar fecha as portas, todo mundo sai correndo porque o PCC acabou de incendiar um ônibus na rua ao lado.

Volto pra casa, ligo a televisão e vejo o governador dizendo que a violência está sob controle, que ataques dos bandidos não irão intimidar as autoridades. Como não sou autoridade…fico intimidado.

O dia está terminando e talvez dê tempo de escrever, afinal este é meu ofício.

Mas, humanamente, durmo.

Quem sabe amanhã eu acorde e resolva mudar para uma profissão menos folgada que esta de típico escritor brasileiro.

Sei que minto para mim mesmo, para me consolar.

Escrever, para quem gosta, já não é ofício. Rimando sem querer, é um vício.

 

 

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[Nota do Editor: O poeta Ulisses Tavares não recebeu um tostão por este artigo na MUSA. Coisa de Poeta pra Poeta.]

 

 

 

 

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Ulisses Tavares sofre do efeito Tostines: não vive melhor porque insiste em ser escritor e poeta? Ou é escritor e poeta e por isso não vive melhor? E-mail: uuti@terra.com.br




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