Um deus que saiba dançar


……………..A BUSCA DE UM DEUS QUE SAIBA DANÇAR

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Chiu Yi Chih realiza uma pesquisa poética baseada no conceito de imagem poética formulado por Paul Reverdy – a aproximação inusitada de referências que pertencem a realidades diferentes (conceito antecipado por Lautréamont, nos Cantos de Maldoror, que imagina “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”, e também pelas metáforas de agudeza da poética barroca). No livro de estreia de Chiu, Naufrágios, publicado em 2011 pela editora Multifoco, vamos encontrar uma rica variedade de imagens bizarras, tais como: “mãos de lânguidas grutas”, “línguas em forma de ovo”, “mar-avenida-mulher”, “peixe triângulo losango”. A imagem poética, recurso frequente na poesia simbolista e surrealista, busca aproximar os planos do sonho, da imaginação e da realidade cotidiana, estimular a experiência sensorial, pela junção de elementos sonoros, visuais, táteis em imprevistas sinestesias e – não menos importante – fazer da poesia uma jornada de liberdade. A alquimia verbal de Chiu viola, deliberadamente, a ordem rotineira das coisas, criando paradoxos como “O triângulo possui lados incalculáveis”, ações impossíveis como as pedras que “lambem espirais de verde osso”, definições como “cor é quase um feixe de barbatanas sem fios” ou “o mar não é a esfera de Parmênides”, imagens monstruosas de seres híbridos, como “homem de brânquias”, embora o poeta também seja capaz de uma lente quase realista, como no poema Macau: “Os cais de Macau / são / lama podre / faiscando / coágulos: a vida / arrastada entre / osso / e poças / a madrugada que cai / os olhos / da lua / exilados / no peito”. O universo mitológico é uma constante em sua poesia, onde encontramos referências greco-romanas – Orfeu, Ulisses, Cronos – ao lado de divindades do candomblé, do budismo, do xamanismo. Claro: não se trata de poesia mística, no sentido doutrinário, mas de uma visão de mundo baseada no retorno à natureza, à experiência sensorial, lúdica, do sagrado – cuja expressão máxima são as danças iniciáticas dos rituais antigos, que Chiu retoma em suas performances: a poesia se corporifica, a palavra ganha expressão de voz, rosto e corpo em movimento (nesse sentido, podemos fazer uma aproximação entre a poesia-corpo de Chiu e as intervenções no palco de Marcelo Ariel, poeta também fascinado pelo hermetismo). Em sua poesia escrita, Chiu enfatiza o movimento na espacialização das linhas na página, como acontece na composição Pólipo, dedicada a Roberto Piva (uma de suas mais fortes referências literárias). O uso de palavras e frases em caixa alta, o uso do itálico, de palavras ou sílabas isoladas na linha, entre outros recursos – que remontam ao Lance de dados de Mallarmé – atribuem timbre e ritmo às palavras, como se fossem notas de uma partitura musical – além do aspecto plástico do poema, que ganha uma ênfase, uma retórica, própria do ideograma e das primeiras formas de escrita caligráfica. A própria leitura torna-se operação lúdica, como acontece em Rezando com José Agripino de Paula, poema escrito em homenagem ao autor de Panamérica, em que as linhas podem ser lidas na horizontal ou na vertical, ampliando a construção de significados. A formação do autor, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, sugere possível viés filosofante em seus poemas, que não raro citam Nietzsche, Heráclito, Parmênides, Deleuze – porém, não se trata de logopeia, a “dança do intelecto entre as palavras”, conforme Ezra Pound, nem de mera exibição de citações cultas: Chiu não busca encontrar ou defender uma suposta “verdade”, e sim celebrar a experiência do estar no mundo: o seu deus, como aquele de Assim falava Zaratustra, é um deus que sabe dançar.

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METACORPOREIDADE

Em 2016, Chiu Yi Chih lançou o seu segundo livro, Metacorporeidade (São Paulo: editora Córrego), que reúne poemas em prosa, fotografias de performances executadas pelo poeta e de esculturas do artista plástico Irael Luziano, com quem formou o grupo LOZ, voltado à pesquisa e criação em várias linguagens artísticas. Conforme lemos em texto publicado no site do LOZ (www.loz2962.com), suas intervenções “exploram linhas, cores e texturas no campo das possibilidades do corpo-escultura. Mais do que ‘representar’ a forma corpórea encontrada na natureza ou em qualquer outro ser, busca-se, na pesquisa desse processo, decompor e recompor as ‘linhas’ que atravessam as porosidades da matéria. (…) No campo escultórico, são criados inúmeros feixes de linhas, que tanto se modulam em diversos movimentos curvilíneos, como se dinamizam com as ‘cores’ que, por sua vez, potencializam o campo das diferenciações do ser matérico. (…) Cada escultura reúne uma pluralidade de trajetos interiores e exteriores que podem ser apreendidos como caminhos / descaminhos de uma cartografia performática (…). No ato performático, o corpo humano percorre linhas, traça curvas, cria círculos, ‘metacorporifica-se’ em múltiplos tempos e espaços”. As obras do LOZ “propõem o questionamento e a vivência estética dos lugares, territórios e processos de subjetivação”. Poemas e fotografias alinham-se sem uma intenção de diálogo ingênua: as fotos não “ilustram” os poemas, que não são meras “legendas”. Há uma polifonia, no sentido musical, de melodias paralelas, simultâneas, resultando num diálogo-conflito, diálogo-ruído, diálogo metamorfose, que desestabiliza qualquer tentativa de leitura linear. Os trabalhos poéticos, plásticos e performáticos de Chiu e Irael, portanto, colocam-se na contramão da mímese realista, escolhendo como daimon o princípio da incessante metamorfose. Os poemas em prosa que integram o livro, como apontou Claudio Willer em seu prefácio, são textos híbridos, em “desafio ao princípio lógico da identidade e da não contradição”: as palavras são, em si mesmas, matéria plástica, sujeitas à modelagem, à deformação, à caricatura, à mancha, ao imprevisto. Assim acontece, por exemplo, na notável composição intitulada Provação: “sobre a geleira da ácida dissimulação os alvéolos enrouquecidos daquela máquina soluçam com os arquipélagos de uma avalanche enquanto num fulgor excruciante o dorso do lince se galvaniza acima dos crânios de lobos escabrosos assim como se num relevo furtivo a laringe pudesse arrastar um semblante sem esperança por detrás daquela gota cinzenta que começa a gemer debaixo do surdo vendaval dos tigres mumificados”. Metacorporeidade desafia os nossos sentidos, inteligência e imaginação, solicitando ao leitor que descarte qualquer  hipótese de certeza estável, percorra e perca-se no labirinto, reinvente enigmas, desmonte as pedras do quebra-cabeças e interaja com o Minotauro e Ariadne, criando sua própria leitura, sua mitologia pessoal de tigres lunares.

 

 

 

 

 

 

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Claudio Daniel é poeta, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Zunái (www.zunai.com.br). Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014, foi também colunista da revista CULT. Publicou, entre outros livros, os Cadernos bestiaisEsqueletos do nunca (ambos pela Lumme Editor) e o Livro dos orikis (Patuá), todos eles de 2015. E-mail: claudio.dan@gmail.com




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