Televisões (numa emergência)


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Outro título possível, TV Telos, ou, senão, Saldo-do-Dia Noite Afora. O dado, o fato ou o diorama do drama é que a ficção serializada ganha um relevo sobre a existência corrente, diuturnamente transmitida entre máquinas de informação e projeções audiovisuais. Extrapolam o formato dos shows postos à vista, em gincanas e games, sejam em huis-clos, sejam ao ar livre das fazendas (ainda haverá desertos), os programas de premiações e benesses/campanhas sociais no rolar das horas até bem tarde (tarde demais, no stop’s History Night).

A TV ou Planeta Xuxa, p. ex., seguiu nas vesperais de sábado os desdobramentos do testemunho de Madame X dado ao fait-divers Fantástico fim de domingo – ao redor de uma equipe de profissionais, um júri especializado, opinativo – sobre uma vida pregressa de violações sexuais. Justamente, depois de ter se estabilizado como apresentadora infantil da chave espetacular do mundo, em progressivo desvelamento, para muitas gerações. Agora ela se apresenta reconfigurada, nas matinês-sabatinas, com o cabelo pintado de preto e com um gestual (confesso em entrevistas) de pré-adolescente (“tenho cabeça de 12 anos”). O relato-evento continua.

A hiperficção interativa chega ao ponto de redefinir as matrizes do teledrama –  ou do Trauma TV, segundo a filósofa/semioticista dos media Avital Ronell –, na formação de uma zona limítrofe, paralela, imprescindível à vida presente da narrativa – Bem aqui, no Brasil mesmo, onde estamos e não parecemos nos abster de um painel de plasma, alto-definido, para nos mirarmos na panorâmica-continental de um só país, ligado numa ultraplugagem técnica acerca de tudo o que-se-passa.

E passa sob um efeito, um continuum de pertença, num andamento serial.

Um bem-sucedido seriado como Mad Men, cuja 5ª temporada recentemente se encerrou numa tv a cabo nacional, depois de sua estréia em março nos EUA, deixa à mostra o investimento na serialização como polo a um só tempo reiterativo e produtivo de sua ficcionalidade. À volta do universo publicitário em consolidação desde os 50’, a premiada telessérie concebida por Matthew Weiner, alcançou o cume de um diálogo cerrado com sua forma de narrar e serializar através de uma citação muito detida e bem desdobrada de Meditations in an Emergency (1957), de Frank O’Hara.

Enquanto se lê no poeta-chave do pós-modernismo norte-americano – egresso da Escola de Nova York, junto com Ashbery, Kenneth Koch, Barbara  Guest e James Schuyler –, a capacidade da escrita se alastrar no corpo da metrópole, em adesão ao instante (entre fins dos anos 1950 e começo dos 60),  a uma época  inovadora e frenética (tal como, também, testemunha a composição de seus Poemas da Hora do Almoço), o seriado difundido desde 2007 reencena esse período. Chega até à eclosão da beatleamania (ao culto mesmo da psicodelia antecipatória de Revolver), com um senso agudo de revisita à história, para falar, de uma maneira  surpreendentemente pontual, do nosso presente. Ao modo de uma meditação pelo avesso, indissociável de um rumor-de-fundo, aparelhada pela media televisiva, captam-se os imateriais, os sinais emergentes, colhidos em um campo diverso de motivações e componentes. Sinais que tanto apontam para o caráter de insurgência comportamental, da novidade daquela época, quanto seu uso corrente, passível de criar imagens rentáveis, padronizadas, pelas quais um período histórico se torna identificável como um emblema.

No episódio 13 de sua 2ª temporada (2008), Mad Men deixa claro não apenas a eficaz constituição de uma memorabilia, mas seu poder de autoreferencialidade. Pôde exibir o clássico de O’Hara num flagrante da capa do livro e dos efeitos da leitura sobre as ações dos personagens. De um modo sempre enviesado, propagador de sentidos subjacentes à promoção da propaganda, capazes de comentar e sumarizar cada sequência (formando núcleos temáticos, bem compactados, de episódio a episódio),  uma apreensão do tempo se dispõe em séries – do poder e da sexualidade, do trabalho e da cultura, envolvendo as potências todas do humano em alta exposição através de displays definidores do consumo e do espetáculo característicos de uma civilização nascente. Entre o dispêndio de energia jogada no álcool celebratório da criação e consumação de cada campanha e as forças emergentes na História e na América em captura pela empresa de Don Draper e Companhia, o teledrama aviva o dimensionamento de uma meditação em série, não à toa referendada literalmente pelo volume poético de F. O’Hara.

São as inquietudes sobre a continuidade, acelerada sobre linhas tópicas, as que movem os loucos expositores do desejo (tal como eram designados os mad men da publicidade). Modelações de valores se impõem, desde a recomposição das economias no pós-guerra (e D. Draper é um homem que ganha tal identidade, extraindo-a, como um falsário, do corpo morto de um companheiro de combate), fazendo do horizonte meditativo um traço de través sobre porções simultaneamente materiais e incorporais, orientadas para o desfrute do instante (uma época com selo inaugural e pronta destinação) em emergência.

Tudo do que trata a serialização comparece como um gráfico infinito de superposições e entrelaçamentos de signos. E indica, assim, um modo de leitura da passagem do tempo, implicada num revés tanto expositivo quanto autopositivo. Não à toa, o seriado se desenrola entre a face pública, parodiável, de um outdoor e o campo discursivo em que se conflagram sexos, etnias, subjetividades, táticas políticas disseminadas na contracosta do mainstream. Justamente, no Império América, onde vicejaram, no paralelo, as agências da Madison Avenue, pouco a pouco interrelacionando governança e mensagem publicitária num mesmo e flamejante ícone.

 

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………………………………….O menos difícil dos homens

“Sou o menos difícil dos homens. Tudo o que quero é o amor inatingível”. (O’Hara)

 

Meditação e Emergência – O poema lança uma trilha, bem conduzida de incisões e paradoxos, aos desdobramentos dos seriados, que tomam os formatos de telenovelas e dos diferentes programas. Já podia sinalizar Mad Men (não ao acaso, com base em O’Hara, esteta da instantaneidade), à altura de um presente desalinhado de forma e foco, como uma postura contemplativa se engendra nessa impensável quadratura de episódios sobre episódios em sequências/ciclos/temporadas. A partir de um material diverso, compreendido por consumo, publicidade, apropriação dos discursos os mais heterogêneos, a tv valida uma meditação sobre o rumor onipresente pelo qual o momento histórico é composto. E se dirige para nós, instalados no século XXI, sem muita noção, quando pensamos assistir a um mero revival de séries e de signos. Pois é sobre o próprio – jamais autoexposto – tempo que versam os seriados (sobre sua própria passagem em dadas época e conjuntura de texto/voz/visão).

Despontam os planos de uma incitação autoinvestigativa, para que seja feita a mais simples travessia de um a outro segundo, sem outro horizonte (sem a metafísica de um conhecimento sobre si) a não ser o instante em sua emergência hiperpovoada de sinais, rumores e vozes espetaculares, desgarrada da instância eterna/etérea da meditação, localizada que está na torrente diária, sucessiva –  dentro e fora dos domínios das telas –  dos signos entre nós (poderia suplementar JL Godard). Ou a História permeada por hiperficções e suas séries de saber entre o instante irrompido impensavelmente, desprovido de mediação, e a sequência incessante de dramas/docs/reportagens/interações do mundo-imagem.

A citada telessérie norte-americana vem, aliás, indicando um modo de compreensão do cotidiano que corre, simultaneamente, ao fluxo ininterrupto de ficções, através do empreendimento publicitário de captura do campo-de-forças em que uma multidão de cidadãos e consumidores se move. Um campo-de-provas: algo ocorrido no mesmo movimento em que as corporações de imagem são desestabilizadas pelos corpos vivos situados atrás das telas.   Impactante é o padecimento sofrido pelo protagonista Don Draper quando enfrenta no terreno de sua privacidade a eclosão de erotismo da filha pré-adolescente  (em masturbação na sala dos vizinhos, enquanto todos veem tv bem tarde da noite), assim como o cerco da cultura negra que ronda o escritório dos loucos lançadores de campanhas metidos em ternos justos, embalados por doses compulsivas de brandy e ataques cardíacos no mesmo gole.

Um autor seminal da contemporaneidade como David Foster Wallace já assinalava em um artigo (V. Referências Bibliográficas) a inevitabilidade da meditação não-natural feita ao redor do aparelho de tv, que é um móvel (enfatizaria Ronell), uma peça do mobiliário social, eletrificada como caixa-preta do sentido orbitado por uma civilização hipermediatizada, dia após dia. Seriado após seriado, uma série entrelaçada à outra, o móvel-aparelho, entendido, imediatamente, por um código neutro – a tevê está só passando (informação, ao fundo da sala, tal como a mente lança dados mecanicamente estocados na memória) ou estamos só passando em frente da tv – induz a uma disposição meditativa através do jogo contido entre no reality/too much reality, passível de reorientar os polos de manipulação/recepção aí implicados.

Não é por acaso que o autor de Infinite Jest vincula o surgimento da escrita pós-moderna nos States, matricial dos procedimentos mais inventivos da atualidade literária no presente milênio, aos diagramas semiótico-informacionais resumidos pela caixa-tv. Por conta da multiplicidade discursiva e dos modos de ver, relatar e distribuir o real, com suas séries de signos, alinhados entre “sintoma e sinédoque” (Wallace, 1993: 162) – Avital Ronell poderia frisar o anacoluto como figura nuclear do sistema televisivo de transmissão e audiência –, a telerrealidade tornou-se modo de vida, numa extensão de significados capaz de contaminar o aparentemente infenso campo da literatura.

Desde o precursor The Crying of Lot 49 (1965), de Pynchon, até a instalação da ficção-imagem esquadrinhada por Foster Wallace, entre os anos 1980-1990, ressoante até o dia de hoje, tendo-se em pauta os pregnantes conjuntos legados por escritores ainda atuantes como Lillo, Lish e outros em construção (Eggers, Bowman), o dispositivo televisual muito tem a oferecer como esfera apropriadora e interlocutora de diferentes ordens de discurso à máquina literária (tal como engendram Deleuze e Guattari). Principalmente, quando se pensa no contexto brasileiro, esquematicamente cindido entre seu imponente império áudio-visual de narrativas serializadas e uma literatura segmentada por leis de mercado, de um lado, e pela validação acadêmica, em uma outra, bem  comportada via.

Imprescindível seria um corte como aquele promovido por José Agrippino de Paula a partir da megaindústria cinematográfica, abrindo-se para uma encruzilhada de pleno risco no século XXI, sem recuo a fundamentos (da retórica dos gêneros), sem salvaguarda (de uma imagem imobilista de Brasil, com base numa história linear-evolutivo do literário sempre referendada em detrimento da historiografia cultural de natureza semiótico-mediática). Bem assinala o escritor portenho Damián Tabarovski que a literatura reveladora da heterogênea comunidade do nosso tempo se enuncia para fora dos critérios de legitimação defendidos por mercado e universidade, compostos num binômio desprovido de interesse pela experimentação, pelo potencial de acontecimento irrompido da rede pluritópica em que a palavra agora se inscreve.

Como vem acontecendo, inclusive na Argentina, com o surgimento incessante de autores realmente sintonizados com o tempo que passa em mais de uma direção, muito além do pódio de palestras, festivais e prêmios mantenedores do mesmo tipo de autoria, do mesmo livro, sob a égide de uma envelhecida política literária, a escrita nacional pode alcançar um lastro indispensável no cotidiano. Sem perda de seus referenciais mais cultos e mais complexos de elaboração, na gradação do fragmento de trama/drama que se segue (como se estivesse apenas passando ou qualquer um passasse adiante, em frente). Ao infinito das telas-de-fundo.
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…………………………………………………………..Novela-Nióbio

 

A ficção serial televisiva tem no Brasil uma tradição merecedora de atenção no que toca o poder de captura de comportamentos, de momentos  da  história, enquanto se desenrolam os signos do tempo mixados  ao  sabor  torrencial  dos  folhetins  (resíduos em remake, nas mais diferentes gradações). Estimulante se mostra a transmissão de uma narrativa na linha viva do cotidiano, se impregnando, diariamente, dos planos da domesticidade e da mediatização, aliás bem destacados no artigo de Foster Wallace. Os dados de historicidade, direcionados para um foco temático cada vez mais administrado na concepção das telenovelas, são por sua vez integrantes dos modos de vida relativos aos corpos anônimos postados ou não na frente das telas.

O inevitável é que a telesserialização nacional insufla a meditação  por força de seu efeito de emergência. As novelas só fazem intensificar o compacto combinatório de ponto-de-vista dos espectadores, enquanto consumidores, em tempo presente/real e visão projetada – a cantora-produtora-performer Björk apontou muito bem, numa entrevista (de TV), que a media para a qual estava testemunhando se caracteriza por imagens lançadas sobre o espectador, diferentemente do que se dá no cinema onde tudo se plasma na tela oferecida ao público.

Dentro da dinâmica indissolúvel apresentada no artigo citado “E Unibus Pluram; Television and U.S Fiction”, a ausência de realidade e o excesso de real engatam o paradoxo-composto de uma grade de programação que sequencializa notícias/novelas/shows interativos/documentários narrados em ritmo de ficção/reportagens-aventuras em um baralhamento mútuo de componentes de um título a outro, de uma ponta a outra de uma transmissão incessante ao longo do dia e das épocas. Não à toa, no interior mesmo das novelas, o teor informacional, investigativo, ganha estatuto de drama em extensão aos jornais e documentários da Nação Globo.

Curioso é notar o lastro lançado por Bráulio Pedroso, um dramaturgo requisitado para a escrita de telenovelas, desde Beto Rockfeller (até sua última produção, com o título sintomático de Tudo em cima, transmitida pela Rede Manchete, sem maior repercussão, em fins da década de 1980, pouco antes do autor falecer). O poder da serialização narrativa ali se mostrava (no sintomático ano de 1968) por conta de sua intervenção no presente (algo que se apreende hoje em Mad Men justamente por uma estratégia contrária). Até hoje a produção da TV Tupi paulista é referência e ganha – para quem pôde assisti-la – um sentido de radiação sobre o modo de se conceber telessérie. Principalmente, quando se tem em mira o vínculo formado entre emergência e uma meditação feita na velocidade de um dia sobre o outro, sem o isolamento metafísico de uma autoconcentração, mas sob o ruído-motor, de base, no limite da sala de morar, ver e continuar no tempo.

A despeito do traço de contemporaneidade, tornado definidor da história  da  telenovela a partir de Beto Rockfeller, o diálogo com a vida diária do público em audiência vem destituindo o tom misto de farsa e comentário cotidiano legado por Pedroso. O impacto causado por uma novela de agora, como Avenida Brasil, se monta sobre a intensificação do verismo, dos dados de real, arrebanhados como um empreendimento de parque temático, no qual se adicionam observações sobre a emergência da classe C capitaneada pelo governo brasileiro em consonância com o desmonte gradativo da dicotomia centro-periferia na geopolítica da globalidade. Tudo se transmite pelo congregado-combo de futebolistas e evangélicos em ascensão, passando pelo fim da família, pela feminização do mundo (Ronell, mais uma vez), entre coletivos de modelação sexual e reiterações fashion de “escova progressiva” (numa recriação ligeira da suburbia, inspirada em Almodovar). E, numa mesma medida, se exacerbam os códigos do folhetim. Assiste-se, então, a um teledrama “gritado”, elevado a um ponto de saturação da caricatura no que envolve a encenação da voz e da imagem dos espectadores considerados até há pouco como desfavorecidos, imobilizados pelos padrões telenovelescos de gosto (segundo intangíveis pesquisas), fadados a repetir os ditames, desde o século XIX, do “romance popular”.
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A TV Globo não se move de um padrão narracional, de um real prévio, há muito tempo, já. Desde Vale tudo (1988), cuja reprise pelo Canal Viva, no ano passado, pôde deixar à mostra que os elementos mais melodramáticos fornecidos pelo repertório folhetinesco (com concentração, inclusive, no conflito mãe e filha) se tornavam cada vez mais agudos quanto mais se centralizava a ficcionalização do momento político brasileiro daquela época,   movido  por  corrupção,  inflação,  arrivismo  político-financeiro. Renovadora era a introjeção da economia no fulcro do drama, com todas suas variantes melôs, colhidas nos clichês dos gêneros e dos filmes, com um rendimento nada inferior a Imitação da vida e Palavras ao vento, de Douglas Sirk, esse cineasta caro a R W Fassbinder e a Carlos Reichenbach pelo potencial de pathos conjugado ao foco crítico da refrega social/capital.

Na Globo atual, favoravelmente instalada na cultura global, o dado da emergência não conduz a uma intervenção plena de seu senso de historicidade na reescrita de um temário menos planificado do que aquele percorrido por incansáveis “pequenos órfãos” (mesmo locados no Lixão das Cidades). Estes jamais são resgatados de um real demarcado, avesso à abertura de pistas bem mais complexas, movidas por fantasia e autonomia reflexiva, oferecidas para a reinvenção de seus próprios, impensados, destinos. Para além de uma aliança de casamento entre classes e das reviravoltas/revanches do bem para o mal e vice-versa (sempre político-sociais, embora apreendidas numa alusão difusa, na mera apropriação do segredo das jóias de família), dicotomicamente determinadas como uma possessão. O duplo em fúria formado por Nina/Carminha não chega ao trash, ao nosso “cinema marginal”, nem mesmo ao citado Brian de Palma (na sequência em que a família de Tufão assiste a um DVD), de Carrie, filme banhado pelo sangue psicossocial da América dos anônimos, dos despossuídos de bens simbólicos (códigos do crédito e do consumo que fazem a festa legível de classe no Brasil de hoje).

Indispensável é o cotejo criado por uma novela fraca em audiência, como Máscaras, da Rede Record, concebida por Lauro César Muniz, o último dramaturgo da TV (na mesma esteira de autoria/produção em que se lançou Bráulio Pedroso, e até antes mesmo de Beto Rockfeller, com a hoje esquecida  Estrelas no chão). Indisposto, sempre pronto para abandonar o ofício, Muniz criou em mais outra “telenovela problemática” (como ele depôs em entrevista) uma trilha curiosamente mais bem sucedida na apreensão do presente do que o estrondo de efeito catártico a partir de esquematismos de mobilidade social. As vias emergentes de acesso à Avenida Brasil são mais sinuosas.

Diminuída em sua duração, por conta da baixa audiência, Máscaras (no ar apenas, infelizmente, até 1º de outubro) persegue os veios de um thriller global em vertiginosa escalada de relações. Insemina os esquemas de subfaturamento, no centro-oeste brasileiro, da exportação do nióbio – matéria-prima para a fuselagem, indispensável à indústria de guerra – na mesma gradação em que joga com as identidades de dezenas de personagens, tendo no centro uma criança sequestrada. O menino desaparecido nos primeiros anos de vida, desde a crise vivida pela mãe com o nascimento do filho, rende uma verdadeira mascarada – trabalhada com concentração e competência pelo dramaturgo e equipe –, capaz de dar todos os endereços ficcionais aí contidos. De uma reiterada citação de Édipo Rei, a elos explicitados com Quem tem medo de Virginia Woolf?, chegando a entrelaçar o teatro contemporâneo de Michel Vinaver nos seus espelhamentos familiares e mediáticos, a novela de Record, atravessa a madrugada dos dias úteis, tecendo um tenso desdobramento do leitmotiv criança secreta – título e pedra-de-toque de um belo filme de Philippe Garrel.

O que mais pulsa em Máscaras é o potencial de serialização das variações em torno do tema da orfandade capitaneado pelo folhetim nacional. Resulta de tal radicação um instigante encadeamento tomado por crianças imaginárias e outras gestadas em duas irmãs por um mesmo homem, assim como os duplos do filho verdadeiro do casal-protagonista arrebanhado por uma Corporação Transnacional, sediada em Dallas, misto de Ku Klux Klan mundializada e seita inominável inspirada em Eyes Wide Shut, de Kubrick. Aquilo que, em Avenida Brasil, soa como “bochicho” de um capítulo a outro, um disse-me-disse provindo de um arquiconhecido “segredo” por parte dos telespectadores em volta do que um personagem não sabe e, um lado a lado, vai fazer em pessoal revanche, na tela da Record vibra por propagações de trocas, surpresas adulteradas de um bal masqué internacionalizado, irrompido do interior do Brasil. As personae da novela-nióbio se encontram por conta da trama-tráfico da Organização, repercutida em ações afectuais, em elos contíguos que indicam o pertencimento de todos a um mundo inevitavelmente globalizado, partilhado em mais de um sentido, em mais de uma série de implicações com o tempo que passa.

Estimula ver o dispositivo-tv sendo tomado em emergência por essa via enviesada, expropriada, que uma atualizada meditação articula, sob o rumor dos mundos e das máquinas, em torno do nosso presente (não de todo dado, despontado de um a outro instante). Sem destituir seu caráter de máscara, de um modo surpreendente a serialização no Brasil espoca em lugares, horários e grades os menos aguardados. Acaba por frisar que o corpus múltiplo e, simultaneamente, autoparódico, disponibilizado pela televisão, elabora um indestrinchável polo de meditação e emergência. Uma vez que a vida diária se encaminha para um contraponto com alguma dimensão projetiva, um móvel ou uma tecnologia-móvel composta por dados que se presentificam incessantemente numa moldura maximizada de mediatizações e recursos. Não à toa, Máscaras exibe à exaustão tal engrenagem/entourage . Por um fio dotado do poder de informar e recriar o instante complexo e único, estendido como uma narrativa do milênio ao próximo dia passado em uma trama multiconfigurada de textos, imagens e ficções involuntárias.

 

 

……………“Eu preciso de você, Nameless Paloma”

 

 

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Referências Bibliográficas:

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O’HARA, Frank. The Collected Poems of Frank O’Hara. Berkeley, Los Angeles/Londres: University of California Press, 1995.

RONELL, Avital. Finitude Score. Essays for the End of the Millennium. Lincoln/Londres: University of Nebraska Press, 1994.

TABAROVSKY, Damián. Literatura de Izquierda. Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 2004.

WALLACE, David Foster. A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again. Essays and Arguments. Nova York: Back Bay, 1998.

 

 

 

 

 

 

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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaio Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo (ficções), editado em 2002, e do romance Ela não fuma mais maconha (2011). Publicou os livros de poesia Sonos curtos (1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes (2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde. Inéditos: Brasileira (romance); as narrativas de Alguém, Augusta (Garotas); Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (ensaio) e Giro Noite Cinema – Guy Debord (video). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Rafael Lovisi, Valeu Maurício, por mais uma cartografia vertinosa do presente.
    23 outubro, 2012 as 22:02

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