Tá me tirando, Paulo Lins?


Tá me tirando, Paulo Lins? O Estácio não acalma o sentido dos erros de “Desde que o samba é samba”

 

“É que o Estácio, o Mangue, tá passando por um momento muito precioso. A prostituição é festa todo dia. Aqui é outra cidade com muita luminosidade, muita gente alegre. A música brasileira de fato está nos cafés da Lauro de Araújo, a grande veia da zona. São grupos de flautas, cavaquinhos, pandeiros para tocar choro! As mulheres nuas em toda liberdade nas portas escancaradas…”

 

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A proposta de Desde que o samba é samba era estupenda, verdadeiramente grandiosa: tratava-se de reconstituir o momento em que foi criada a primeira escola de samba do Rio de Janeiro, no Estácio, quando o samba de feição moderna (incluindo a invenção de instrumentos) se impôs, principalmente através de Ismael Silva (um dos protagonistas) e outros compositores que faziam parte das rodas de malandragem dos anos 1920, sempre com um pé nas contravenções e no submundo.

Para tanto, Paulo Lins desenvolveu —como fio da meada— o triângulo amoroso formado por outro compositor-malandro (mais afeito ao segundo termo do que ao primeiro), Brancura, a prostituta mais linda cafetinada por ele, Valdirene, ambos negros, e um português (o qual, paulatinamente vira um chefão na zona do meretrício), Sodré. Como diz aquela canção tão bela, “se alguém quer matar-me de amor/que me mate no Estácio”.

Só que, apesar de ter Cidade de Deus no seu currículo, e da quantidade de pessoas que lhe prestaram assessoria (só para o texto foram duas, que parecem não ter cumprido muito bem a função), Lins produziu um dos piores romances que já li na minha vida inteira. É difícil dizer o que irrita mais: se o texto frouxo, amorfo, se o didatismo fora de hora, se os personagens mal explorados, se a estrutura mal concatenada, com segmentos desalinhavados, se o proselitismo duvidoso (que também afetava Jorge Amado, mas que saudade do poder com que este recria a resistência da cultura popular e negra, no maravilhoso Tenda dos Milagres![1]).

Em certos momentos, tive a nítida impressão de que o autor carioca, como a garotada de hoje diz de forma tão expressiva, estava “me tirando”, gozando da minha cara. Quando se reporta ao passado de Sodré, ficamos sabendo que, em função do uso da maconha, ele passara a ter relações sexuais com um vizinho (um índio velho?, haveria algo alegórico aí??!!), o qual morre durante uma transa mais vigorosa, digamos assim. Desacorçoado pela falta de Seu Lotório (nas palavras do próprio personagem, “Eu não sei do que mais eu sinto saudade… De futucar aquele cu dele ou de levar o cacete dele no meu rabo), Sodré descobre um clubinho de sexo grupal gay e exclama: “Nossa, que maravilha! Acho que voltei a viver!”!!!???[2]. A fogosa Valdirene fará com que ele descubra outras maravilhas e teremos pérolas do tipo:  “Na Pereira Pinto [onde mais?], Valdirene sentiu piripaque na vagina e começou a aguar logo depois que cruzou com Sodré naquele sol de primavera fria. Fazia tempo que não sentia nenhum remelexo na boceta por outro homem que não fosse Brancura. Sodré fez que não a viu, mas a pica foi endurecendo pelo caminho, conforme se lembrava das fodas que tivera com ela.”

Esse miasma textual desagradavelmente chulo que Desde que o samba é samba propaga é fruto da maneira tosca com que Lins manipula o foco narrativo. Para que a narrativa funcionasse, era fundamental que ele criasse uma “voz” que se somasse ou fundisse às personagens, mimetizando seu universo (o famoso discurso indireto livre). Lins não se decide entre o tom didático, em terceira pessoa, e essa amalgamação com os seus personagens (que só é lograda pouquíssimas vezes, num relato de quase 300 páginas),e o resultado é que seu tom desafina, fica forçado, e sobretudo reles. Daí acompanhamos um narrador em terceira pessoa que nos proporciona experiências de linguagem do tipo: “E foi o que rolou. E Sodré se revelou um otário…. Foi aí que fodeu tudo.” Nada contra o uso do “palavrão”, é óbvio, apenas me pergunto para que serve a literatura se não for para utilizar a linguagem de uma maneira radicalmente diferente da que usamos no cotidiano.

Essa confusão (que não me parece proposital, e se for, é muito mal realizada) entre o linguajar dos personagens e do narrador em terceira pessoa se torna mais grotesca ainda porque Lins está nos mostrando o momento em que uma linguagem artística, popular e revolucionária está se formando e se firmando dentro da nossa sociedade hiper-classista, ao mesmo tempo em que ocorre o (não há como negar) elitista Modernismo. Quando as duas vanguardas se encontram no livro (e aí aparecem Manuel Bandeira e Mário de Andrade[3], além de Carmem Miranda), é tarde demais, o leitor já se desinteressou por completo: “Para eles, não havia nada mais interessante na Cidade Maravilhosa do que o Estácio.” Desafortunadamente, como espaço literário, o Estácio não “acontece”, e Lins trai essa profunda vocação balzaquiana do romance de criar uma geografia inconfundível.

Funciona mais a parte em que os personagens se voltam para os guias da Umbanda (vista como outra forma de vanguarda, com relação ao Candomblé). Embora uma figura como Seu Felintra pareça um pouco o Gandalf da malandragem carioca, o que lhe dá uma certa comicidade, a linguagem das interpolações “espirituais” na vida dos personagens resulta mais convincente do que o resto. Talvez, no futuro, Paulo Lins possa se tornar um importante escritor do gênero espírita.

 

 

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TRECHO SELECIONADO– O diálogo entre um representante da malandragem e um policial:

“(…) ____O mundo nunca é como a gente pensa. O senhor, por exemplo, é um final de comédia e nem sabe que é!

__ Comé que é?

__ O senhor gosta de teatro? Já assistiu a uma comédia?

__ Já.

__ Então, essa coisa do senhor ficar tentando lembrar aí o que o delegado disse, escutando música que pode e que não pode, é final de comédia.

__ Como assim? Eu não estou entendendo.

__ É um pouco difícil mesmo. Mas se um dia o senhor pensar direito, assistir a mais comédias, o senhor vai ver que o final é tudo igual, assim que nem o senhor e as suas preposições.

__ Agora que eu não entendi nada mesmo.

__ O senhor é um preconceituoso, um estulto, e nem sabe.

__ Estulto? O que é estulto?

__ Então a sua voz só tem força, mas não tem alcance, pode fazer calar agora, pode interromper, mas não pode destruir pra sempre.”

 

 

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[1] “Noite de muita música, de letra, de várias invenções que se faz e se perde na mesma hora (…) Quem viveu viu, quem não viu não vive mais. Criações entre doses de uma bebida quente para soltar a voz, um vento sul soprando lá detrás da lua crescente (…) Foram felizes porque a melodia tem o dom de combinar direitinho com a gente, de jogar nosso corpo e fazer dele uma dança.

Vovó Cambinda, ainda na terra, rezava um filho no cantinho. As crianças brincavam de esconde-esconde no terreiro. Tudo naquela hora se transformava, fazendo o futuro acabar sendo uma avenida colorida.

Tudo naquela hora se tornava novo, uma nova coisa na arte para sempre. Era a reinvenção do carnaval, naquele doze de agosto de mil novecentos e vinte e oito.”


[2] O trecho em forma mais estendida, para o leitor ter uma ideia mais clara:

“__ Quer dizer, tem uns pormenores que, se você aceitar, nunca mais vai faltar cannabis pra você.

__ Quais?

__ Se você enterrar o seu cacete na minha bunda, deixar eu abocanhar ele na hora que você vier fumar, você vai ter cannabis enquanto eu estiver vivo.

__ Poxa! Eu tava mesmo a fim de comer um cu pra saber como é que é. Por que o senhor não falou antes?

__ É educação. Tava querendo pegar mais intimidade.”

A nostalgia do “tempo perdido” e a volta à vida:

“__ Você não deve tá muito bem com a morte do Seu Lotório. Nunca mais deve ter fumado maconha, nunca mais deve ter dado esse cu, né?

__ É, saudade também daquela bunda dele. Eu não sei do que mais eu sinto saudade.

__ Como assim?

__ De futucar aquele cu dele ou de levar o cacete dele no meu rabo. Ele me caralhava que era uma beleza.

__ Bunda por bunda, a gente podia fazer um negócio aqui, ó.

__ O quê?

__ A gente se reveza. Eu enfio o cacete na bunda dele, depois ele enfia na minha, depois eu enfio na tua e assim vai. Quem gosta mais de levar fica mais um pouquinho, quem gosta de meter, também. E pode chupar pra dar mais impulso, e assim vai. Vamos lá no clubinho!

__ Nossa, que maravilha! Acho que voltei a viver.”


[3] Ismael Silva e Mário de Andrade (I):

“__ Você gosta de homem também, né, querido? Alves me falou que você é homossexual.

__ Não, sou veado mesmo!”

Ismael Silva e Mário de Andrade (II):

“Chegaram ao cais deserto por volta de seis da noite, os dois fuzileiros já esperavam ali na proa, um deles foi logo dando tapa na bundinha de Mário, o outro sapecou logo um beijo no pescoço de Silva. Começaram a meter naquela hora e só pararam depois de meia-noite. Mário era só alegria:

__ Não para, não para, não para—falava toda vez que ia gozar.

O Rio de Janeiro era seu lugar de alegria. Trepava olhando e sentindo o remelexo das águas da baía, o ir e vir do naval dentro de seu corpo, a melodia do mar em seus ouvidos. As mordidinhas no pescoço o faziam gemer, o naval tocando punheta em seu caralho. A viva vivida como deve ser.”

 

 

[A resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de novembro de 2012, sem as notas de rodapé e o trecho selecionado e retirada, posteriormente do blogue de Alfredo Monte]

 

 

 

 

 

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Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




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