Subsolo das Memórias


 

Chicago, 21 de setembro de 2014

São Paulo, 24 de julho de 2010

 

 

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O barulho brusco da porta do carro me despertava.

Chegamos.

O Zorba me pressentia – e latia.

Ponta dos pés: quase alcanço o ferrolho.

Minha mãe: tá enferrujado, meu filho, não põe a mão aí!

Meu pai abria o portão em silêncio.

Range.

Domingo.

Chão amarelo-fosco, gelado. Não piso na fronteira dos ladrilhos. Aos pulos, me demorava até o quintal.

A tia Inês alisa o meu cabelo – sempre a primeira, sempre à espreita. (Depois não a via mais.)

Já jogavam truco mais adiante. Vários tios. O Ricardo, o Santo, o Beto e o Nenê.

– Quer dar uma bicadinha, Ricardinho?

Amarelo outro. Agora a fronteira é branca – e se move.

Tio Nenê: pô, San-tô, cerveja pro menino?! Pega amendoim, Ricardinho, toma.

– Quanto tá?

Tantos feijões, tantos pontos – a menos. (Eu ainda ia plantar feijão na orelhona do Zorba, ia, sim.)

Cadê os dedos do tio Beto? Na floresta da barba.

O tio Ricardo, eu e a delação do 7 Copas pro tio Santo.

– Truco, ladrão!

Não, não, não, não me tinham descoberto, os feijões eram do Zorba.

Logo o corredor polonês de afagos.

Bochecha direita da tia Madalena (tio Ricardo de soslaio); a tia Maria e a bermuda que sobe; a tia Suzana e o beijo. Lábil.

– Tia, por que teu cabelo é vermelho?

O Zorba não ficava entre a gente. Que seria da coxa de frango? E quanto à maionese da tia Edna? (Soslaio do tio Beto.) O Zorba late – e morderia, não fosse o guardião de deira. Fronteira de pé e de pinho. Ponta das patas: quase rasga o ferrolho. Ganidos.

Sempre achei o Zorba triste.

Pêlo escuro, alguns náufragos clarinhos.

Olhos redondos e bem pretos.

Distantes.

A perder de vista.

Vazios.

Eu me via ali.

Talvez minha primeira fronteira etérea.

O Zorba não tinha lágrimas.

Talvez por isso fosse mais triste.

Olhar represado.

Comporta.

Focinho longo, longo por entre a cerca.

Sentia os ombros premidos?

Focinho molhado, irrequieto, extensão das orelhas, antenas pontiagudas.

Faço menção do estilingue, feijão a postos – latido em riste.

Focinho longo, longo por entre a cerca trêmula.

Minha mãe pelo colarinho:

– Ricardinho, olha lá o Glauco, o Marcel e o Daniel.

Primos fugidios.

Pega-pega.

Esconde-esconde da Iasmin. Nunca ninguém ouvia a voz dela. Agachadinha, quase toda sob o vestidinho de borboleta. Crisálida.

Vejo agora as polaróides do tio Ricardo. O flash. Imagem opaca. O vulto do tombo do Marcel – ou teria sido o Daniel? Talvez o Glauco.

A Iasmin por testemunha.

Enfim um bife pro Zorba – sobre o papel, sob a película. Ainda uma fronteira. O Zorba dá de ombros – rosna.

– Bom dia!

Todos se voltam para a soleira da porta. Mesmo os olhinhos da Iasmin despontam do casco rosa.

O vô Batista aparece solene – e trêmulo.

Arqueado.

Suspensórios gastos, olhos como frestas.

Quase não os via sob a fronteira espessa dos óculos.

– Vô, vô!

Mãos ásperas da lavoura. Rosto arado.

– Trouxe, Ricardinho?

– Claro, vô, quero mais um!

– Já, já.

Glauco, Marcel e Daniel – e os olhinhos da Iasmin:

– Que que o vô te deu?

A vó Ana ainda de avental:

– Tá quase pronto, gente, vamos entrando.

– Vai ter charuto, vó?

Lasanha.

Teria.

Lá dentro tinha carpete – joelho ainda mais ralado.

Ai, eu sabia que o corredor viria…

O taco range ainda mais no escuro.

Penugem eriçada.

Pé ante pé.

Portas maciças contra os meus olhos.

Fechadas.

Entreabertos.

Súbito uma muralha de jeans, mão-gancho até o meu ombro – a captura: Nato cala o meu grito com chocolate.

– Cê passa aqui depois, Ricardinho?

– Passo. Primeiro no vô, né?

– É, primeiro no vô.

O Nato e o radinho de pilha.

– Cê não vai comer lá com a gente, Nato?

– Eu como depois, tem mais espaço.

O Nato tem pouco pescoço.

Barba sempre por fazer.

Pisa sobre o cadarço.

Fala pouco, pouquinho, mas comanda um time de futsal.

– Tem jogo hoje, Nato?

– A Bandeirantes diz que tem.

– Corinthians e quem?

“No toque-toque da bola, no tique-taque do tempo, na Bandeirantes São Paulo você fica sabendo: pã-pã-pã, pã-pã-rã-pã-pã-rã!”

– Só às 4.

– Tá bom.

– Trouxe o livro do vô?

– Claro, Nato, quero mais um!

Precisava me dependurar para abrir a maçaneta.

Os vincos no lençol denunciavam a ausência ainda morna.

O chapéu grandão me serve mais como uma máscara.

Guarda-roupa calado.

E o cheiro – cheiro de quarto próprio, recluso, cheiro estagnado.

Cheiro de memória.

Atrás da cama, o baú.

Sob o pó.

À espera do toque.

– Cadê as luvas?

Meu vô vai fechando a porta.

– Aqui.

– Pode abrir.

No baú, palavras em silêncio.

Livros.

Folhas amarelecidas, palavras pelas nódoas.

Páginas costuradas, páginas cadentes.

Estórias sem fim.

– Terminou o último livro?

– Não consigo entender tudo, vô.

– Leia sempre em voz alta.

– Por quê?

– As palavras tomam corpo, você conversa com a história…

Com o travesseiro no colo:

– … a gente se sente menos sozinho.

Imigrávamos meu avô e eu.

Meu vô ia perfazendo as veredas que não trilhara.

Dentro do baú.

O mundo ia tomando forma para mim.

Baú adentro.

– Não acredito, existe um lugar grande assim mesmo, vô?

– Grande? Imenso! É a estepe, Ricardinho. Cê já tá caminhando por ela?

– Já.

– Quantos passos?

– Tá difícil, o chão tá mole.

– Nevou?

– O abonimável…

– A-bo-mi-ná-vel.

– … homem das neves.

– Leva ele pro deserto.

– Daí ele derrete, vô!

– Mas você não fica com sede.

Sedento:

– Vô, vô, que que é ampuleta?

– Am-pu-lhe-ta.

– Isso mesmo.

– É o meu corpo, Ricardinho.

– Quê?!

Silêncio a estalar os dedos.

– Continua, Ricardinho.

– Acabou, vô.

– Assim no meio?

– Ó aqui:

– Ah, tá, caiu a última página.

– E agora?

– Continua, Ricardinho.

– E-eu?

– Como você acha que a história terminaria?

– O camponês tá carregando um monte de batata. Tem a enxada. Ele ainda tem que andar muito de volta pra casa.

– Cê acha que ele consegue?

– Hum… larga a enxada lá.

– E depois pra trabalhar a terra.

– Deixa um pouco de batata, então.

– Mas e a esposa? E os filhos?

Silêncio de olhos fechados.

– Já sei: chama eles pra comer lasanha aqui com a gente!

 

O sorriso amplo do meu avô ressoou pelo quarto a ponto de os óculos deslizarem pelo nariz vermelho.

O arremate me rendeu afagos no cocuruto.

Toque-toque-toque:

– Entra.

– Vamos almoçar?

– E o Nato, mãe?

– Cê não quer chamar ele, meu filho? Vamos almoçar, Seu Batista?

O quarto do Nato ficava a leste – talvez ao sul –, a dez passos do QG do vô.

Minha mãe não podia cobrir a retaguarda.

Missão solo.

Algo de novo no front.

Me esgueiro pelo pântano de tacos descolados.

A bateria inimiga lança bombas que assoviam.

O Nato e o rádio alto.

O código Morse não funciona logo.

Ei, Nato, que não abre a porta!

– Nato, Nato… (Sussurro com a faca entre os dentes.)

Abre-te, sésamo.

– Tava dormindo, Nato?

– Quê?

– Abaixa o radinho.

– Olha que tua mãe pode ouvir.

– Ouve nada.

– Trouxe, Ricardinho?

– Claro, tá aqui.

– Gostou?

– São muito velhas essas moças, Nato?

– Pra você, sim.

– E pra você?

– Pra mim, Ricardinho, o problema não é a idade…

– Qual é, então?

Nato coça a cabeça.

– Você acha que elas são muito pobres, Nato?

– Como assim, Ricardinho?

– É que quase nenhuma tem roupa.

Dedo em riste corta a boca.

– Se tua mãe te ouve…

– Cadê a dessa semana?

– Não tem.

– Ah, Na-to…

– Peraí.

– Que que foi?

– Vira pra lá.

Soslaio.

Nato e o labirinto das gavetas.

– Deixa eu ver!

– Abre a mão.

– Que isso?

Cheiro doce.

Vermelho mais forte que o cabelo da tia Suzana.

– De quem é?

– De uma moça.

– Tua namorada?

A calva coça, Nato.

– Sempre que dá, ela é minha namorada.

– Não entendi.

– É que ela é muito ocupada, Ricardinho.

– E que que eu faço com isso?

Nato ausculta a porta.

Nada.

Radinho ainda mais alto.

– Guarda bem, não mostra pra ninguém. Um dia você vai saber o que fazer.

– Já sei.

– Quê?

– Cê também quer que eu conte o fim da história, né?

– Ricardinho, Ricardinho, tem coisa bem melhor que contar…

– É?

– Vai almoçar.

– Você não vem?

– Depois do jogo.

– Por quê?

– Tem mais espaço.

– Cê não se sente sozinho, Nato?

– Ué, não tem a comida?

– Mas ela não fala nada.

– Pra isso tem o rádio.

– Mas o locutor não tá aqui!

– Por isso eu ouço o rádio enquanto como.

– Ninguém nunca te chama, né?

– Chamam, chamam, sim.

– Chamam nada.

– Você é que não vê.

– O Zorba também fica sozinho.

– Isso é.

– Mas tem lasanha pra ele.

– (Mal sobra pra mim.)

– Como?

– Ó tua mãe, ó, vai lá – e guarda nosso segredo, tá?

O corredor escuro não assusta tanto quando a gente corre pra cozinha de uma vez.

Tava todo mundo ali.

(Ela ficou no meu bolso.)

O tio Ricardo sempre batia a faca no copo para propor um brinde.

Puxo a barra da camisa:

– Tio, vai sobrar comida?

Pelo canto da boca:

– Por quê, Ricardinho?

– Tem o Zorba…

– ?

– … e o Nato…

– Ah…

– … e o camponês cansado.

– Como?

A vó Ana mau aguentava a travessa.

Respingou um pouco – não tava faltando sal, não.

O tio Ricardo começou a falar – meu copo já cheio de guaraná.

Mas e o casebre do camponês?

A lasanha borbulhava – o guaraná também.

– Mais um domingo juntos!

Meu vô ainda tentou evitar.

Cadê a tia Inês?

Minha bermuda tá caindo, tia Maria.

Tira a carta da manga, Santo!

Tem lágrima nessa barba, Beto…

Tia Madalena, e quanto à bochecha esquerda?

Cadê o Zorba?

E o Nato?

Dentro do baú do vô.

Meu guaraná inundou a lasanha.

Me chacoalhavam minha mãe, meus avós, ficou tudo mais alto que o radinho do Nato.

Cadê meu pai?

 

 

 

 

 

 

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Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário e autor de “Tiro de Misericórdia” (Editora nVersos, 2014) e “O Evangelho segundo Talião” (Editora nVersos, 2013) e organizador de “Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade” (Editora Intermeios, 2012). Durante o mestrado em Teoria Literária (2008-2010) pela FFLCH-USP, o escritor Fiódor Dostoiévski fez com que Flávio Ricardo se embrenhasse pela Rússia, durante um ano (2008-2009), para aprofundar, junto à Universidade Russa da Amizade dos Povos, em Moscou, o aprendizado da língua que as “Memórias do Subsolo” legaram a Stálin. Agora, durante o doutorado em Teoria Literária (2012-2015) pela FFLCH-USP, Dostoiévski e a dialética fazem o autor nômade migrar novamente, desta vez para a fronteira oposta da Guerra Fria: entre setembro de 2014 e agosto de 2015, Flávio Ricardo realiza um estágio doutoral junto à Northwestern University, em Evanston, Chicago, nos Estados Unidos. Segundas-feiras, quinzenalmente, o autor apresenta, a partir das 22h, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z, www.tvgz.com.br, o Portal Heráclito e o YouTube. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

 

 

 

 

 




Comentários (1 comentário)

  1. Maria Nicolau, …uma delícia de leitura, uma perspectiva de conversar com a história, como diz o autor: a gente fica a vontade para lembrar de nossas memórias, também
    24 setembro, 2014 as 14:12

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