Sobre a arte de afinar o silêncio


………………………..Perspectivas de um leitor

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Com a mesma precisão de um cirurgião, afirmo que o conto é a arte narrativa que mais se tem desenvolvido nas últimas décadas no Brasil, sendo este período comumente chamado pelos críticos de a era de ouro do conto; também se pode afirmar que das três – o romance, a poesia, o conto – ela é a mais difícil como a mais ignorada no cenário da atual literatura, deva-se à forma ou à leitura. Talvez – aqui já não sou preciso –, porque o conto exija do seu artesão uma economia de linguagem e um domínio da técnica semelhante a um artista plástico conhecedor do pictórico, como do seu leitor uma atenção e um estado emotivo cômodo à recepção do texto. Seria, portanto, o conto por excelência um quadro de cores arranjadas segundo o jogo de luz e sombra, bastando ao artesão somente entender este jogo para dominá-lo com mestria de forma a levar vantagem sobre seu adversário (o leitor).   Poucos são, no entanto, que a arte dominam-na bem, como esgrimistas a manejar com suavidade e destreza seu florete, até por que, após a influência exacerbada de Katherine Mansfeld, Kafka, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, na geração pós-modernista, o conto – escrito pelos novos autores em sua maioria – tornou-se inócuo, desprovido de argumento, aproximando-se da prosa poética; poucos são, então, que merecem o elogio da excelência pelo domínio da técnica inovando o gênero, como Dalton Trevisan e Moreira Campos.

Apesar disto, o conto atualmente recebeu mais inovações estilísticas que o romance no ultimo triênio, e o recebeu da mão de autores que compreenderam seu mecanismo como relojoeiros a entender as relações complexas entre molas e rodas dentadas.  Um desses autores é o escritor carioca Mariel Reis  que se revelou um hábil contista,  destacando-se como um dos melhores da nova geração de autores. Embora não tenha sido publicado nas duas antologias que fizeram burburinho entre os acadêmicos e a mídia, Geração 00 e Granta, Mariel é considerado um dos que estão inovando esse gênero, e isso se deve a qualidade dos seus textos.  Prova disso, é seu último livro, A arte de afinar o silêncio, lançado pela editora ponteio. Neste livro, Mariel revela-nos sua outra faceta de contista, uma muito próxima do estilo narrativo dos meados do século XIX, quando o conto esbarrava na crônica. A faceta que se mostra é debochada, irônica, leve e divertida, folhetinesca, com traços do realismo fantástico, combinados a uma prosa urbanista, característica do conto brasileiro pós-moderno, mas com ares de fuga a esta classificação já tão gasta. Trata-se, enfim, de um livro que encanta seu leitor com narrativas – volto a dizer – leves e divertidas, prendendo a atenção. São contos bem temperados como um prato italiano preparado pelo melhor cozinheiro: basta provar para saber – é o meu conselho.

As narrativas de Mariel são povoadas por diversas referências estilísticas, tais como o humor desfigurante, violento e poético de Trevisan como também a fluência de contar histórias de Ivan Angelo e ironia debochada de um carioca auto-caricato como Drummond; ambas as leituras poderiam limitar sua criatividade, no entanto, isto não acontece, o autor se apropria da influência e a recria com sua própria voz, tornando-a seu objeto como um artesão a modelar o barro.

O resultado de tal apropriação estilística é a criação de uma narrativa marcada pela voz do próprio autor, uma voz que se apresenta inconfundível, única, sendo por isto, desde já , ser intitulada narrativa reisiana, pois pela leitura de qualquer outro conto que não faça parte dos livros publicados pelo escritor, é possível já se identificar a singularidade de sua narrativa. Não é, portanto, nem fonsequiana, nem machadiana, e que classificação estilística a mais houver, não, é Mariel Reis, sua voz, seu estilo, sua marca.

No conto “As minhas queridas encarnações”, o autor narra a história de um homem que se lembra de suas encarnações passadas, encarnações estas nada típicas do espiritismo moderno, mas antes, platônicas e poéticas como ter sido uma “tigela de comida de um filhote” de cão, ou “a seringa de um drogado”; o conjunto das existências passadas preenche de poesia o conto.

“Meu tio encantado” à semelhança do primeiro é um flashback do desenvolvimento da loucura do tio do narrador, entretanto, a loucura narrada é poética, e mais que poética, panteística, como se a loucura surgisse da extrema necessidade de união com a natureza e o poeta, tomado como louco, fosse (ou é) alguém que pela poética, busca reunir-se à natureza – sua genitora.

Além destes dois, muitos outros impressionam como Jim Cluster – conto ao estilo faroeste americano, permeado por uma versão latinizada como a de Jorge Luis Borges em História Universal da Infâmia.

O livro A arte de afinar o silêncio foi organizado pelo escritor como um programa de tv, e, somando a quantidade de programações (contos) que constroem a pequena obra, pode-se dizer que o livro daria um bom canal de tv. A questão que fica – e esta só o leitor pode dizer – é se gostaria de assinar este canal como parte  de sua rotina. Eu fiz minha assinatura e afirmo que assistir este canal é bastante ou mais que o suficiente divertido para meu entretenimento. Porém o telespectador não assiste a todos os canais, faz sua escolha, a escolha do programa que mais lhe agrada, pode ser um, pode ser todos, não faz diferença a quantidade, o importante é a intenção ser atingida: no momento em que ligo a tv e começo a sintonizar os canais, a controlar o volume do som, estou afinando o silêncio.

Então, após a leitura, deixo aqui meu conselho: sente-se na poltrona, ligue a tv, sintonize o canal, e leia esta pequena e grande obra de arte do conto contemporâneo brasileiro.

 

 

 

 

 

Anderson Fonseca (RJ) é escritor, autor do livro de contos Notas de Pensamentos Incomuns (Ed. Multifoco, 2011). E-mail: luizdovalefon@hotmail.com




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