Silenciando o zum-zum-zum da cidade


 

 

Tatuagem na memória

 

Luiz Ruffato apresentou Alguém para amar no fim de semana, o livro anterior de L. R. Guedes, como “uma quase novela, de sabor pop”, porque metade das narrativas eram protagonizadas por um Josué Peregrino, espécie de anti-herói contra-cultural. O personagem está de volta neste Miss Tattoo, e dois contos em particular (História na hora de dormir e Belíssima) encerram sua jornada, compondo, agora sim, uma quase novela, conforme o conceito ruffatiano. Outros contos também privilegiam o trinômio sexo, álcool e drogas recreativas — e ecos da música popular ressoam através do livro —, esboçando a crônica de um modo de vida alegremente hedonista, como em Astroman, Ritos favoritos de Eros ou Cibele, si belle.

Nessa balada sensual, alguns personagens têm emprego fixo ou são flagrados gozando seu ócio, e mesmo as relações familiares demarcam zonas de conflito. Uma primeira leitura soará divertida, há humor em vários níveis. O grau de erotismo causará seu efeito. O que já seria excelente material para um contista com um mínimo de habilidade, Guedes transforma num retrato em que nossa humanidade se reconhece. É bem capaz que te venha uma vontade louca de tomar um trago ou até de fumar ‘unzinho’.

Tudo bem, relaxe: você está sob a influência de um escritor que, tendo ou não vivido tudo o que relata, cria um universo próprio com sua literatura — e te leva junto. Volte aqui de novo para resgatar o que deixou para trás.

 

Sérgio Fantini

 

 

No zum-zum-zum da cidade
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Quando ando pelo centro de São Paulo costumo me lembrar de Luiz Roberto Guedes. (São Paulo tem mais de um centro: o histórico, por volta da Praça da Sé; o mais novo, a um quilômetro do outro, próximo à Biblioteca Municipal e à rua São Luiz; e há, também, o centro novíssimo da Avenida Paulista; dizem que há mais.). Estou aqui falando do centro “novo”, das galerias da Rua Barão de Itapetininga, passando pela Rua Marconi, indo até a Rua Xavier de Toledo. É nesse pedaço que o escritor pontifica. Ou melhor, seus personagens, principalmente em seu livro Alguém para amar no fim de semana. Nas histórias, eles podem nem estar por ali, mas são quase todos filhos do centro. Amante da literatura fantástica, Guedes a deixa de lado e mergulha, nesse Miss Tattoo, em um realismo tão paulistano como contemporâneo: como a Miss, as meninas costumam ser tatuadas, ouvem muito rock – em geral, não porque queiram, exatamente, mas porque alguém ligou o rádio –, exercem trabalhos humildes, mas sempre de classe média. Safadas, elas empinam as bundas, com o reforço de calças justíssimas, mostram peitos trêmulos e fartos, faltando pouco para saltar de blusas sob pressão (não escapa um decote do narrador) – e sempre gostam muito de sexo, intenso, mas um tanto casual.

Seus casos, namorados e quase relacionamentos podem ser pequenos e médios executivos, insatisfeitos da vida; ou tristes garotões ostentando algum símbolo da tribo da moda. Na entrelinha, muito rock, muito pop, uma certa MPB nostálgica, além de sugestões publicitárias, canalhas e enganosas. Aquelas meninas se imaginam espertas, mas não percebem que a cidade as está comendo, como, afinal, a nós todos. No universo tattoo de Luiz Roberto Guedes, pode-se imaginar que vivamos, naquele centro “novo”, a crise de um capitalismo de massa.

Miss Tattoo é mesmo a expressão do paulistaníssimo Luiz, com toda a complexidade do dia a dia nesse começo de século. Mas não seria fácil lidar com personagens aparentemente fúteis? Não mesmo, por que  a qualquer momento eles cortarão os pulsos.

Prepare-se para pôr o livro na cabeceira e – se você estiver realmente vivo – excitar-se com as cenas de sexo, algumas muito convincentes. O autor é bom nisso, inclusive de outras obras. Mas não esqueça de que Luiz Roberto Guedes gosta de dissimular tudo, inclusive sua visão de mundo. Ponha lá um clássico dos Beatles para acompanhar a leitura e não ligue para o zum-zum-zum da cidade, ao fundo.

 

Fernando Portela é escritor, jornalista e editor. Olindense radicado em São Paulo há eras.  Mantém o site literário https://fernandoportela.wordpress.com/

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Confira a carinha do Luiz Roberto Guedes, acima, e um conto do livro, abaixo:

 

Uma noite com Carla, Conrado e Mila

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QUANDO CONRADO SOLTOU UM GEMIDO PAVOROSO E desabou no chão, Carla precisou de alguns minutos para assimilar o fato de que ele estava morto. Fulminado no parquet de sua sala de estar. Não era mais caso de chamar uma ambulância, mas de pedir socorro a alguém capaz de lidar com o problema.

Ela teve um arrepio de horror só de pensar em cair na boca das matildas de Buritirama, cidade orgulhosamente provinciana. Ligou de imediato para sua amiga Emília Pirondi, a pintora, que morava numa chácara não muito longe do centro urbano.

“Mila? Vem aqui agora, pelo amor de Deus! Aconteceu uma coisa horrível. Não fale com ninguém, venha já!”

Atordoada, procurou o que fazer. Foi à área de serviço, recolheu um lençol na pilha de roupa passada e veio estendê-lo piedosamente sobre o corpo de Conrado. Depois, guardou na geladeira a salada de agrião, alface, palmito e tomate-cereja, lavou a taça de vinho que seu convidado usara e colocou-a no escorredor, sentou-se na cozinha, acendeu um cigarro e tomou outra taça de vinho branco.

 

Mila estacionou seu jipe na esquina de um extenso prédio comercial, de dois andares, fechado àquela hora da noite.

O estúdio de Carla Varela, arquiteta e paisagista, ocupava um dos conjuntos do térreo. A entrada para sua casa, no primeiro andar, ficava na rua lateral.

Carla sentiu um alento ao ver sua amiga no monitor do circuito interno de vigilância. Alta, esguia, imperturbável, parecia muito com a tenente Ripley, do filme Alien.

“Qual é o problema, gata?”, ela perguntou já no portão.

Carla cruzou o indicador sobre os lábios, impondo silêncio.

“Carlita, você está vestida para o crime”, Mila gabou o estilo da amiga: cabelo dourado com corte Chanel, pálpebras azuis, boca vermelha, salto alto e um vestido de verão, que ostentava seus ombros formosos, suas pernas esplêndidas.

Não era segredo que Mila achava Carla uma delícia. Só lamentava que a loira tivesse um gosto tão vulgar por garotões bombados. O tema predileto da pintora Mila Pirondi eram mulheres etéreas, de seios bojudos e cabeleiras selvagens. Gostava de mulheres libertárias, mas nunca tinha dado em cima de nenhuma das “Garotas do Baralho” — o círculo de amigas descasadas, quarentonas e cinquentonas, que se reunia toda semana para jogar canastra. Em algum momento, uma delas lhe dera o apelido de “Miloca Piroca”, mas ela não se aborreceu nem um pouco.

 

Na sala, Carla apenas indicou o corpo com um movimento do queixo, e pegou sua taça de vinho sobre a mesa de centro. Os sapatões bicudos de Conrado projetavam-se para fora do lençol azul. Mila descobriu a cara do morto. Olhos arregalados, boca escancarada num esgar de agonia. Ou de prazer.

“Quem é ele?”

“É o Conrado Conti, dono daquele lojão de material de construção.”

“O que você tava fazendo com esse coroa? Mudou de faixa etária? Que idade esse cara tem?”

“Fez sessenta e dois em outubro. A gente tinha uma amizade, só isso. Ele ficou viúvo faz um ano, eu levava ele pra umas baladas, nada mais.”

Mila puxou inteiramente o lençol. O finado tinha a calça aberta, a cueca abaixada até o meio das coxas. O pênis estava exposto, com aspecto de post coitum triste.

“Só amizade, não é, Carlota?”, Mila ironizou.

“É, eu tava dando um trato nele, aí ele gemeu e caiu duro. Ele era diabético, cardíaco, teve um infarto faz oito meses… Meu Deus!”

“Puta que pariu, Carla”, Mila sacudiu a cabeça, com ar de desânimo, mas logo deu de ombros: ”Bom, pelo menos ele morreu gozando. Tem maneira melhor de morrer?”

“Ai que horror, Miloca!”

“Onde estão seus filhos agora?”

“Murilo foi passar o fim de semana na fazenda da família de um colega de faculdade. Lara vai dormir na casa do namorado.”

“E aí você quis aproveitar a noite de sexta.”

“Não fala assim, Miloca.”

A amiga dirigiu-se à cozinha, lançou um olhar em torno. Calçou as luvas de plástico que viu sobre a pia, encheu uma vasilha com água, pegou um rolo de papel-toalha. Assim equipada, sentou-se no assoalho e começou a lavar cuidadosamente o falo do falecido.

“Pra que isso, Miloca?”

“Hoje em dia, queridinha, a polícia é capaz de descobrir um criminoso até pelo cuspe. Venha me ajudar, temos que fechar a calça dele.”

Fecharam também os olhos e a boca do defunto. Depois de descartar o chumaço de papel na vasilha, Mila descalçou as luvas, tomou a taça da mão de Carla e esgotou seu conteúdo.

“Onde está o carro dele?”

“Na minha garagem. Ele é — ele era muito discreto, não quis deixar o carro em frente da casa.”

“Ótimo. Alguém está sabendo que ele vinha aqui hoje?”

“Acho que ninguém. Ele vive sozinho, quer dizer, vivia. Os filhos moram na capital.”

Mila pegou a garrafa de Periquita na mesa de centro e serviu-se de uma boa dose. Bebendo e reparando no relevo dos mamilos de Carla sob o vestido, ela esboçou um plano:

“Já sei o que vamos fazer. Colocamos o corpo no carro dele, e largamos o carro no parque municipal. Vai parecer que ele teve outro ataque cardíaco e morreu por lá mesmo, certo?”

Carla observou que o parque estaria fechado durante a noite, mas Mila disse que conhecia uma entrada sem portão e sem vigilância.

“Vamos imaginar que ele comentou com qualquer pessoa que viria aqui hoje”, Mila elucubrou. “Se a polícia souber disso, vem bater na sua porta.”

“Ah, meu Deus! O que eu faço, Miloca?”

“Pegue seu celular e ligue pra ele”, apontou o cadáver. “Faz de conta que ele tá demorando, e você tá preocupada. Ligue já. Seja bem natural.”

Carla obedeceu. O celular no bolso do morto tocou a overture de Indiana Jones. A gravação atendeu, ela deixou recado:

“Oi, Conrado, cadê você? Tô te esperando, tomando um vinho. Fiz aquela salada que você gosta. Não demore, querido. Beijo, tchau.”

“Muito bem. Você tem um colchonete?”

“Pra quê?”

“Pra gente arrastar o corpo até a garagem. Facilita a vida.”

Carla foi desencavar um colchonete num cômodo de despejo. Ajeitaram o cadáver sobre ele.

“Agora, vá tirar esse salto alto”, Mila ordenou. “Ponha um sapatinho básico. Ande logo, mulher.”

Carla acelerou nos saltos para seu closet. De volta, viu Mila calçar novamente as luvas e pendurar um pano de prato no ombro.

“Pra quê isso, Miloca?”

“Pra apagar impressões digitais do carro dele. Tá pronta?”

Carla guardou seu celular dentro do decote. E logo as duas exercitaram seus músculos rebocando o colchonete escada abaixo, por quatro lances, até a garagem privativa da residência. Enfurnaram o corpo e o colchonete no porta-malas do Volvo preto de Conrado, alinhado junto ao Mini-Cooper vermelho de Carla.

Enxugando a testa na manga da jaqueta, Mila notou as gotinhas de suor no lábio superior da amiga.

“Coragem, Carlita. Vou na frente com o carro dele. Você me segue no meu jipe, que está aí fora. Pegue aqui a chave. Vamos fazer um caminho diferente, fora do centro, entendeu? Vambora, mulher. Enquanto esse povo ainda tá vendo novela na televisão.”

Carla acionou o controle da porta basculante da garagem.

 

Mila deixa o bairro residencial e percorre as ruas mal iluminadas de vilas periféricas, antes de rumar para a via que contorna o Parque dos Pássaros. Carla vem logo atrás, agarrando o volante com os nervos retesados. A jornada tem um clima de pesadelo, que se torna mais opressivo quando Mila sinaliza à direita e embrenha-se num caminho estreito, margeado por arvoredo espesso. Cascalho crepita sob os pneus, folhagens açoitam o para-brisa dos carros, os faróis alvejam capivaras assustadas, que fogem na escuridão do mataréu. Carla quase grita de alívio quando avista o famoso lago das garças, brilhando ao luar. Aves noturnas lançam pios espaçados.

Mila desliga os faróis, salta do carro e trata de injetar ânimo na amiga catatônica.

“Depressa, criatura! Antes que apareça algum casal gay! Eles costumam trepar aqui no parque.”

Usam o colchonete para arrastar o cadáver até a porta do carro. Movidas a adrenalina, instalam Conrado Conti no lugar do motorista, como um manequim de loja: a cabeça caída sobre o antebraço direito, apoiado no volante. Ofegando, Mila esfrega o pano de prato no interior do carro e no trinco da porta, por dentro e por fora. Sem pausa, embola o colchonete na traseira-do jipe, atira as luvas lá dentro e consulta seu relógio:

“Dez e quarenta. Vambora, gata.”

Com os braços cruzados no peito, Carla afaga os próprios ombros. Trêmula como o reflexo da lua cheia nas águas do lago.

 

Mila rodou um tempo sem destino, deixou sua amiga chorar longamente, enfim livre daquele transe.

“Não foi sua culpa, querida. A hora dele chegou. Podia acontecer a qualquer momento. Infelizmente, foi na sua casa.”

“Coitado do Conrado… Ele dizia que eu era o raio de sol no inverno dele”, ela soluçava, as lágrimas lavando a maquiagem.

“Procure esquecer, meu bem. Fique tranquila. Vamos guardar o nosso segredo. Agora somos parceiras no crime.”

O tom de Mila era íntimo, confidencial. Parecia muito orgulhosa de seu sangue frio naquela circunstância. Chegou a sugerir que fossem jogar canastra com as Garotas do Baralho. Seria um álibi perfeito, garantiu.

“Impossível!”, Carla estrilou.“Tô abalada, um trapo!”

“Está bem. Fique calma. Respire fundo e ligue outra vez pro celular dele. Deixe mais uma mensagem.”

Ela conseguiu dar conta do recado. Mas irritou-se com a risada zombeteira de Mila.

“O que foi?”, franziu a cara borrada de azul e preto.

“Nada. Imaginei um casal de gays transando lá no parque, e a musiquinha do Indiana Jones tocando por perto, tipo trilha sonora: papará-pá… papará…”, e riu de novo, sozinha.

Viu Carla apertar os lábios, os olhos cheios de lágrimas.

“Tem um pacote de lenços umedecidos aí no porta-luvas”, Mila impediu uma nova crise. “Aproveita e limpa essa carinha linda.”

Carla ajustou o espelho retrovisor e concentrou-se na tarefa.

E teve um sobressalto quando o motor silenciou. Olhou com desgosto para sua própria casa.

“Pronto, Carlotinha. Está entregue, sã e salva.”

“Ah, eu não vou conseguir dormir aí.”

“Você deixou as luzes acesas, mulher.”

“Eu não entro aí, de jeito nenhum. Posso ficar na sua casa hoje?”

“Claro, meu bem”, Mila disse suavemente, fitando a discreta rosa tatuada no ombro esquerdo de Carla.

Com a sensação inquietante de que estava muito perto de ganhar a recompensa por sua amizade sincera e desinteressada.

 

Um ano depois, Carla servia um pinot noir ao pintor Beno Becker, de Florianópolis, que conhecera na rede social — e para quem já se exibira, nua, via webcam—, quando uma caneca de louça despencou do aparador e espatifou-se no ladrilho da cozinha.

“Nossa, que coisa bizarra”, Becker comentou.

“Será que tem algum fantasma por aqui?”, ela riu, tentando minimizar o incidente insólito. “Acho que vou chamar um padre pra benzer a casa.”

Mais tarde, ouviram música, beberam vinho e praticaram jogos preliminares num sofá da sala. De repente, o toca-discos travou e Rod Stewart ficou arranhando uma nota só, feito um gato rouco.

Ela levantou-se, foi mexer no aparelho. Nesse instante, a lâmpada de um abajur chiou, agonizou e queimou com um estalo.

A fim de prevenir mais algum fenômeno importuno, Carla puxou seu convidado pela mão. A caminho do quarto, cuidou de trancar a porta do corredor interno, esperando que pudesse manter o fantasma bem longe de sua cama.

 

 

 

 

 

 

 

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Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, publicitário e compositor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), e Alguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: l.r.guedes@uol.com.br




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