Senhores e escravos


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Maîtres et Esclaves” foi o título dado em francês ao nosso “Casa Grande & Senzala” (1933)  de Gilberto Freyre.  Um livro clássico e polêmico desde o início, remexendo nas camadas inconscientes e coletivas da civilização do açúcar, e reorientando discussões sobre escravidão e raça.  Já li Freyre escondido de alguns amigos, para os quais ele era um burguês que negava a existência de racismo no Brasil.  Freyre era um burguês, sim, mas, como ele mesmo observa em “O Camarada Whitman” (1948), “burguês não no seu sentido marxista mas no francês, no flaubertiano, em que se contrapõem não burguês e proletário, mas burguês e artista”.  É medida do seu talento e de sua complexidade ter sido burguês e artista com intensidade igual.

Freyre descascou muitas camadas emocionais dos séculos de contato íntimo entre famílias brancas e escravos pretos. Citei dias atrás Joaquim Nabuco, em “Minha Formação” (1900), falando dos laços de afeto entre senhores e escravos. Naquele livro, Nabuco anota em seu diário, em 1877, durante sua estadia nos EUA: “19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por Frederick Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar a vida de aventuras que o levou até a ser ‘marshall’ em Washington e o grande orador da abolição que foi. ‘Vim antes de tudo,’ disse Douglass, ‘ver meu velho senhor, de quem estive separado quarenta e um anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida’”.

Nabuco diz que essa cena o comove mais do que “A Cabana do Pai Tomás”. A reconciliação entre o ex-escravo e o ex-dono, que ele não via desde os dezoito anos, se deu após a Guerra da Secessão e a emancipação dos escravos, quando Douglass já era escritor e orador famoso, e já tinha até se candidatado a vice-presidente dos EUA.  E olha que, segundo os registros, o Capitão Thomas Auld, nos velhos tempos, entregou Douglass a um feitor tido como “amansador de escravos”, para meter a chibata no rapaz e fazê-lo desistir de ler e de discutir idéias. (Não conseguiu, claro.)

O episódio, que Nabuco considera “uma das mais profundas e penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão”, se deu no contexto de uma nação ensanguentada e partida ao meio por uma Guerra Civil que deixou quase 700 mil mortos. Parece que naquele momento valeu mais a pena, para ambos, deixar que as feridas cicatrizassem, e tentar reunir cidadãos de boa vontade para renegociar o futuro. A escravidão foi um crime que só deixou três respostas possíveis: a vingança, o perdão e a justiça.  Difícil é definir a natureza e a medida de cada uma.

 

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




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