Seis graus de separação
ONZE, de Bernardo Carvalho, “O Mestre”, de Paul Thomas Anderson e os seis graus de separação
.
“Alguma coisa ali já me parecia falar da verdade, uma estranha manifestação da verdade, numa forma ao mesmo tempo bruta e intrincada”. (de Os bêbados e os sonâmbulos, Bernardo Carvalho)
Provavelmente estarei chovendo no molhado, pois vários espectadores devem ter feito a ligação, e algum porventura até tenha escrito sobre isso; não obstante, não posso deixar de comentar minha perplexidade ao sair agora à noite de uma sessão de O Mestre, filme de Paul Thomas Anderson, onde Philip Seymour Hoffman, na pele de Lancaster Dodd, obnubila a mente já não muito equilibrada de Joaquim Phoenix com uma seita denominada “A Causa”, pois a terceira parte de ONZE, primeiro romance de Bernardo Carvalho, lançado em 1995, chama-se justamente “A Causa”. Não chegamos a conhecer o criador da seita do livro, mas seus reflexos radicais em seguidores:
“Eles chamam o professor de cínico e de louco, mas não pode ser um sendo o outro. Eles não sabem o que querem. O professor percebeu isso muito cedo. Resolveu agir. Não é de esperar (…) o que ele não pode potencializar: A causa estava lá, no mundo; ele apenas indicou o caminho. Estávamos esperando alguém indicar o caminho…”
Isto aqui não é uma resenha. Estou saqueando, após algumas cervejas e uma caipirinha de saquê, meu caderno de anotações de leitura (mais de citações, verdade seja dita), pois li ONZE há muitos anos, logo, terei de me valer da memória e de algumas páginas registrando essa leitura.[1]
À época, sem chegar a uma conclusão definida, eu gostara muito e achava algo que tinha o toque de Thomas Pynchon, em seus aspectos de paranoia, de sentimento de liberdade controlada, extremamente vigiada (e olhe que estávamos ainda distantes do onze de setembro de 2001), e achara bacana os aspectos envolvendo terrorismo, atentados, conspirações, que não caíam na esbórnia do pastiche nem da chanchada. Também achei importante (e isso já vinha da leitura dos contos de Aberração, como Atores[2]) o que eu hoje consideraria uma percepção da AIDS como uma Grande Narrativa do mundo das últimas décadas, no tocante a como interferiu na existência, nas apostas de vida, na percepção individual, no equacionamento da vontade de liberdade e num sentimento difuso, mas muito presente, de opressão. Não sei se é o caso de afirmar tão categoricamente, mas no universo do Carvalho inicial, a AIDS adquire uma potência simbólica à Pynchon (lembrem-se de que ela era, estatisticamente, muito mais mortífera naquela época, com todas as conotações de peste).
.
.
Na verdade, não estou evocando ONZE aqui neste texto porque Bernardo Carvalho configurou “A Causa” quase duas décadas antes de Paul Thomas Anderson, e sim porque este romance, do qual quase não se fala mais (ofuscado, como outros dessa fase, pela consagração de livros como Nove Noites & Mongólia) de fato se mostrou “avant la lettre” com relação a uma tendência cada vez mais difundida, e que recentemente chegou aos seriados de televisão, como Touch (em breve, estará nas telenovelas): é o que eu chamo de estilo “seis graus de separação” (talvez fosse mais exato dizer que é um Zeitgeist da indústria cultural), e que não passa da aplicação daquele clichê batidíssimo da Teoria do Caos (se uma borboleta bater asas em São Paulo, choverá em Tóquio, coisas assim) ou da “sincronicidade” junguiana.
É fato que a peça (depois transformada em filme, que não lembro mais de quem é) de John Guare é do começo dos anos 90, anterior ao romance do autor brasileiro. Parece-me que, em ONZE, Carvalho intuiu (com os devidos graus de ironia e ceticismo) não apenas o conceito de que, ao fim e ao cabo, as vidas das pessoas, em todas as partes do planeta, estão muito mais interligadas e conectadas do que se poderia supor, e de que uma ação afeta outros, de forma muito mais efetiva (o que tem a ver com a diminuição das distâncias, através da universalização dos voos aéreos e das mídias eletrônicas, claro) do que a princípio a distância geográfica deixaria entrever ao pensamento “lógico”, linear, conceito que é discutido com elegância e clima de jogo de salão, em Seis graus de separação; acredito que ele entreviu e antecipou, com rara perspicácia, a estrutura dramático-narrativa de uma série cada vez mais frequente de obras.
Primeiro, eram aqueles filmes que entrecruzavam histórias várias (do próprio Paul Thomas Anderson tem o Magnólia, tem o Felicidade, de Todd Solondz—é isso?, o fraquinho e diluído Crash, de Paul Haggis), depois se passou a um patamar mais ambicioso, a narrativa globalizada, e a insistência de que nenhum ato é gratuito, no sentido de ficar sem consequências (aí temos a base de Babel, de Alejandro González Iñárritu—é isso? ,talvez o mais aparatoso exemplo da tendência), e hoje podemos apontar vários trabalhos nessa linha inclusive o livro de Jonathan Safran Foer Extremamente alto e incrivelmente perto, que tem aquela versão cinematográfica lamentável, e o filme de Fernando Meirelles, 360, além da ideia ficar difusa em vários e vários trabalhos menos ambiciosos. E, como disse, ela já figura com destaque em seriados, dos quais o mais evidente é Touch.
Pelo que eu me lembro (e desculpem-me qualquer imprecisão), ONZE reiterava esse número, em pormenores diversos (na quantidade de personagens de cada parte, nos horários e dias mencionados[3]). Na primeira parte, passada num sítio, num ambiente “huis clos”, eram onze personagens que numa brincadeira adulta de esconde-esconde, se revelavam numa ciranda existencial-afetivo claustrofóbica (parecia até aqueles filmes pouco estimados de Woody Allen, muito apreciados por mim, contra o consenso geral: Interiores, Setembro). O detalhe interessante é que algumas informações que apareciam rapidamente nessa primeira parte seriam exploradas nas outras partes, como uma tragédia no aeroporto em Paris, o engravidamento da filha da caseira, que tinha ido morar na Baixada Fluminense, um foragido da ditadura que virara mendigo na Europa (eu já não sei mais de quem ele era filho ou irmão dentro da trama).
Se essa primeira parte era extremamente concentrada em termos espaciais e temporais, além de ser muito individualista (e por que não dizer: burguesa?), depois havia uma parte (“Os gritos do Rio de Janeiro”) que se abria para um estrato social bem mais precário (constato no meu caderno que fiquei muito impressionado com essa parte), quando se contava a história de um grupo de onze garotos (inclusive o filho da filha da caseira da primeira parte), que sofre abusos severos nas mãos de um artista estrangeiro, o qual se instalara na comunidade para criar suas obras (havia uma abertura espacial, já que os meninos participavam de exposições em diversos países, sempre monitorados pelo artista, o que contrastava com as afirmações dele, de que eles estavam condenados ao mundo da Baixada).
Esse alargamento espacial e a estrutura “vidas que se tocam” ficam mais evidentes ainda na terceira parte, aquela mesma chamada “A Causa” e que é o mote deste texto. Novamente, são onze personagens, que vão se encontrar afinal na tragédia do aeroporto evocada na primeira parte (tragédia que é provocada por seguidores da Causa, que desejam assassinar um empresário cuja adesão a ela fizera com que redigisse um testamento legando ao Mestre todos os seus bens, ou seja, selando seu destino).
Entretanto, como disse, isto não é uma resenha, é uma evocação apenas, acarretada por um filme. Aliás, um dos meus planos sempre acalentados (nunca levados a cabo porque o dia deveria ter mais de 24 horas e a gente deveria ter uma “sombra” que ficasse lendo ou escrevendo enquanto vivêssemos nosso anedotário pessoal, tal como o escritor de A vida privada, de Henry James) era fazer uma revisão dos livros de Bernardo Carvalho, relendo sequencialmente o que li separadamente e preenchendo duas ou três lacunas que ficaram. Quem sabe agora não fosse o momento. É só ter o ânimo de vasculhar à procura.
.
Abaixo transcrevo do meu caderno o trecho mais longo que copiei de ONZE:
“Quando desapareceu, a única coisa que pensei foi o que faria com a raiva que tinha guardado num canto da cabeça, bem no fundo, para o dia em que pudesse matá-lo. Mal pensei e ela já estava de volta. Tive de me controlar para não matar qualquer um na rua. De certa forma os ensinamentos do artista, ainda que enlouquecedores, foram úteis, me fizeram compreender que ali, na Baixada, que era no nosso destino, como ele sempre dizia, de onde nunca poderíamos escapar (…) ali qualquer ação seria contra mim mesmo, porque na Baixada a raiva é tão grande que chega uma hora em que você atira em si mesmo, e isso pode ser por descuido ou porque a raiva é tanta, que não pode mais se livrar ela, quer escapar daquele corpo e não pode a não ser matando, não dá para saber mais se é raiva ou descuido. Como a história daquele policial que voltava para casa no trem outro dia. A mulher e o filho de quatro anos o esperavam na estação. Ao vê-lo, o menino veio correndo e pulou em seus braços. O policial beijou o filho, o apertou em seus braços. A mulher veio atrás. Ele a beijou no rosto. Enquanto conversavam distraídos, e o filho sempre nos braços do pai, o menino tirou o revólver do coldre e atirou no peito do policial. Você nunca sabe se é raiva ou descuido…”
.
(escrito na madrugada de 29 de janeiro de 2013)
.
[1] Não me animo a procurar o volume, fininho, no meio de milhares de outros a esta altura da noite, quase madrugada, apesar da tentação de relê-lo.
[2] Dou-me conta de que essa coletânea (que foi, creio eu, a estreia de Carvalho), da qual gosto de vários contos, e ainda acho um dos seus melhores livros, está comemorando 20 anos agora em 2013.
[3] Um pouco como a palavra “aberração” aparecia escrupulosamente em cada um dos 11 (!) contos do livro com esse nome.
.
Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br
.
Comente o texto