São Paulo minha dor


 

Mais um ano nesta cidade. Envelheço sem pudor. Cheguei aqui em 1960, salvo engano materno. São Paulo dói como uma fotografia na parede do tempo. O que já foi um paraíso longe do mar é agora um perdido paraíso que me afastou do mar, de Ilhéus. Estou assim, assim, meio melancólico, porque olho para um livro de imagens em sépia. Edição belíssima: São Paulo de Piratininga: de pouso de tropas a metrópole.

É para folheá-lo com uma música bem nostálgica tocando ao fundo, do tipo Lampião de gás ou alguma outra que nos remeta ao nosso passado colonial. Um passado que ficou preso nas margens de um rio da memória que não se chamava Lethos e sim, Piratininga. Era esse o nome do rio em torno do qual São Paulo foi idealizada e “concretizada”. Hoje em dia, efetivamente, concreto e quase nada de ideal.

O rio que nutriu o centro histórico de São Paulo significava peixe que, depois de um transbordamento, ficava preso em suas margens secando ao sol. Essa carne tostando ao sol atraía as formigas que por sua vez, acreditem, atraíam os tamanduás. O fato é que o rio passou a se chamar Tamanduateí e com esse belo nome indígena vazou na infância e na história de muita gente ainda viva por aí.

Esse era o rio que passava na minha segunda aldeia. Dos seis anos até os 15, morei em torno dele no bairro da Ponte Pequena e ele já não transbordava peixes e sim lama e outros manjares para nossos companheiros pequenos, que um dia descobri maravilhado poder chamá-los de histricomorfos com pilosidade rija, e não ratos como eram vulgarmente chamados.
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……………………….Enchente no Tamanduateí em 1918

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É curioso como a magia de uma foto, às vezes até mais do que um texto, pode nos tirar da correnteza do esquecimento que constantemente estamos imersos, e nos revelar lampejos de uma verdade, que embora pessoal, carrega todo o significado semântico que a palavra grega alétheia tão bem designa.

A verdade de nossa querida cidade está toda nas fotos desse livro. Dói ver o que ela foi e, mais ainda, intuir o que ela poderia ter sido.

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……………………………..Largo de São Francisco em 1910

Ontem os bois que passeavam pelo Largo São Francisco e seu entorno eram reais, boiada passando, olhada com curiosidade, e não metáfora de um amontoado de pessoas que caminham sem direção.

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…………………………..Largo de São Francisco em 1918

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As fotos que geraram em mim uma saudade atemporal foram encontradas num pacote do Centro de Documentação e Informação do jornal Estadão. A maior parte delas foram tiradas pelo fotógrafo ítalo-brasileiro Aurélio Becherini e retratam a transição de uma simplória cidade colonial para uma metrópole que todos viemos a conhecer.

Aquela avenida de carros e semáforos, atropelamentos e quartéis. A fronteira que precisava atravessar até o lado rico no Bom Retiro. Aquele monte de bares e prostitutas no caminho até a igreja São Cristóvão. Tudo está lá em estado latente de não-acontecimento.
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Começo da Avenida Tiradentes em 1900, com a Praça José Paulino em primeiro plano
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Ao folhear o livro descubro-me mais paulista do que gostaria de admitir. Como esquecer aquele trajeto de casa até a escola primária no Jardim da Luz? Aquele convento misterioso no meio do caminho onde minha mãe contava haver freiras enclausuradas que não viam a luz do sol nem o movimento insano dos automóveis? Ele já era daquele jeitinho em 1875.


………………………………..Convento da Luz, 1875

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Descubro no livro que o lugar aonde ia ver os peixinhos, escapulindo das aulas, o lugar onde passava domingos felizes e ensolarados com minha mãe, correndo entre as árvores, foi de certa forma o começo desta terra imensa chamada São Paulo. Era por lá que vivia o cacique Tibiriçá, na aldeia dos Tupiniquins. O bairro da Luz. O bairro que iluminou minha segunda infância, nesta cidade que me acolheu trazendo-me de novo à luz.

As primeiras descobertas fora dos limites de meu bairro. Os cinemas e seus filmes de Kung-Fu na avenida São João. Aquele palácio que chamavam de teatro em frente ao Mappin. Tudo isso me amarela. Cria fungos no peito.

Não sei por que, mas este livro, estas fotos, esta cidade, deixam a gente comovido como o diabo. Parabéns, São Paulo. Aniversariamos no mesmo mês. Eu cada vez fico mais choroso e saudoso. E você cada vez mais nos faz chorar com seu gigantismo, suas diferenças insuportáveis e seu magnetismo irresistível.

 

 

 

..São Paulo de Piratininga de pouso de tropas a metrópole

Com mais de 270 fotos de São Paulo de 1860 a 1930

Co-edição: O Estado de S.Paulo / Terceiro Nome

http://www.terceironome.com.br/piratininga.html

 

 

 

 

 

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Edson Cruz nasceu em Ilhéus e vive em São Paulo há uma eternidade. E-mail: sonartes@gmail.com




Comentários (8 comentários)

  1. Luis Turiba, Belíssimo texto de um poeta que ama e odeia a gigante cidade que lhe acolheu. São Paulo é uma cidade provocante. São São Paulo meu amor, já cantou o cantor.
    21 janeiro, 2014 as 14:22
  2. Chico Lopes, Édson: Belo texto diante de um álbum de fotografias. Imagino os encantos que SP já teve. Sou um daqueles interioranos que sempre tiveram medo do gigantismo da capital e ouvia histórias sobre assaltos e outras tantas quando menino lá na minha cidade natal, Novo Horizonte, interior paulista. Fui a SP pela primeira vez em 1973, com um amigo que trabalhava em Osasco e tinha uma irmã que morava na Cesário Mota Jr. Fiquei assustado com a cidade, assustado demais, e de noite chorei, porque queria ouvir canto de galos lá na Cesário Mota, imagine, dentro de uma kitchenete numa noite fria de maio, e no centro da cidade, praticamente. Meu amigo riu, mas compreendeu: ele também era de minha cidade e achava SP terrível. Disse até que tinha escrito um romance que começava assim: “Na cidade grande, o Inverno é a estação perene”. Enfim, só fui retornando a SP décadas depois, já casado, e com minha mulher, que morou muito tempo na cidade e a ama, embora seja do interior de Minas. Agora, tenho descoberto, mais tranquilo, seus encantos, lançado livros aí, e tudo mais, mas continuo um tanto ressabiado com seus defeitos e horrores patentes e saudoso de uma cidade como essa que as imagens do livro sugerem.
    21 janeiro, 2014 as 14:43
  3. Gláuber Soares, Tocou fundo. Também sou do tempo que a estação do metrô se chamava Ponte Pequena. Aos novos e velhos baianos São Paulo sempre nos encanta.
    21 janeiro, 2014 as 16:10
  4. AFFONSO ROMANO, Comovente.Entendo: estive em SP a primeira vez em 1952…Veja o estudo de minjha sobrinha que dá aulas de historia na PUC/ Paris; :Cidade das Águas Denise Bernuzzi de Sant’Anna Editora Senac-SP 320 pág – 2012
    21 janeiro, 2014 as 17:31
  5. naneteneves, Sensível e tocante esse teu texto-memória, Edson. Minha mãe conta que ouvia da mãe dela essa coisa das freiras que não falavam. Isso encheu a minha cabeça de fantasias e acho que foi aí que começou a nascer a escritora.
    22 janeiro, 2014 as 16:30
  6. Lucélia Machiavelli, Edson, amei o seu texto contrapondo o são Paulo de Piratininga à realidade “concreta” do momento. Comovente e artístico, uma crônica da cidade ida, mas como você mesmo diz, irresistível. Parabéns.
    22 janeiro, 2014 as 16:36
  7. Nathan Matos Magalhaes, Edson, Li o texto. Gostei, me deu até vontade de conhecer mais São Paulo, não a viva, de hoje, mas a “morta” das fotos. Textos sobre fotografias geralmente são chatos, ao menos pra mim, gostei de como o teu se desenrolou! 🙂
    31 janeiro, 2014 as 22:14
  8. Janaina Rodrigues, Nossa!! Estou querendo esse livro pra ontem, São Paulo de Piratininga, de pouso de tropas a metrópole . Sou absolutamente louca,apaixonada por São Paulo, sua riqueza, glamour,gloria,charme e tbm p sua decadência (2017). Sou nascida e criada no bairro do Bom Retiro, hj vejo a olho nu e crú a tristeza q se tornou o Vale do Anhagabaú, Viaduto do Chá e tbm a praça a estação Sorocaba (Julio Prestes) hj a “nossa” cracolândia.
    20 maio, 2017 as 23:53

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