Santa suicida


Lançamento do livro Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida -, romance de Micheliny Verunschk.

 

E é a história desse santo, sua vida e morte, seu polêmico percurso, que aqui se vai relatar. Melhor dizendo, dessa santa, porque cabe às mulheres desde sempre, de Pandora à Eva, a faísca da subversão, a quebra de valores, a assumida falta de pudores e um extremo gosto pela transgressão.”


A Editora Patuá e a Petrobras convidam a todos para o lançamento do livro Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida –, romance de Micheliny Verunschk.

O primeiro evento de lançamento será realizado no dia 02/10, a partir das 19h, no Restaurante Canto Madalena, Rua Medeiros de Albuquerque, 471 – São Paulo – SP. A entrada para o evento é gratuita e o livro estará à venda por R$ 30.00. Lançamentos em Belo Horizonte (MG) e Recife (PE) serão divulgados em breve.

O livro, realizado com patrocínio do Programa Petrobras Cultural, é o primeiro romance de Micheliny Verunschk, escritora já reconhecida por sua poesia e finalista do Prêmio Portugal Telecom 2004 com o livro de poemas Geografia íntima do deserto.

Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida – narra a história de uma menina milagrosa, tida como vidente, que um dia, sem explicações, decide se matar. O impacto dessa morte na família, na comunidade e para além dela é dado pela tensão entre o cotidiano e o excesso, o verossímil e o espetacular.

Micheliny Verunschk é doutoranda em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade  Católica de São Paulo e é autora dos livros Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa cartonera, 2014).

 

Confira uma pitada do livro:

 

Capítulo 1

 

A história que escolhi contar começa quase como um sonho, pois foi como um sonho ruim que a mãe a descobriu na sala como um canteiro de flores no primeiro dia de uma primavera terrível. Ao abrir a porta, a mulher deparou-se com ela, feitio de rosa que, fervendo num jorro, abria pétalas de um vermelho violento se espalhando nos vãos do piso, se esvaindo por um chão para sempre lavado e relavado, e ainda lavado e relavado, mas que nunca deixaria de exibir esse contorno de flor, esse sinal.

A fragrância doce e suave que as rosas arrancam da terra é feita de sangue, saiba. Sangue de gente, sangue de animais, sangue dos deuses vencidos. E, talvez por isso, a mãe tenha sentido como nauseante o perfume que pairava em redor do corpo estendido e saqueado da filha morta. Até aquele momento, a mulher não sabia, embora desconfiasse, que nenhuma visão pode ser mais pavorosa que a imagem crua de um filho morto. Não sabia ela que nada mais pode colocar nossa humanidade em risco de iminente dissolução, mergulho no nada sem volta, do que a menor miragem, o remoto vislumbre dessa possibilidade.

Em qual outro abismo que se possa nomear caiu naquele breve instante aquela mulher? Ela, que fora tão única, se igualava agora a todas essas que andam por aí a carregar pelas praças, igrejas, estações de metrô, em pesados estandartes, as fotografias dos filhos extraviados. Ela, que fora tão única, era agora coletiva, se miniaturizava num padrão de Escher, repetindo em si mesma e representando junto com as outras mães os gestos de um antigo mármore que se tornou célebre por encarnar, sim, encarnar, tomar para si as dores, fisgadas, pulsações da carne, a dor e piedade de outra mulher ante o corpo machucado e sem vida do seu menino. Só mesmo um Deus de invenção para não tremer e morrer sem estar morto perante a triste figura de sua criança despedaçada.

E assim, morta sem haver morrido, a mãe gritava de dentro do vácuo em que estava. Gritava e gritava, Teresa! Ela, mulher ainda jovem e bela cerca de cinco minutos atrás, era agora um mármore transfigurado, agarrando-se à filha com braços de pedra, cabelos de pedra, com um corpo pesado e polido de pedra e lágrima, um corpo pálido e brilhante de pérola, saído de dentro de um grande bloco bruto de mármore.

Queria sair gritando pelo mundo afora, carregando nos braços seu menino Jesus, seu estandarte, aquela menina morta. Mas não podia, não conseguia, carne de pedra plantada em todo o seu peso e raízes no duro chão. Ela gritava repetidamente o nome da filha e todos os que escutaram o substantivo assim golpeado souberam prontamente que Teresa se fora. Acudiram, num sobressalto, a irmã menor e o pai. E a dor, enfim, revelava que aquilo não era um sonho ruim, como aquele que ele, o pai, tivera na noite anterior. Sonhara que, sem ter como evitar, um jovem de olhar triste e resoluto despencava de uma torre de altura inacreditável. Ele, em uma torre vizinha, assistia à queda e, desesperado, corria ao pátio comum onde jazia o corpo do rapaz. Ao se aproximar do jovem, mais que os ossos que perfuravam as roupas ou a cabeça retorcida de uma forma quase impossível, chamavam atenção as mãos, muito brancas e finas, quebradas, estraçalhadas.

Vendo agora na filha um corpo sem sopro de vida, de boneca desconjuntada, o pai percebia que as mãos do moço do seu sonho não eram outras senão aquelas e a dor se avolumou porque o pressentimento, ou o que significasse aquele sonho, não tivera serventia alguma e, de novo, ele se encontrava no alto de uma torre, impotente, sem ter como sustentar com braço firme alguém que se precipitava num abismo insondável.

Temos, então, naquela sala, um corpo sem vida e duas pessoas que choram. Sobre o colo ensanguentado da mãe repousa a cabeça da menina, seus cabelos claros, seus olhos semicerrados. Sobre o colo da morta, repousa a cabeça do pai e ele soluça convulsivamente. De pés descalços e olhos enxutos, como a irmã, a menina menor que, sentando-se entre os pais e, entendendo muito mais do que poderiam acreditar por seus 9 anos de idade, faz círculos com o sangue derramado até que toda a palma da mão fique manchada.

Na parede, pessoas em sépia, mas que pelo tom avermelhado parecem mais terem sido registradas em sanguínea, ignoram tudo o que se passa. A bisavó, Severa, em seu vestido escuro de gola alta e abas quadradas, mira à esquerda, enquanto o marido volta-se para a direção oposta. Ela não deve passar dos 25 anos, farto impõe medo e respeito. Os olhos apertados de Severa, quase orientais, o coque no alto da cabeça meticulosamente estudado, o cordão de ouro de duas voltas pendendo do pescoço, não disfarçam um jeito triste e, talvez, submisso. A encontraremos ainda em outras duas fotografias. Em uma, de família, coloca-se ao centro, ao lado do marido, com os filhos mais velhos sentados ao chão, sorridentes frente à maravilha que é a máquina fotográfica. Em outra imagem, esmaecida, só a cabeça pode ser vista com alguma nitidez e impressiona o olhar ainda mais triste.

Os meninos podem ser vistos também em séries de fotografias feitas em torno de uma mesma cadeira. Estão mais velhos e o caçula agora também aparece. Mudam os protagonistas, suas roupas, mas as poses se repetem. O maior de pé, o menor, sentado. O maior com o braço sobre o ombro do menor. Os meninos em fileira, um com o braço sobre o ombro do outro. São três meninos que se multiplicam. O retrato de casal do avô e da avó também está naquela parede. A avó, no fim dos anos 1940, olha com segurança e maturidade para a máquina. Nada teme e seus lábios finos parecem prontos ao desafio. Severa talvez não tivesse se dado bem com a nora se a tivesse conhecido. O avô herdou os mesmos olhos miúdos, o feitio melancólico da mãe. Seguem as fotografias. Um bebê de camisa branca bate os pezinhos e exibe, inocente, sua nudez de menino, uma menina de uns 15 anos e mão no queixo exibe o relógio novo, o menino, já um pouco maior, ladeia a menina, que ainda é bem mais nova. Mas nenhum deles olha para a cena que deixamos na sala. Talvez não queiram olhar. Principalmente Severa.

Logo, o rastilho se espalhou pela cidade de V., subindo ladeiras, atravessando as ruas, estourando nos ajuntamentos de pessoas pelas calçadas, que é assim que se comportam as notícias de morte, caminhos de pólvora a estalar em alta velocidade. Embora não se faça necessário, mas para que depois o leitor não me vá acusar de gosto pelo obscuro, esclareço que Teresa cometeu suicídio, ou foi por ele acometida, o que talvez seja mais exato. Apenas esclareço por dever de lucidez, do trabalho que me imponho, a reescrita de uma luz perdida. Apenas esclareço que a menina se matou, embora isso já tenha sido dito, pois de outro modo não teria sentido num momento assim ofuscante seu pai ter dado tanta atenção àqueles simulacros de mãos.

E assim, até o leitor mais desatento saberá dos meios utilizados pela morta. Não que me seja agradável ser repetitivo, mas é quase um cacoete ficar apelando ao mais distraído, uma mania de querer todos interessados na história que conto, como se fosse eu um professor intolerante com a dispersão. Mas sei bem que me perdoariam, caso eu fosse dado a esses rogos de indulto, aqueles que compreendem que quem conta um conto é Deus a seu modo, com suas onipotências, arrogâncias e vontades. E como acredito que me cai bem essa idade eterna e poderosa, conto e reconto, vou e volto, invento e reinvento o círculo do que digo. E apenas exijo olhos que não pisquem em desatenção, o que não é muito para quem se propõe a conhecer a história de uma vida.

Vou e volto e repito do polvarim derramado dando notícia da morte de Teresa. Que seria uma morte qualquer não fosse um suicídio. Que seria uma morte comum não tivesse ela essa idade indefinida que só os adolescentes e os velhos têm. Que seria uma morte vulgar se nos últimos cinco anos as taxas estatísticas de práticas suicidas não tivessem aumentado assustadoramente entre as ovelhinhas mais tenras daquele lugar. Que seria mais uma morte se Teresa não fosse uma vidente cujos fenômenos eram minuciosamente investigados e documentados pelo Vaticano, prodígio atestado e provado pela ciência particular que o povo tem em reconhecer maravilhas. Que seria uma morte a mais se Teresa não fosse o que era: uma santa.

 

 

 

 


Serviço:

O que: Lançamento do livro Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida -, romance de Micheliny Verunschk

Quando: Dia 02/10, a partir das 19h

Onde: Restaurante Canto Madalena – Rua Medeiros de Albuquerque, 471 – São Paulo – SP

Quanto: Entrada gratuita para o lançamento e R$ 30.00 cada exemplar

 

Informações:

Tel. 11 29118156

E-mail: editorapatua@gmail.com

 




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