Romeu na estrada


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O romancista e contista Rinaldo de Fernandes tem desenvolvido uma obra que prima pelo rigor formal – oriundo no mínimo, na lâmina sem gordura – e pela delicadeza cruel no trato do conteúdo, em especial, na construção de personagens tão humanas que parecem muito próximas do leitor. Nelas, o ser é igual a physis. Os livros O perfume de Roberta (Garamond, 2005), Rita no pomar (7 Letras, 2008) e O professor de piano (7 Letras, 2010) dão mostras disso. Além da profícua produção de microcontos disponibilizados pelo autor nas redes sociais.

Vem do conto “O professor de piano” o mote para o romance Romeu na estrada (Garamond, 2014): um livro que trata de traições e planos. Tudo numa linguagem urgente e delicada. Num equilíbrio que só o árduo trabalho com as palavras – na dobra de suas significâncias – pode promover. “Um plano é como uma pedra provando o pé”, escreve o narrador-protagonista Romeu. Chegar a conhecer esse plano é tarefa para um leitor atento.

Como sabemos, não existe passado sem ideia de futuro. Nesse sentido, Romeu até poderia ser a repetição de uma ausência (Romero), mas as informações vindas de Romero e impregnadas em Romeu mais destecem do que constroem essa personagem. As histórias de um estão para o outro como a vida de um indivíduo está para o outro, por apropriação, por vivências comuns ao humano. Romero e Romeu são diferentes, mas expostos às mesmas vicissitudes.

Rinaldo de Fernandes sabe que o que importa ao escritor é a linguagem. A repetição em diferença é um recurso utilizado não apenas para evocar o conto-mote. As repetições são usadas internamente no romance, como um recurso de liga entre os capítulos e as narrativas; entre Sofia e Ângela – amores de ontem e de hoje. São esses deslocamentos os responsáveis pela suspensão de tempo e espaço. Tudo é aqui e agora, na febre e no zumbido no ouvido do narrador.

Dito de outro modo, se o conto é mote para o romance, o Romero do conto não é o Romeu do romance. Esse não é, portanto, uma extensão narrativa daquele. É certo que as narrativas do conto voltam, em diferença, no romance. Mas isso só potencializa o gesto de deslocamento criado por Rinaldo de Fernandes. Essa distensão dos gêneros, problematizando suas definições, é matéria para o escritor: o dentro e o fora, onde se decide o narrado. Romeu, portanto, é “aquele menino de quem roubaram o rolimã”, é o nômade vendedor de camisas, é o professor de piano. Mas os três não estão separados temporalmente. Numa torção espacial promovida pela memória e adensada na escrita-montagem bem urdida por Rinaldo, Romeu se desdobra em outros si: aqui, no instante-já.

O escritor faz uso ainda do artifício de adiamento dos acontecimentos, das “conclusões” nunca vindas. Há sempre pedras provando o pé, interditos atravessando a narrativa. Para tanto, Rinaldo cria viagens dentro da viagem, rendilhando os fatos e o leitor. Há mesmo semi-capítulos internos aos capítulos. Isso é gerado na narrativa sempre cortada pelas reminiscências de Romeu. “(…) nunca me esqueço, minha memória, como a do meu avô, é viva, detém-se em detalhes”, escreve Romeu. O motivo da referência ao avô? Só lendo para perceber.

Os verbos no passado – “roubei”, “peguei”, “parei”, “paguei”, “segui” – dão o distanciamento ficcional. No entanto, como já afirmei, tempo e espaço são mantidos suspensos pelo emaranhado de narrativas cujos sentidos só serão gerados pelo leitor. Ou no derradeiro instante do romance. E vem daqui a beleza do trabalho de Rinaldo de Fernandes: a exigência da atenção do leitor propositadamente disperso na profusão de informações aparentemente incompatíveis e assustadoramente belas: “por volta da meia-noite (…) havia a sombra de uma árvore”; “[olhos] que misturam a cor quando estou no piano”; “o carro parado sob a árvore parecendo um enorme peixe escuro”; “o horizonte era um vapor azulado”.

Ler a prosa de Rinaldo de Fernandes é assumir o risco de ser cobrado a colocar-se na travessia. Não é à toa, por exemplo, que nomes próprios de pessoas têm sempre lugar de destaque. Notem-se os títulos de seus livros. O sujeito é muito importante. No entanto, aqui, a estrada, esse lugar de experimentos de si, de apagamento das subjetividades, por sua vez, também é personagem, pois é nela que o narrador pensa e lembra. Romeu está sempre “sendo expulso” dos pólos: a quitinete em São Paulo, o prédio em Santos, a tentativa de emprego numa pousada. E essa escrita on the road permite os instantes narrativos, as imagens surpreendentes, os cortes fílmicos marcados pelas imposições de mudança/travessia que a estrada impõe. Tudo junto, muitas vezes sem ponto final, apenas vírgulas, semi-pausas de frações entre um acontecimento e outro: “A estrada em ziguezague, buracos, o ônibus trepidou”, anota aqui. “Eu também invento”, anota ali. Os movimentos do ônibus na estrada dão o ritmo da narrativa, imprimem o vaivém cronológico.

Rinaldo de Fernandes sabe como enredar seus leitores – nos últimos capítulos os verbos se dobram para o futuro. Ele sabe que a memória é um novelo de várias pontas e que as narrativas mnemônicas carecem de fins. Sabe que a comunicação não é o primado da linguagem. E a tessitura labiríntica de Romeu na estrada afirma isso, além de apontar o caos do pensar/lembrar na contemporaneidade.

 

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Autor do livro Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria  da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail:leonardo.davino@gmail.com

 




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