Romances de 2012


…………….Romances que se destacaram em 2012

No final de 2011, ao fazer minha lista de “destaques”, privilegiei traduções. Este ano, faço diferente: minha lista conterá apenas romances da língua portuguesa, lembrando que outros gêneros ficaram de fora porque não li coletâneas (de poemas, de contos ou de crônicas) suficientes para  tal empreitada. Pois sempre vale o aviso: não dá para ler tudo (por isso o leitor não encontrará aqui nem o mais recente Mia Couto nem o último de Ronaldo Correia de Brito, por exemplo; além disso, li em 2012 um romance notável publicado no ano passado: Diário da Queda, de Michel Laub, o que—pensando bem—torna de antemão sem sentido a proposta). Nem gostar de tudo.

Nesse sentido, aliás, escritores que admiro, como Daniel Galera e João Gilberto Noll, apresentaram obras decepcionantes: Barba ensopada de sangue e Solidão Continental; também nomes prestigiosos, como Paulo Lins e Menalton Braff surpreenderam pela ruindade, em Desde que o samba é samba e O casarão da Rua do Rosário. Gostaria de mencionar, também, algumas obras que não funcionaram totalmente, mesmo assim são boas amostras do talento das autoras, caso de Suíte de Silêncios, Rocco (Marília Arnaud) e Estranhos no aquário, Record (Adriana Armony; em compensação os romances anteriores desta, A fome de Nelson e especialmente Judite no país do futuro deveriam figurar em quaisquer listas dos anos em que foram lançados, 2005 e 2008).

Desculpando-me pelos comentários forçosamente generalizantes (e esperando me redimir com a antologia de trechos), destaco (apesar da disposição, não há hierarquia, salvo os dois primeiros títulos) entre os que li:

LIVRO, de José Luís Peixoto (Companhia das Letras): belíssima reflexão ficcional sobre as transformações na feição da sociedade portuguesa, através dos desencontros entre um casal enamorado que emigra (separadamente) para a França. O estilo de Peixoto é o de um príncipe da prosa;

O CÉU DOS SUICIDAS, de Ricardo Lísias (Alfaguara): acaba de ganhar o prêmio da APCA esse texto em que o talentoso autor de O Livro dos Mandarins nos faz atravessar uma corda bamba em que ordem e caos, busca de sentido e desagregação, linguagem e  balbúrdia se acotovelam. Brilhante e pungente;

O SENHOR ELIOT E AS CONFERÊNCIAS, de Gonçalo M. Tavares (Casa da Palavra): o mais recente da genial série “O Bairro”, onde o escritor português explora a aura mítica em torno de grandes nomes da literatura e da filosofia para brincar com os conceitos cristalizados do pensamento e da percepção ocidentais. Uma delícia de ler;

A NOITE DAS MULHERES CANTORAS, de Lídia Jorge (Leya): depois de um mergulho perturbador no mundo contemporâneo, em Combateremos a sombra, novamente o mergulho épico no tempo passado, característico da grande autora de O vento assobiando nas gruas, através das tensões e diferenças entre as participantes de um grupo musical;

AS VISITAS QUE HOJE ESTAMOS, de Antonio Geraldo Figueiredo  Ferreira (Iluminuras): já pelo título insólito, uma estreia desafiadora e irregular, excessiva e fascinante, misturando registros diversos,  em que as pessoas monologam e dialogam, mas sempre em tom babélico, um mundo de ruídos na comunicação, microcosmo dos nossos tempos;

O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR, de Elvira Vigna (Companhia das Letras): mais um livro cruel e no entanto extremamente humano da autora do já clássico O Assassinato de Bebê Martê: dois casais, um apartamento, e um labirinto de perdas e danos.  O que dá para Elvira, a rainha das trevas, fazer em matéria de amor não é brinquedo, não. O estilo está no limite entre o corrosivo e o compassivo, quase não dá para acreditar;

CADERNO DE RUMINAÇÕES, de Francisco J. C. Dantas (Alfaguara): o autor de Os Desvalidos se torna uma alma gêmea sergipana de um Mario Benedetti, de um Italo Svevo ou de um daqueles grandes narradores japoneses (Kawabata, Tanizaki) ao narrar, com sua gravidade irônica peculiar, com mãos de cirurgião, a paixão e desventura de um médico proctologista maduro casmurro;

O SONÃMBULO AMADOR, de José Luiz Passos (Alfaguara): é uma coisa maravilhosa ver que, mesmo na modernidade líquida deste nosso século, um autor de gabarito consegue plasmar a voz de um personagem (no caso, Jurandir, zeloso funcionário que “pira”), tornando-a única,  e seu relato, inconfundível;

MAR AZUL, de Paloma Vidal (Rocco): Percorrendo os cadernos deixados pelo pai, a protagonista, que emigrou da Argentina, luta com sua própria memória, muitas vezes tentando bloqueá-la, sorrateiramente, também podemos ver um nítido retrato do cotidiano delineando-se com pinceladas sutis. É preciso ficar de olho no que Paloma Vidal ainda vai produzir;

ERA MEU ESSE ROSTO, de Márcia Tiburi (Record): no seu quarto romance, a aguda escrita da autora gaúcha propõe ao leitor duas jornadas com alta concentração poética: pelo tempo e pelo espaço estrangeiro,em busca da origem dos miasmas familiares, e mostrando que a nossa suposta identidade é porosa, assimilando experiências, atavismos e fardos alheios;

LOTTE & ZWEIG, de Deonísio da Silva (Leya): curto e incisivo relato que reconstitui a morte do escritor austríaco (de origem judaica) e sua mulher, em Petrópolis de uma forma que foge tanto dos clichês da literatura-reportagem quanto do romance histórico. Os acontecimentos e personagens da época da 2ª. Guerra parecem emergir diante de nossos olhos, de forma natural e lapidar;

DIÁRIO DE UM MÉDICO LOUCO, de Edson Amâncio (Letra Selvagem): radicalizando o provérbio “de médico e louco todo mundo tem um pouco”, o romance mostra um médico que percorre Santos, a Rússia ou Paris como se fosse um personagem extraviado de Gógol, Dostoiévski e outros mapeadores da fina camada de gelo que separa razão e desvario.

Hors concours

OURO DENTRO DA CABEÇA (Autêntica), onde Maria Valéria Rezende, que acaba de completar 70 anos, mostra a qualidade atual da ficção classificada como juvenil, um livro maravilhoso, que o leitor adulto e experiente lerá com prazer.

 

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TRECHOS SELECIONADOS

“Ainda de madrugada, quando o Josué desceu o caminho da fonte a correr, tropeçando nas botas desapertadas e espalhando pedras, o Ilídio não reagiu ao vê-lo. Da mesma maneira, não reagiu às suas palavras:

Atrasei-me, desculpa. Estava descansando, a pensar que era só hoje. Estava bem descansando. Há bocado, quando percebi que tinha sido ontem, até dei um salto na cama.

Ofegante, o pedreiro segurou na mala e no livro. Foi para agarrar no braço de Ilídio, mas segurou-lhe apenas na manga e deu o primeiro passo, o segundo, o terceiro. O Ilídio acompanhou-o, teria seguido qualquer pessoa para qualquer lado. A manhã era líquida, as cores eram feitas de vapor e o Josué não se calava:

Eu sabia que ontem, mas na quarta começou a parecer-me que ainda era terça-feira, andei todo o dia, andei para trás. Se tivesse passado uma sexta, eu tinha-me apercebido logo. Na casa da d. Milú, à sexta, fazem pato. Cheira.

O Ilídio assistia às ruas vazias. A terra ainda coberta pela cacimba, as pedras polidas. Lutava com o impulso de acreditar que estava a ser levado à mãe porque tinha passado a noite inteira a esperá-la, a imaginar a sua chegada e a decepcionar-se repetidamente. O Ilídio conhecia mal aquela ponta da vila. Chamavam-lhe o São João, tinha a rua de São João, que acabava no campo, e a Capela de São João. À porta de uma casa de paredes a escamar cal velha, o pedreiro começou a baralhar um molho de chaves. Olhou para uma, como se fosse diferente de todas as outras e, com essa, abriu a porta. O Ilídio entrou, sentiu um cheiro frio e estranho, salgado, em todos os lados, todos os cantos. À procura, olhou até para as vigas do teto, entrou no quarto maior e saiu a correr, entrou depois no quarto mais pequeno, única divisão que restava, e saiu morto. Acreditou que nunca mais voltaria a ver a mãe. Tentando animá-lo, o Josué perguntou:

Já foste ao quintal?” (Livro)

VER: http://armonte.wordpress.com/2011/12/03/encruzilhada-de-becos-para-portugal/

http://armonte.wordpress.com/2011/06/01/destaque-do-blog-uma-casa-na-escuridao-de-jose-luis-peixoto/
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“De novo, começo a chorar. Não consigo resistir. Estou chorando porque o André se enforcou uma semana depois de ir embora da minha casa. Choro porque falei que na minha frente ele não iria se cortar. Na minha casa, não. Estou chorando nesse hospício chique porque só fico nervoso. Neste hospício chique. Fico nervoso e ao mesmo tempo me sinto um fraco. E choro porque não entendi nada. Comecei a chorar no meio de todos eles porque coloquei um apelido  no André. A gente ria muito. Choro porque a gente ria muito, porque o coloquei para fora de casa e uma semana depois me ligaram para dizer que ele tinha se enforcado. O meu amigo estava muito sozinho. O meu amigo se enforcou. Não paro de chorar porque o André tinha se enforcado, porque só fico nervoso e porque todo mundo diz que quem se mata não vai para o céu.

Não consigo parar de chorar agora…” (O céu dos suicidas)

VER: http://armonte.wordpress.com/2012/12/11/destaque-do-blog-duas-vezes-o-ceu-dos-suicidas/

http://armonte.wordpress.com/2012/04/14/o-livro-dos-mandarins-satira-deliciosa-a-linguagem-da-globalizacao/

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“Quais são as situações em que determinados versos se tornam claros e inequívocos?

Isto é, poderemos nós dizer que, tal como há elementos químicos que só se formam sob determinadas condições atmosféricas, também existirão certos versos que só ganham sentido quando enquadrados numa determinada situação narrativa? O exemplo que anteriormente foi referido parece ir nesse sentido.

Poderá, assim, desenvolver-se a teoria de que o verso mais obscuro, mais inatingível, ou mais irracional passa  ser aceito com normalidade, no caso de o leitor colocar o verso no meio de um conjunto de frases que constituem uma história.

Assim, poderemos defender que cada verso é o fragmento de uma história que o poeta, ou por distração ou pelo instinto de ocultar, resolve apagar ou diluir. Um verso seria, assim, nesta história, o indício de uma história.

O problema, então, é eu alguns poetas obrigam os leitores a imaginar histórias complexas para compreenderem um pequeno verso.

A questão é: e se o leitor não gosta ou não possui habilidade para contar histórias?

Aqui ficaríamos num impasse. O leitor diria: este verso é absurdo, e o escritor diria: este leitor é imbecil…” (O Senhor Eliot e As conferências)

VER: http://armonte.wordpress.com/2011/03/09/o-apelo-do-pensamento-o-senhor-tavares/

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“Eu entrava em casa, eu estava tão contente, se alguém me visse, adivinharia a dimensão do meu achado só de me ver com o meu pequeno texto no ar. No entanto, o meu achado era tão mínimo que eu jamais o partilharia com alguém. Como poderia alguma vez na vida ter um amor, como poderia partilhar com alguém aquele meu vício de viver em miniatura o grande mundo dos heróis gráficos? Que vergonha, que vergonha eu sentia do meu mundo privado. Assim em chegando ao meu quarto, onde nenhum Murilo entraria, eu poderia passar a limpo os radiosos pequenos insignificantes versos que me haviam sido oferecidos, e ali estavam na folha, lisos, claros, invisíveis. Estendi o papelote sobre a mesa do quarto, e bati à máquina os versos oferecidos. O deus da pequena poesia  entrava no meu quarto solitário e fazia tropelias com as minhas folhas brancas. O pequenino deus, do tamanho de uma carica, agitava-se no ar e falava por mim ao pequeno mundo que existe ao lado do mundo grande. O perro falava sem pausa nem interrupção. Afortunada, afortunada, dizia. Tem amor, não tem amante, tem morada,não tem casa, tem valor e não tem fama. Afortunada, tem amor, afortunada, tem valor, tem o mundo e não quer nada, tem morada e não tem casa, afortunada, tem morada, tem amor, tem valor, não tem cama, não tem fama, não tem grades, nem senhor. Mas tem amor, tem valor, tem morada. Afortunada, afortunada. Bastaria a liberdade para ser dela a namorada. Não a sigas, não a persigas. A afortunada abre o mundo, e não quer nada.

O deus das pequeníssimas letras assim me tinha visitado. Mas para que serviria a sua oferta?” (A noite das mulheres cantoras)

VER: http://armonte.wordpress.com/2011/02/16/lidia-jorge-e-a-virada-do-milenio/

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“…  é, é, só se conhece  o homem depois de casado, falei com o pensamento, que moço mais bonito, meu deus, não falei pro traste do randolfo, falei pra mim mesmo, que moço mais bonito, falei baixo, uma vez só, ele se levantou de bruto, deu um pontapé na televisão, fiquei paralisada, me chamou  de puta, rampeira, vaca bocetuda, não aguentei, você quebrou a televisão, desgraçado, sua puta, mãe o que é que foi?, vagabunda, vagabundo é você, seu imprestável, para de chorar, moleque filho de uma égua, égua a tua mãe,  para, pai, vai tomar no cu, vai você, que anda  dando o rabo escondido que eu sei, que todo mundo por aqui sabe, vai quebrar a televisão do teu macho, lazarento, desgraçado, filho da puta, veado, mãe, não é?, é?,  quem te falou isso?, todo mundo, veadão,  todo mundo sabe que a valeska tem um pau deste tamanho, cusudo desgraçado, ele deu um murro na minha cara, não esperava, quebrou dois dentes, olha, bateu no rikson, também, que entrou na frente pra me proteger, me levantei meio tonta, pra tirar o menino da frente dele, ele me chutou, caí de novo, chutou minha cara, rasgou minha orelha, que ficou dependurada, chutou de novo, não vi mais nada, acordei no pronto-socorro, aquela confusão, ele do meu lado, me perdoa, não fiz por mal, é que te amo, preta, tentei xingar, não saiu a voz, a boca inchada, a cabeça doendo muito, latejando, cheia de pontos, perdi a cabeça, minha neguinha, o menino não aconteceu nada com ele, ficou só um pouco assustado com você desmaiada, eles ficaram na casa do Januário, brincando perto do pisca-pisca, eu disse que ia cuidar da mamãe…”
(As visitas que hoje estamos)

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“Mas afinal começo.

Esvazio, pouco a pouco, o apartamento. Começo a tirar dele os traços da guerra que Rose e Arno travam por uma vida inteira. Na verdade, tirar os traços da vitória de Rose.

É dela a vitória.

Sei disto não só pela ausência de quadros de Arno, antigos que fossem, nas paredes. Sei pelo estado geral das coisas. Arno é quem, ferramentas à mão, costuma consertar o que não precisa de conserto, deixando para trás o que precisa. O apartamento não tem nada consertado. Nem o útil, nem o inútil. Arno não fez mais obras de arte. Nem consertou. Nem nada. Deve ter se arrastado atrás de Rose pelos últimos anos das vidas deles. E, depois de atender às necessidades de Rose nos últimos meses em que ela esteve doente, quando ela morre e ele se descobre sozinho, passa a se arrastar atrás de fantasmas.

E tem a autobiografia.

Uma ideia sem a menor possibilidade de dar certo que Arno inventa em dado momento. O computador está na minha frente. Um computador que já era velho quando Roger o dá para o pai, e está mais velho ainda, um dinossauro de boca grande, voltado par a parede. Está sem os arquivos. Roger apaga os arquivos quando vem para o traslado do corpo. Não tem tempo para nada, além das burocracias da morte. Mas arranja tempo para apagar os arquivos. E apagar de novo, limpando a lista dos arquivos já deletados, da lixeira do computador. Se ele já soubesse, naquela hora, que eu viria ao apartamento tantos meses depois, eu diria que era por minha causa. Para que eu não visse. Para que eu não tivesse, do pai, o que ele tem de Gunther. Um retrato ridículo, patético, para onde olhar. E rir…” (O que deu para fazer em matéria de história de amor)

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“E  é assim que mal-humorada, sem motivo justificável, Analice apronta mais uma que doutor Rochinha é obrigado a engolir. Tem nada não, ele se diz resignado, exercitando a paciência.  No próximo encontro vai pôr as cartas na mesa de qualquer jeito. Vai provar-lhe que não é um pretendente interesseiro. Não era a primeira vez que se prometia esclarecer-lhe os termos do casamento. Mas fraquejara. E tome-lhe adiamento. Agora, porém, chegara ao limite.

Analice sempre fizera prevalecer a sua ascendência, inclusive tomando a frente das iniciativas que concerniam aos dois. De tal forma que o amedrontava: nas conversas telefônicas, ela queria e não queria o casamento. E o pior é que não esbarrava por aí. Quase sempre insatisfeita, ela exigia muito mais. Abusava. Mal ele ousava ponderar ou rebater-lhe algum ponto de vista—e olhe que educadamente!—recebia de volta uma pedrada. Reconhecia, com tristeza, que aquela graça tão feminina, aquela calma aparente do primeiro encontro, a concordância plena e maquinal, se mostravam agora, apenas uma moldura, uma fachada que protegia a sua fúria, pronta a saltar à baila, mal ele a contrariasse.

Na qualidade de homem, urgia tomar alguma providência. Precisava lançar mão de algum recurso para reverter o foco do mundo. Devia apresentar-se mais decidido, ter uma postura mais firme, arrematar as discussões com palavras inabaláveis. Manifestar-se mais enérgico,  embora assim em termos, sem nenhuma apelação. E sabe Deus quanto tentara! Mas sempre teve pela frente uma mulher entrincheirada numa cerca viva de sisal, exercendo uma resistência inabalável, em que valiam todas as armas, inclusive gritos histéricos que nada tinham de saudáveis…” (Caderno de ruminações)

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“Essas coisas voltei a ver só recentemente, depois que meu amigo Ramires me levou até o gaveteiro e me entregou, afinal, a bolsa com meus pertences. Lá recuperei as pastas e minhas cadernetas de antes, as de capa dura e as de espiral, com as histórias que Minie queria que eu levasse adiante, segundo ela, até o fim. Que  eu não desistisse do que apenas eu podia contar. E nessa perseverança, também não escamoteasse mais nada. A lição dela era, em parte, a mesma do doutor Ênio. Apenas a moça não tinha o diploma de faculdade.

Heloísa, por sua vez, foi a única que me leu essas histórias no papel, quando passei a limpo, em poucas laudas à máquina, o que ainda lembrava do tempo em que era mais próximo a Marco, nós dois pequenos, experimentando as coisas. Heloísa leu e me elogiou muito. Disse que essa voz que eu trazia dentro de mim não tinha motivo para ficar fora do papel. Conversamos um dia inteiro. Ela parece que gostou de verdade. Mas isto foi também como um tombo raro, de uma só vez. Como uma peça de artilharia que tivéssemos enterrado a sete palmos, pronta a estourar, se fosse exumada, mas cujo destino era permanecer ali mesmo, encrostando mergulhada na areia, abafada pelo barro. Nunca mais falamos naquilo. Ela não voltou  a me perguntar  pelo fim das coisas, em que dariam os desastres nos quais eu e Marco nos metemos no começo das nossas vidas…” (O sonâmbulo amador)
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Quando contava para algum curioso que meu pai havia me deixado para construir uma nova capital num outro país, a reação não era só de incredulidade. Era de suspeita, e eu a interpretava dirigida a mim: ou eu estava mentindo ou merecia aquele abandono. Quando me pediam detalhes, eu não sabia dar, porque nas cartas meu pai se referia só ao futuro, mesmo sem jamais fazer nenhuma promessa.

Era estranha a escrita do meu pai. Suas frases eram longas e incertas. Pareciam ir numa direção, mas se desdiziam de repente. Era uma combinação muito curiosa de precisão e ambivalência, de detalhe e dispersão (…)

Quando peguei o avião para me encontrar com ele depois de morto, achei que teria deixado para mim uma obra que o explicaria. Era uma ideia tão vaga quanto ampla, que se desfez na paisagem antes mesmo que eu tocasse o solo. Só agora a recupero. Só agora exijo isso dele. Porque quando desci na cidade eu queria entender sozinha. Enquanto o táxi seguia a reta da imensa avenida, eu já havia me esquecido do meu pai.

Viro as páginas do seu caderno e procuro o momento em que desistiu de colocar uma palavra em frente da outra para formar uma frase…”) (Mar Azul)

VER: http://armonte.wordpress.com/2012/11/08/destaque-do-blog-mar-azul-de-paloma-vidal/

http://armonte.wordpress.com/2012/11/08/leituras-em-espelho-procura-do-romance-de-julian-fuks-e-mar-azul-de-paloma-vidal/

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“Meu avô diante de meu tio morto ainda vivo no hospital. Minha avó a rezar em casa. Nossa Senhora do Caravaggio vendo tudo sem poder fazer nada. Minha tia aprontando as roupas da viagem, acendendo uma vela branca. Fazendo a promessa de plantar flores para sempre sem explicar o que deseja ao prometer. Meu pai ao lado de meu avô movimentando-se conforme o sol. Minha tia ardendo em febre sobre a cama branca. Meu pai segurando a mala com o terno bege e a camisa queimada com as costuras esmeradas. A última injeção de antibióticos na veia fraca do meu tio ainda vivo. Os pés inchados, as mãos inchadas. A ferida no rosto como um terceiro olho. Os olhos fechados de meu avô a lembrar da mãe que não conheceu. Meu pai arrumando o terno em volta da camisa amarela no cabide. Meu avô com um copo de água na mão. Um silêncio sem decoro. Meu pai pensando se não há uma gravata. Meu avô chamando meu pai. Meu pai a chamar o médico. Meu tio a virar-se de um lado para o outro como se quisesse fugir de si mesmo. Meu pai assustado com a cama branca com manchas de suor como mapas de uma cidade desconhecida. Os olhos azuis do meu avô  agora pretos.  Meu pai com o médico pelo colarinho. O médico fraco como chá de camomila. Meu avô chamando o Gattopardo na janela. Meu pai tapando os ouvidos, o médico dando outra injeção na veia rota daquele que devém mais moribundo a cada instante. Meu pai olhando na janela a neve a cair lembrando que no verão compraria um sapato novo e iria ao cinema se tivesse tempo, sem saber o quanto dependerá do sol. Meu tio chamando as galinhas. Meu avô procurando a imagem do Gattopardo em seus pensamentos. Os corpos vazios esperando que o tempo dividisse as horas da vida e as horas de depois da vida. Aquelas que chamam de morte quando não há como evitar o nome secreto das coisas…”
(Era meu esse rosto)

VER:

http://armonte.wordpress.com/2012/11/06/a-relacao-amniotica-entre-vida-e-morte-era-meu-esse-rosto-de-marcia-tiburi/

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“Lotte herdou da condição feminina, ainda que mais por  meios atávicos do que por iniciativas que lhe seriam próprias, uma habilidade para a existência que eu não tenho. Pois em que não sou eu perturbado? Para mim, a vida tem sido sempre cheia de baraços e embaraços, de confusões e equívocos.

Lotte dorme. Agora retoma o último ressono, ouço o rumor, parece o miado de uma gata, mas é apenas a asma cumprindo o seu projeto de escavar os pulmões da minha amada com uma picareta, disciplinada, constante e efetivamente. Mas minha obediente companheira não morrerá disso, já que raramente morremos do que sofremos. A morte é quase sempre criativa e surpreendente. Não sabeis nem o dia, nem a hora, disse aquele judeu, como eu, mas tão diferente de mim, que sei o dia e a hora.  Será hoje à noite. Este é o último dia da minha vida! Aliás, este será o último dia de nossas vidas, pois Lotte também morrerá. Ou será que ela vai desistir, depois de me obedecer pela última vez?” (Lotte & Zweig)
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“Eu dava silenciosas  gargalhadas  à simples constatação de estar de novo na Rússia. E pensava: agora estou sozinho, na Rússia dos czares, de Napoleão, de Stravinski, Lermontov e de outros. Decidi apagar do meu pensamento o aborrecimento da minha chegada ao aeroporto e abrir a alma para tudo que pudesse contemplar de novo. Pela primeira vez eu viajava como quem chega a um lar durante muito tempo abandonado. Eu não era um turista, nem mesmo um simples viajante. Eu era um russo. Estava de volta à casa. Queria adotar todos os hábitos, queria me meter no meio da multidão (…) O taxista me levou até a entrada do hotel. Fazia um frio polar. Minha mala era uma extravagância de peso. Não consigo entender até hoje porque minha mala estava abarrotada de livros. Eu não conseguia me separar dos meus livros…”
(Diário de um médico louco)

VER: http://armonte.wordpress.com/2012/11/27/destaque-do-blog-diario-de-um-medico-louco-de-edson-amancio/

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“Todo dia era trabalho forçado,

do mesmo jeito, nem sábado nem domingo, nem reza

nem brincadeira, nem professora nem alua de história

e filosofia.

Pior que a mata era o Coxo e mais uns quinze como

ele, todos armados de doze, vigiando noite e dia.

Até pras necessidades, que se fazia no mato,

não se podia andar só. Eu digo que não conheço

uma humilhação maior que um homem ter de cagar

debaixo da mira da arma de outro homem ameaçando (…)

Um corpo de homem aguenta de tudo,

mais do que a gente imagina, por vontade de viver,

mas a alma é outra coisa, vai morrendo mais depressa

quando perde a esperança, quando a maldade é demais.

Minha alma quase morreu quando me vi obrigado

a pegar na motosserra e sair feito assassino matando

árvores da mata, assim, sem razão nenhuma

que fosse de vida humana…” (Ouro dentro da cabeça)

VER: http://armonte.wordpress.com/2012/12/04/a-voz-do-povo-ouro-dentro-da-cabeca/

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ATENÇÃOSobre Marília Arnaud e Adriana Armony VER:

http://armonte.wordpress.com/2012/10/29/elegia-de-duina-suite-de-silencios-de-marilia-arnaud/

http://armonte.wordpress.com/2012/11/16/o-autor-como-personagem-a-fome-de-nelson/

 

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[Resenha publicada, sem os trechos escolhidos, em A TRIBUNA de Santos, em 18 de dezembro de 2012 e no blogue de Alfredo Monte]

 

 

 

 

 

 

 

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Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br





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