Roberto Bolaño, o visgo da literatura


ESTRELA CADENTE: Roberto Bolaño, o visgo da literatura e o desgaste da aura de um autor

A meus amigos Miguel Loureiro e Maria Valéria Rezende, antípodas quanto ao assunto.

 

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“De la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar, al menos nosotros, los nacidos em Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador Allende”… (El ojo silva, em Putas asesinas, Roberto Bolaño)

“Em 1968, enquanto os estudantes erguiam barricadas e os futuros romancistas da França quebravam com tijolos as janelas de suas escolas ou faziam amor pela primeira vez, ele decidiu fundar a seita ou o movimento dos Escritores Bárbaros. Assim, enquanto alguns intelectuais saíam de suas casas para ocupar as ruas, o ex-legionário se fechou em seu cubículo de zelador da rue Des Eaux e começou a dar forma à sua nova literatura. A aprendizagem se fazia em dois passos aparentemente simples. O confinamento e a leitura (…) O segundo passo era mais complicado. Segundo Delorme, era preciso se fundir com as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa: defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as páginas de Victor Hugo, masturbando-se e espalhando esperma sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de degradação que Delorme chamaca de humanização. O resultado, depois de uma semana de ritual ´bárbaro´, era um apartamento ou quarto cheio de livros destroçados, sujeira e mau-cheiro onde o aprendiz de escritor se punha a boquear relaxadamente, nu ou de shorts, sujo e convulso como um recém-nascido ou, mais precisamente, como o primeiro peixe a ter decidido dar o salto e viver fora da água…” (trecho de ESTRELA DISTANTE)

Antes de abordar de modo específico ESTRELA DISTANTE (Estrella distante, 1996, na tradução de Bernardo Ajzenberg), quero compartilhar um dilema com meus leitores: considero Roberto Bolaño (1953-2003) um grande escritor, mas tirando suas obras monumentais, Os detetives selvagens2666, e com a exceção de A pista do gelo e de alguns contos, a maioria do que ele escreveu pode ser considerada ruim, incluindo o romance de que ora me ocupo. Cada título publicado no Brasil parece diminuir a “aura” do escritor. A pista do gelo (do qual talvez eu goste mais por ter lido na sequência e embalo de Detetives selvagens), Noturno do Chile, Amuleto, Estrela distante (durante muito tempo mantive uma posição ambivalente sobre estes dois últimos, não me atrevendo a achá-los fracos, mas já decepcionado), Monsieur Pain (este, especialmente tosco), Putas assassinas, Chamadas telefônicas. Tenho agora a impressão de ouvir um samba de uma nota só, de que cada livro só consegue resistir a uma impressão crítica mais forte, evocando-se os livros maiores e o conjunto da obra, e que ao fim e ao cabo a literatura foi um visgo que prendeu Bolaño e contaminou irremediavelmente sua visão sobre a vida e os fatos históricos. Ele parece incapaz de refletir sobre (e narrar o) mundo sem o recurso de aludir a movimentos literários, a querelas entre literatos. A literatura parece um muro de Berlim. Quando ela adquire proporções ciclópicas, no caso dos dois romances já citados (Detetives selvagens2666), todos ganhamos com isso. Nos romances “menores”, a impressão que se tem é que Bolaño patina na falta de assunto e revela-se incapaz, na maior parte das vezes, de escrever uma narrativa que forme um todo.

Como já é de conhecimento amplo, ao se saber irremediavelmente doente, talvez condenado, ele passou a escrever e publicar de forma ininterrupta, nos dez anos que precederam sua morte precoce. Foram lançados tanto livros de escritura mais antiga (como Monsieur Pain, que é do começo dos anos 1980, mas publicado em 1999) quanto os livros que ele ia escrevendo.

ESTRELA DISTANTE é de 1996. Como o próprio autor alega, esse pequeno romance desenvolve um dos capítulos de La literatura nazi en América, espécie de história universal da infâmia, em que ele traça minibiografias ficcionais. Daí surge a figura do poeta de vanguarda que também é militar e torturador. E um serial killer, que se compraz no assassinato de mulheres (como as delicadas irmãs poetas que ele visita e executa, uma das quais, aliás, sua amante), e que depois fotografa o resultado dos seus crimes.

Assim como Bolaño se duplica em Arturo Belano e aposta seu destino na literatura, mais especificamente na poesia, Alberto Ruiz-Tagle se duplica em Carlos Wieder (aliás, depois ele vai se multiplicar em heterônimos, avatares e codinomes), que faz a mesma aposta, apesar de que a “poesia”, no seu caso se multiplica também em outras formas de expressão (o assassinato, a aviação, a fotografia).

É preciso dizer que para alguém que teve de se haver com o golpe contra o presidente Allende e a ditadura militar de Pinochet durante toda a sua carreira literária, foram poucos os resultados “felizes”,pois obras “chilenas” como Noturno do Chile estão longe de ser interessantes como as mexicano-espanholas.

Mesmo assim, dessa vez ele tinha tudo para acertar, já que a vinculação nazismo-a poesia como expressão da morte, ao invés de exaltação da vida—o golpe militar no Chile, cristalizada na figura de Wieder, era fascinante.

Além do mais, a tessitura da narrativa, em que os fatos são relembrados via terceiros muitas vezes, e portanto é um “ouvi dizer”, um”pode ser que tenha sido assim”, ou seja, adquire-se um tom conjectural, hipotético, muito adequado a uma figura fugidia, evasiva, ajudaria muito a manter o ar evanescente e misterioso da “estrela distante” Carlos Wieder:

“Tudo o que se relatou talvez tenha sido assim mesmo. Talvez não. Pode ser que os generais da Força Aérea Chilena não tenham levado suas mulheres. Pode ser que o aeródromo Capitán Lindstrom jamais tenha sido cenário de um recital de poesia aérea. Talvez Wieder tenha escrito seu poema nos céus de Santiago sem pedir autorização a ninguém, sem avisar ninguém, embora isso seja menos provável. Talvez naquele dia nem tenha chovido sobre Santiago, embora haja testemunhas (gente ociosa que olhava para o céu num banco de praça, solitários debruçados numa janela) que ainda se lembram das palavras no céu e, depois, da chuva purificadora. Mas talvez tudo tenha ocorrido de outra maneira. Em 1974, as alucinações não eram pouco frequentes…”

E também seria pertinente, nesse caso, o exame dos grupos literários, das oficinas de poesia, das trajetórias dos candidatos a poeta da época, em face aos acontecimentos políticos e ao destino chileno.

Porém, após um primeiro capítulo estupendo, ESTRELA DISTANTE patina em todos os vícios bolañescos, sem que haja uma estrutura grandiosa que os absorva, como o caso do irregularíssimo mas poderoso Os detetives selvagens. Há, é claro, momentos incríveis, pois como já disse, não vou deixar de achar Bolaño um grande escritor, mas todos são comprometidos por uma amorfia narrativa, por uma contaminação de tudo pela literatura (no pior sentido), que chega a ser irritante a leitura. Quando aparece o policial Abel Romero e engaja Belano numa investigação do paradeiro de Wieder na Europa, o livro degringola de vez, a meu ver.

Mesmo assim, prefiro ESTRELA DISTANTE mil vezes a Amuleto e principalmente a Noturno do Chile, que considero intragável. Mas será que se não existissem Detetives selvagens ou 2666 alguém ainda daria atenção maior a esses textos, será que eu teria essa postura ambivalente, tendendo à condescendência? Eis o meu dilema, leitor.

 

 

 

 

 

 

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Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br

 




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