Rita no pomar


“Eu vou te contar que você não me conhece / Eu quero que você me veja nua / Eu me dispo da notícia”, diz o sujeito do texto de Fauzi Arap, na voz áspera de Maria Bethânia (Pássaro da manhã, 1977). Sujeito este que em muito se assemelha à narradora do romance Rita no pomar, de Rinaldo de Fernandes (7 Letras).

Lançado 2008, Rita no pomar tem uma narradora que complexifica aquilo que os manuais de literatura definem como sendo em “primeira pessoa”. Isto porque Rita – a narradora – não se satisfaz em contar verbo-escrituralmente aquilo que lhe move. E faz uso do verbo-vocal para ampliar a rede de significantes que ela espalha ao longo do texto. A voz narrativa, seja dos contos/anotações dentro do romance, seja da vocalização de Rita em diálogo com o cachorro que ela encontrou (ou será que foi ele que a encontrou?) na rua e que agora ela mantém por perto, vem de um recanto escuro, onde só com a infiltração de luzes perpendiculares – ligadas aqui e ali no livro, através dos artifícios estéticos elaborados por Rinaldo de Fernandes – podemos vislumbrar.

A todo instante está em cena a perícia do autor: no equilíbrio do recolhimento do que Rita vocaliza ao cachorro e do que ela escreve. Sem pesar para nenhum dos lados, fazendo o logos dançar entre voz e escrita, Rinaldo constrói um tecido textual nervoso onde sua personagem chafurda na consciência-de-si. Rita revira labirinticamente a cronologia dos dados: torce os tempos verbais. Sem querer chegar a ponto algum, muito menos à origem do descarrilamento de sua existência, Rita é o próprio turbilhão de atos e omissões que lhe fazem contar-se: ela canta e recanta filigranas de sua persona, dos crimes que só ela sabe que cometeu. “Ninguém nunca me viu”, anota, comum que é entre os comuns que povoam o mundo. É na voz – palavras ao vento – que Rita registra seus crimes. Não na escrita. A escrita sugere, a voz dá unicidade, assina.

Enquanto a Rita-vocal tem apenas o cão Pet como ouvinte, a Rita-escritora tem a seu favor a permanência física da escrita. Aliás, o nome do animal – Pet – iconiza com precisão tanto o modo como Rita tenta domesticá-lo, fazê-lo seu, como a ideia mesmo do útil, porém, descartável. Além da lógica referência à noção de fidelidade que o cão carrega. Importa apontar que, ainda em São Paulo, foi no pacato Rex que Rita se abrigou: “Só o Rex me tirava da tristeza quando não aparecia nada”, diz.

Rita descobre que sua mãe (Lúcia) tem um caso com André, seu marido. Depois de matar os dois a jornalista paulista se autoexila em Pomar, mas parece não desistir do amor, de encontrar alguém que lhe seja fiel. Surge Pedro, que mais tarde também será morto por Rita, quando ela descobre que ele tem um amante. Pet parece ser, por enquanto, a representação da fidelidade transferida ao outro. Isso sem contar o leitor: cúmplice e fiel às broncas e rasgos de afeto da narradora.

Rita não está por inteiro nem na voz, nem na escrita, mas na ponte que vai de um para o outro modo de ser e estar no mundo. (“Ao fim de tudo você permanece comigo, mais preso ao que eu criei e não a mim”, canta Bethânia). Ao contar-se, Rita seduz o leitor, escraviza-o cão fiel ao seu ritmo e aproxima-o de suas respirações e reticências noturnas: numa amargura doída que contrasta e luta eroticamente com o calor solar e o vento buliçoso e praieiro do Nordeste.

A estrutura formal do livro emoldura e desenha a personagem-narradora. Rita no pomar não tem gorduras, não se estica: é teso e direto. Estranha pela competência que Rita tem ao compor-se cruel – “E não late, que eu também te mato!”, diz ao fiel Pet – frente ao mundo igualmente áspero que lhe fez ser o que é: voz e escrita em fragmentos sem a necessidade de restituição de um todo. E é nisso em que o livro se avoluma: Rita não se conta (canta) para se reconstituir, redesenhar–se diante dos olhos e/ou ouvidos de Pet, ou do leitor de Rita no pomar. Ela se conta pelo sabor estúpido do gesto, como quem colhe uma fruta, morde e deita-a fora por senti-la azeda, verde.

Em seu arranjo (fazer, desfazer e refazer) literário, Rinaldo cria um texto aceso e febril ao espalhar ao longo de Rita no pomar o gosto travoso da experiência radical e perigosa de fazer de Rita a aparência do que, de fato, ela é: o centro das atenções, a mentira que só diz verdades, aquela que só é quando se diz ser. A voz de Rita assina e presentifica o que ela escreve.

Semelhante à grande parte dos humanos, prenhe de vontade de reconstrução e fuga, Rita descobre instintivamente – despida de desejos de sentidos – que é compondo seu canto que ela toca o mundo. (“E a minha nudez parada, te denuncia, e te espelha”, canta Bethânia). Nua no último segundo de seu monólogo humano, mas porque sempre assim esteve e só o leitor não percebeu, ou não quis perceber, Rita mexe com alguma coisa de impronunciável: o gesto diante da frustração do desejo. E Rita é só desejo. Ao se acusar, Rita relata o leitor-ouvinte a si mesmo e assim se livra das palavras – vocalizadas e escritas – com as quais ela se veste. Pet sabe demais: “E não late, que eu também te mato!”. O leitor sabe demais: “Já estava em não sei qual rascunho do Pai, que eu tinha que naquela tarde topar com o Pedro”.

Sexo no cemitério. Papel com esperma sobre a cruz funerária. Prazer e morte. Pomar é aqui. Pomar não é aqui: dentro do canto de Rita, na seleção e na montagem de Rinaldo de Fernandes.

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com




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