Restauração, Revisionismo e Resgate


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Restauração, Revisionismo e Resgate em The Reivers, de William Faulkner

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É no mínimo curioso que o último romance de William Faulkner – The Reivers – tenha recebido, na edição brasileira de 2003, publicado pela editora Arx, o título de “Os Invictos”. A palavra reiver, cuja origem pode ser traçada até o inglês médio reifen, e ao inglês antigo rEafian, significa ‘ladrão’, ‘gatuno’, ‘ladro’, ‘larápio’, ‘pirata’’, ‘saqueador’ e epítetos semelhantes,  mas é termo escocês em desuso, resgatado do olvido neste último romance da saga faulkneriana – assim como a palavra francesa purloin é resgatada por Edgar Allan Poe no conto “A Carta Roubada”- tão somente para, por obra do seu tradutor, ser enviado ao olvido de novo, posto que a traduz como “Os Invictos”. Reivers é como são também conhecidos os guerreiros dos antigos clãs da Nortúmbria e da Escócia, engajados, desde o século XIV, em selvagem luta pela manutenção de seus territórios livres de fronteira, contra os reis dos dois lados, da Inglaterra e da Escócia. A pilhagem está entre as suas mais importantes atividades. É provável então que, em “The Reivers”, romance publicado em 1962, a poucas semanas da morte do autor, o bravo e indômito espírito desses escoceses – e por que não dizer, espírito inclinado à gatunagem, à pirataria e ao saque (reaver, palavra escocesa semi-arcaica, é outra das origens prováveis do título deste livro, significando plunderer, marauder e raider) – seja evocado, pois deles descendem os fundadores do condado de Yoknapatawpha, que para ali migraram com os seus tartãns. O autor nos informa, em seu ‘Compson Appendix’, fábula genealógica concebida para elucidar os mistérios de ‘O Som e a Fúria’, que o neto de um escocês, de nome Jason Lycurgus – assim chamado porque o avô o queria vocacionado para as letras clássicas – alcançou em 1811 o posto dos índios Chickasaw, no Mississipi, levando uma égua e poucos pertences. Ali se estabeleceu, passando a disputar corridas, usando a égua contra os cavalos do poderoso cacique Ikkemotubbe, até então senhor incontestável dos vastos domínios do Sul norte-americano. A égua de Lycurgus vencia todas as disputas, graças a um pequeno truque, mantido em segredo. Vê-se assim por qual turno de ironia a primeira milha quadrada do solo lamacento de Yoknapatawpha foi conquistada, dando início ao condado mítico em que medraram as sagas dos Sartoris, dos Compsons, dos Snopses, dos McCaslin. Sobre a base de uma desonestidade viril e sã, fingidora e criativa – mais que um roubo, na verdade um pequeno logro — construiria Faulkner a sua formidável utopia americana. The Reivers adquire, então, essa feição de suave reminiscência e retorno aos verdes anos de Yoknapatawpha, que aos verdes anos do escritor se entretece. É assim que como autor deste romance particular Faulkner tem sido muitas vezes qualificado como um Próspero que aplacasse as tempestades em Yoknapatawpha, território agora tão mítico quanto a ilha da peça shakespereana, eliminando os estupros, os linchamentos e assassinatos que no primeiro são freqüentes.

Falar em The Reivers é sempre, portanto, retornar aos primórdios da construção desse território, um projeto que, iniciado em Sartoris, reservará ao segundo livro ali localizado – The Sound and the Fury – um papel fundamental. No apêndice para uma nova edição do romance em 1945, veremos aquele traço de trickstery, do logro, e da pirataria já em franca atividade. Nele o autor introduz, em um texto que tinha a intenção de ser esclarecedor e explicativo, novos complicadores, que adensam a obscuridade de “O Som e a Fúria” e acirram os embates entre o leitor e o romance, envolvendo-os em outras zonas de sombra e outros véus de difícil desnudamento. O jogo começado em 1929 torna-se então ainda mais difícil. Mas em 1945 as condições do terreno, ou mais precisamente, as condições do tabuleiro sobre o qual o jogo vinha desde sempre sendo jogado, eram tornadas explícitas: o tabuleiro é uma milha quadrada do melhor solo rígido e virgem ao norte do Mississippi, dotado de ângulos tão precisos quanto aqueles sobre o qual se desenrolará o intricado carteado, tabuleiro no qual se desenharão as coordenadas espaciais para as encenações da Reflexividade.

O romance narra o episódio do roubo de um automóvel – o do avô de Lucius – perpetrado pelo próprio neto, com a ajuda de dois serviçais, Ned McCaslin, motorista do avô e Boon Hoganbeck, empregado do pai. Cruzando a fronteira do Mississipi e tomando o caminho de Memphis, protagoniza o trio uma jornada aventureira no mundo da boêmia e do vício. Pernoitando em um bordel da cidade grande, primeiro trocam o carro por um cavalo, a fim de participarem de uma corrida, a fim de recuperarem o carro. A lógica da empreitada é circular e o resultado das trocas é nulo. O alegre exercício de um logro importa mais que o dito roubo, pois o truque do antepassado escocês terá de ser de novo encenado, afim de que prevaleça o desejo de vencer a corrida com um cavalo imprestável. Nas brechas dessas trapalhadas, muito do que cogita o autor sobre a ficção pode ser vislumbrado. É no final da saga e ao fim da própria vida, que Faulkner, inspirado por um sentimento talvez de complacência e generosidade, revelará ao menos uma das charadas que havia criado no apêndice, o logro que havia permitido ao antepassado escocês arrebanhar as terras de Ikkemotubbe: a sardinha que era prometida à mula no final do percurso.

À diferença de seus outros romances, este se tece às escâncaras com os fios da biografia. Ned McCaslin e a Tia Callie, a ama de leite negra, são nomes de reais serviçais da família Faulkner. Lucius, o narrador, é o mais velho entre quatro irmãos, assim como o escritor havia sido. O pai de Lucius, Maury, assim como fora Murry, o pai do autor, é dono de uma cavalariça na qual trabalha Lucius, como trabalhara Faulkner na cavalariça do pai, em parte para se livrarem, dizem ambos, Faulkner e Lucius, da influência da mãe. O avô de Faulkner era também banqueiro, dono do único automóvel da cidade; e do posto da Standard Oil, situado ao lado da cavalariça de Murry, o pai do escritor, tudo como no romance. “The Reivers’’, ou “Os Invictos”, ou como talvez quiséssemos, “Os Ladrões”– coroa o projeto faulkneriano de embutir-se nas próprias obras, que persegue desde os tempos de” O Som e a Fúria “, quando se dizia um olhar a mais em cena, um ponto de vista entre tantos. É a versão faulkneriana do narrador ‘onisciente’, fundada na convicção de que a liberdade do eu nasce da fuga do eu, tanto quanto da liberdade concedida a leitor e  personagem.

Como ficção e vida, romances e histórias também se entrelaçam. Em “The Reivers” retornam do futuro, sob luz nova e vicejante, Boon Hoganbeck, Miss Reba e as damas do bordel que acolhem os aventureiros, vindos todos de “’Santuário”, ou de “A Mansão” ou de “A Cidade”. Incansável revisionismo de Faulkner e intenção restauradora, que neste derradeiro romance alcançam intensidade máxima: prostitutas se regeneram, sangue negro e sangue branco se misturam o truque de como vencer corridas é revelado, o clima ameno das florestas de Arden se instala, Yoknapatawpha, com o seu criador travestido de Lucius Quintus, se insinua, por fim, sob o manto protetor do Império Romano.  “Os Invictos” talvez seja a melhor tradução para outro título de Faulkner, “The Unvanquished”. Mas quem há de censurar o roubo de um roubo?

 

 

 

 

 

 

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Sueli Cavendish é professora Dra. Adjunta do Departamento de Letras da UFPE – ensaísta e tradutora. Em julho de 2008 lança a primeira edição de Eutomia – Revista de Literatura e Lingüística (www.revistaeutomia.com.br/v4) voltada para a publicação da produção teórico-crítica em Letras e Lingüística e de textos ficcionais-poemas e contos. A revista acaba de lançar a sua 8ª edição. Autora dos capítulos de livros “A Inflexão Modernista e Pós” in “Do Jeito Delas: Poesia Feminina em Língua Inglesa” (7 letras); “O Homem sem Conteúdo” in ‘Nove abraços no Inapreensível’, org. Alberto Pucheu (Azougue), Reflexividade e Diferenciação do Humano: Poe, Borges, Rosa, Faulkner (UFRJ/Aquarela).Traduziu  William Faulkner: Contos de Collected Stories de William Faulkner – “Aquele Sol Noturno”, 2011.    “Folhas Rubras”, 2011.  ”Havia uma Rainha”.  2008. “Ad Astra”, A Tarde de uma Vaca” 2007, “Carcassone”, 2001, entre outros. E-mail: suelicavendish@hotmail.com




Comentários (4 comentários)

  1. Ronaldo Cagiano, Sueli, belíssima resenha sobre “The reivers”, principalmente tocando a questão curiosa da tradução do titulo no Brasil. Agora que venho relendo a obra de Faulkner, suas abordagem lança luzes sobre o universo que o inspirou e torna mais instigante essa revista à sua bibliografia.
    13 março, 2012 as 15:55
  2. sueli cavendish, Ronaldo, fico contente que tenha gostado. De fato este é um romance importante no conjunto da obra, espécie de fecho a um projeto já por ele antecipado desde que inicia com seus primeiros romances. Discussão pra muito rio de tinta! Como dizíamos antigamente . . . Um abraço Sueli
    20 março, 2012 as 3:53
  3. cristiano, Li esse livro do Faulkner com o título: Os Desgarrados.
    22 janeiro, 2014 as 3:48
  4. Eunice Arruda, Sueli: acabei perdendo o seu endereço e não consegui ainda encaminhar o livro.
    12 abril, 2014 as 21:35

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