Resposta a um Senhor Parágrafo


…….“Os Fantasmas” de César Aira: Resposta a um Senhor Parágrafo

 

No último dia 2 de setembro, a seção Livros do caderno Cultura de O Globo publicou mais uma resenha do livro Os Fantasmas, de César Aira, lançado no início de junho pela Editora Rocco, com tradução sob minha responsabilidade. E digo “mais uma” porque o livro tem despertado grande interesse, tendo sido publicada uma dezena de resenhas em apenas três meses nos mais importantes veículos de comunicação do país. Salvo engano, apenas uma delas faz referência à qualidade da tradução. Ocorre, no entanto, que essa exceção se caracteriza por ser um texto de apenas cinco parágrafos em que o último deles, em breves nove linhas, promove uma desqualificação violenta do texto brasileiro de Os Fantasmas.

Sob o título de “Crítica: ‘Os Fantasmas’, de César Aira”, de autoria de Wilson Alves Bezerra, o texto remete de início ao ensaio “Exotismo” de Aira, em pertinente relação feita entre a narrativa do escritor argentino e os célebres persas de Montesquieu, que nas Lettres persannes vêm a terras de França para indagar sobre os “exóticos” costumes desses europeus, assim como os “exóticos” argentinos de Os Fantasmas são abordados pelos trabalhadores chilenos na história datada no dia 13 de fevereiro de 1987 (como Aira costuma fazer ao final de quase todos seus livros). No quinto parágrafo, no entanto, é como se começasse outro texto, de outro gênero, uma espécie de nota de colunista social preocupado unicamente, como disse, em desqualificar o trabalho de tradução, dando dois ou três exemplos descontextualizados e invocando uma pureza da língua portuguesa pouco digna de crédito para um professor de literatura de uma universidade brasileira (como se pode ler nos créditos do autor).

Vamos ao final de sua resenha: “É, enfim, um livro instigante de Aira, o qual, infelizmente, chega ao Brasil sem a mesma fluência do anterior, ‘Como me tornei monja’, em grande medida pelo problemático trabalho editorial. A equipe de tradução comete erros primários, e a língua portuguesa é tratada como estrangeira: a sintaxe do romance é inverossímil: ‘Pois sim, qualquer dia destes pesco uma pneumonia. Esta mocinha me faz matar de rir’ (p. 93); há escolhas de vocabulário injustificáveis, como ‘agulhas do relógio’ (p. 103) ao invés de ‘ponteiros’, e também decisões grotescas como a referência aos genitais de um garoto: em vez de se falar em piupiu, pipi, passarinho, nos deparamos com ‘pirulito’ (p. 59). Nada mais distante da tradução primorosa do livro anterior, que ficara a cargo de Angélica Freitas”.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que da referência ao “problemático trabalho editorial” se entende que estão implicados não apenas o tradutor responsável, como toda a equipe de revisão, preparação de originais, desenho e edição do livro pela Editora Rocco. Em segundo lugar, os “erros primários” que a “equipe de tradução” teria cometido não podem ser levados a sério, ao supostamente tratar a língua portuguesa como “estrangeira”, o que resultaria numa sintaxe “inverossímil”. Isto porque os escassos exemplos oferecidos não comprovam nada, levando o leitor, em efeito bumerangue, a desconfiar da própria crítica, pois o que seriam “escolhas de vocabulário injustificáveis” e “decisões grotescas” estão plenamente justificadas no contexto da narrativa de Aira. São dois exemplos, nesse caso: “agulhas” de relógio teriam de ser traduzidas como “ponteiros”; e o “pirulito” teria de ser “piu-piu, pipi, passarinho”, mas jamais pirulito! Basta dizer que no caso dos relógios há o uso de agulhas e de ponteiros, pois no texto original se aplicam as duas formas para relógios de diferentes épocas; e que no caso dos genitais masculinos… bem, esse caso não vale nem a pena discutir.

Como disse acima, trata-se em Os Fantasmas do contraste entre chilenos – vistos pelo narrador com afeto – e argentinos – vistos de modo irônico, sendo que seu autor não apenas é argentino como vive no bairro de Flores em Buenos Aires. Decorre daí algo que o resenhista, em sua pressa, não poderia fazer notar: enquanto os chilenos usam o “tu” nos seus atos de fala, os argentinos usam “vos”. Este seria o ponto a ser discutido na tradução, já que mantive o “tu” chileno e utilizei o “você” para os argentinos, com a finalidade de que o discurso indireto livre empregado em Os Fantasmas pudesse se manter o mais fluente possível no português do Brasil. Mas deixo a resposta com os leitores de César Aira, que têm se multiplicado na velocidade própria de suas narrativas e publicações, que já contam quase uma centena. E, entre nós, este número também só faz crescer, em inúmeras traduções por grandes e pequenas editoras. Qualquer consulta na rede comprova este fato com facilidade.

Finalmente, gostaria de afirmar que considero excelente a tradução de Angélica Freitas de Como me tornei freira (e não “monja”, como se lê na resenha), publicada pela mesma Rocco, e que sou um admirador do seu trabalho como poeta e editora. Concluo esta resposta ao Senhor Parágrafo informando que a presente tradução foi justamente discutida em texto que publiquei no blog da Rocco ainda em junho, sob o título de “Os Fantasmas à solta”, cuja leitura recomendo aos interessados e também, e sobretudo, ao Senhor Parágrafo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Jorge “Joca” Wolff é escritor, tradutor e professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de A viagem como metáfora produtiva (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1998) e Telquelismos latino-americanos. A teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicos (Buenos Aires, Grumo, 2009; Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2016).” Traduziu ensaio, ficção e/ou poesia dos argentinos César Aira, Arturo Carrera, Daniel Link, Fabián Casas, Roberto Ferro e Carlos Ríos, do equatoriano Pablo Palacio e do mexicano Mario Bellatin, além do escritor francês Christian Bouthemy. É co-editor das revistas outra travessia e Landa (UFSC). E-mail: jocawolff@gmail.com

 




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