Recortes


Recortes entre essência e temporalidade

O diálogo abaixo é um bom sinal de que as divergências de opinião podem constituir um ambiente salutar de construção de uma cultura

Um dos momentos adoráveis de meu encontro com Antonio Cícero foi um restaurante no Rio de Janeiro, há vários anos, onde nos embriagamos graças a dois ingredientes mágicos da noite: a descoberta de inúmeras afinidades nossas e a batida de vodka com kiwi. Era uma mesa com quase 10 pessoas, porém na manhã seguinte era apenas sensorial a lembrança que tínhamos. Em 2002 nos encontramos no Porto, em Portugal. Recordo uma agradável visita que fizemos a uma livraria. O diálogo que aqui publicamos, é um bom sinal de que as divergências de opinião podem constituir um ambiente salutar de construção de uma cultura. Imagino que constituam também uma grande fonte de enriquecimento para o leitor.

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Floriano Martins: Acaso se poderia falar em um primeiro momento onde sentes uma inclinação para a poesia ou a filosofia, algum momento em que ambas te pareçam conflitantes? E de que maneira uma transborda na esfera da outra?

ANTONIO CÍCERO: São impulsos muito diferentes os que me levam a querer escrever um poema dos que me levam a querer escrever um ensaio filosófico. Para mim, a filosofia consiste no empreendimento racional de crítica sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou cercear a vida. Para tanto, ela precisa conhecer e expor a verdade.

A poesia é a atividade em que ponho em jogo, até onde não possam mais ir, todos os meus recursos – todo o meu intelecto, toda a minha sensibilidade, toda a minha intuição, toda a minha razão, toda a minha experiência, todo o meu vocabulário, todo o meu conhecimento – a serviço de uma expressão concentrada da vida, numa escritura que mereça intrinsecamente existir.

Entre outras coisas, a filosofia defende e guarda o espaço da poesia; para tanto, porém, ela não deve ser poética, mas veraz.

Por outro lado, é evidente que a filosofia é um – mas apenas um – dos elementos que posso pôr em jogo, ao escrever poemas.

FM: Poderíamos dizer então que defendes que em ambas a relação entre conteúdo e continente deva ser recíproca, ou crês que a filosofia teria um vínculo maior com a imanência ao passo que à poesia coubesse mais ambientar-se com a transcendência?

AC: Na boa poesia, é impossível separar conteúdo de continente. No limite, o bom poema é intraduzível. O próprio material imediato da poesia são as palavras. Mas penso que a boa filosofia não é poesia. O seu material são conceitos que podem ser expressos por intermédio de diferentes palavras. Ao contrário de Heidegger ou de Wittgenstein, que, cada um à sua maneira, movido por um intenso ódio à modernidade, tentou relativizar a própria razão, penso que, em última análise, as palavras devem e podem ser continentes arbitrários para os conteúdos da filosofia.

A filosofia deve em primeiro lugar defender as suas próprias condições de possibilidade. Em segundo lugar, porém, ela é a expressão necessária do princípio da necessidade reduzido ao mínimo, isto é, reduzido à mera função de proteger a vigência máxima do princípio da liberdade; em outras palavras, é o mínimo de não-poesia necessário para garantir-se o máximo de poesia no mundo.

Em outras palavras, tenho a poesia como hierarquicamente superior à filosofia, pois esta existe em virtude da necessidade de defender aquela. Isto, porém, significa que, para mim, é a poesia que é autotélica, isto é, que tem a sua finalidade em si própria, enquanto que a filosofia é heterotélica, isto é, tem a sua finalidade na defesa da liberdade, inclusive da liberdade poética.

Quanto à questão de imanência versus transcendência, tenho que confessar que me é inconcebível qualquer transcendência radical e absoluta, isto é, religiosa. Não concebo a transcendência senão relativa, no interior de uma imanência última. Dito isto, a poesia pode ser tomada como o exercício e o esplendor da transcendência na imanência.

FM: Estava lendo um livro do Luther Link (The Devil, 1995), e há uma passagem em que diz que “às vezes a fonte de uma obra é a própria obra”, salientando que “os diabos com asas de morcego de Giotto parecem ser um exemplo específico disso”. Poderíamos pensar em uma fonte revelável de tua poética?

AC: Concordo com a afirmação de que muitas vezes a fonte da obra é a própria obra. Mas acho que a verdadeira fonte de uma poética não é revelável; ou, pelo menos, não é revelável para o próprio poeta. Para mim, a fonte e o fim se confundem num ponto de fuga ao qual a minha visão e a minha razão instrumental não têm acesso pleno. Estas são muito adequadas para falar de meios, e o que dizem, quando são totalmente lúcidas, é que os meios dependem dos fins; ora, dos fins (que, de novo, se confundem com as fontes), elas não sabem falar.

FM: O Eduardo Lourenço refere-se a um aspecto essencial na poesia, uma natural exigência de «que inequivocamente a leiamos nos poemas mesmos e não que deles a extraiamos depois de lá a ter metido». Concordas com isto? E de que maneira podemos situar na filosofia essa «dimensão inultrapassável da poesia», segundo Fernando Guimarães?

AC: Concordo. O que metemos num poema não é o que faz com que um poema seja um poema: não é o que faz com que um poema mereça existir. O que faz com que um poema seja um poema – isto é, a poesia propriamente dita – é algo que não pode ser nem metido num poema nem extraído dele. Filosoficamente, a poesia é, como diz Kant, falando da beleza, um universal sem conceito.

FM: O Caetano Veloso comenta que, durante a coincidente estadia de vocês em Londres, nos anos 60, tua relação com a Tropicália expressava um “entusiasmo contido”. Qual seria a dimensão desse entusiasmo, e de que maneira te sentias integrado ao movimento?

AC: Não participei da Tropicália e, quando conheci o Caetano, esse movimento já tinha terminado. Antes disso, porém, eu já avaliava a importância enorme da Tropicália na cultura brasileira. Entendo-a como um movimento libertário que, entre outras coisas, explodiu os muros ideológicos elitistas que pretendiam desclassificar tudo o que não se enquadrasse em estreitos parâmetros nacionalistas, bom-gostistas e pseudo-machistas dentro dos quais se pretendia confinar a produção cultural brasileira. Em termos de música, ela completou o processo, iniciado pela bossa-nova, de elucidação conceitual da natureza da música popular brasileira, em particular, e da música popular, em geral. Falo detalhadamente desse assunto num artigo que está publicado na revista Continente, no número de setembro deste ano.

FM: O nacionalismo populista que então se combatia – e não somente com o Tropicalismo, mas também com a atenção voltada para a Beat, o pop, o Surrealismo etc. – hoje se encontra substituído pelas táticas de consumo. A própria afirmação do novo não vai mais além do acento nas repetições e diluições de fórmulas já de todo reveladas. Recordo aqui tua clara distinção entre progresso artístico e cognitivo. Não te parece que o dilema permanece, apenas atualizados os mecanismos de negação dos valores universais?

AC: Na resposta anterior, mencionei o papel de elucidação conceitual que o Tropicalismo teve na música popular brasileira. Ele é equivalente ao papel que a arte conceitual teve na pintura. Em outras palavras, o Tropicalismo é arte conceitual. Depois da elucidação que ele fez, a música popular brasileira se livrou de todas as restrições formais ou temáticas que lhe eram impostas em nome do epíteto “popular” ou em nome do epíteto “brasileira”. Isso não quer dizer que tudo seja bom, ou que valha tudo. Quer dizer apenas que não se pode a priori determinar o que é que é bom ou o que é que vale. Cada obra de arte é sui generis e exige ser considerada em si. Isso é o que todo artista sabe ou deve saber. O fato de que a indústria cultural e o grande público ignorem essa lição da arte conceitual é outra questão, que interessa antes ao sociólogo do que ao artista. De todo modo, a elucidação conceitual só precisa ser feita uma vez em cada arte e o Tropicalismo já a fez, no que diz respeito à música popular.

FM: Ao referir-se à influência da metafísica sobre as culturas de uma maneira em geral, Michel Leiris distinguiu as sociedades primitivas daquelas a que supostamente pertencemos recorrendo a uma característica nossa de “irremediavelmente degenerados”. O que pretende conservar hoje a filosofia ao buscar uma aplicação na realidade?

AC: Não conheço o texto nem o contexto em que Leiris diz isso, mas, prima facie, a distinção entre culturas primitivas e culturas degeneradas é inaceitável. “Degenerado” é o que se afastou da sua raça ou linhagem, ou das qualidades que a ela são atribuídas. Nas culturas tradicionais, baseadas em castas, é a aristocracia que cultiva a sua linhagem, da qual pretende que derivem os seus privilégios. Servos ou escravos não têm linhagem que se preze. O mesmo ocorre com as culturas racistas, tais como os nazistas alemães, os brancos sul-africanos, na época do Apartheid, ou os brancos do sul dos Estados Unidos. É por isso que, em tais culturas, afastar-se da sua linhagem é uma coisa terrível, de modo que nada lhes parece pior do que o adultério e a miscigenação. Na realidade, porém, toda cultura surge ou progride como “degeneração” de uma cultura anterior. Onde há mais cultura é onde há mais mistura. Entende-se assim que, no Ocidente, as grandes culturas e a própria civilização tenham surgido no leste do Mediterrâneo, onde se encontram os caminhos da Ásia, da África e da Europa. Toda cultura humana já é “degeneração” da natureza. Mais ainda, cada espécie que surge na evolução é a “degeneração” de uma espécie anterior. O caráter primitivo das “culturas primitivas” está no fato de ignorar a sua condição “degenerada”.

Outra observação: os nazistas consideravam toda a arte moderna como “entartete”, isto é, degenerada e, como se sabe, fizeram, em 1937, uma exposição destinada a ridicularizar a chamada “arte degenerada”. Pois bem, eles tinham razão. Dizer, como eu disse acima, que cada obra de arte moderna é sui generis é exatamente dizer que ela se separa do genus, da raça, a que tradicionalmente pertencia. Isto significa que, fazendo-se degenerada, cada obra de arte constitui o seu próprio genus, constitui a sua raça individual. Em outras palavras, os nazistas desprezavam exatamente o feito – cognitivo – de que os artistas modernos mais podem se orgulhar.

 

 

[Publicado inicialmente no Diário de Cuiabá]

 

 

 

 

 

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Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção do Brasil. E-mail: arcflorianomartins@gmail.com.




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