RE-FLASHES PARA DÉCIO 85


 

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Quando Décio completou 60 anos, em 1997, e os jornais e noticiários culturais silenciaram, escrevi,  quase como um protesto pessoal,  o poema-homenagem  que o  FOLHETIM (de saudosa memória) veio a publicar: PROFILOGRAMA DP. Chamei-o depois de “transmidiúnico ” para definir o seu processo composicional. Mais do que um caligrama é um “portrait” do Décio,  entre mídias, com algo de  mediúnico, porque o perfil do Décio foi nascendo intuitiva e imprevistamente enquanto eu ia colocando as linhas na velha máquina de escrever, um dos meus últimos datiloscritos. No meio do caminho, descobri o que estava fazendo e assumi o jogo. O poema começa com uma referência à “geléia geral”, expressão criada por Décio, adotada por Torquato Neto e Gilberto Gil, e generalizada para a glória do anonimato. Surgiu da frase “No meio da geléia geral brasileira alguém tem de fazer o papel de osso e de medula”  com a qual DP redarguiu, bate-pronto,  à maldição de Cassiano Ricardo: “Vocês são muito radicais. O arco não pode ficar tenso todo o tempo. Vocês vão ter de afrouxar.” Depois do troco de Décio, o velho Cassiano pôs o chapéu e se despediu com um “Adeus”. Nunca mais o vimos. Torquato leu o exemplar da INVENÇÃO, que lhe dei, onde a expressão aparecia,  e ficou siderado. O meu poema se fecha com uma montagem de livros e linhas do próprio Décio, altero-auto-retrato. E um “mano” mallarmeano. Nada que eu pudesse dizer sobre ele diz mais do que ali está.

Entrevistas entre-vistas (em negrito, as re-reflexões de agora) :

• Conheci Décio em 1948. Eu tinha 17 anos e vira, publicado por Sérgio Milliet no Estado de São Paulo, um poema dele, O LOBISOMEM que me impressionou muito. Assistindo a uma mesa-redonda sobre poesia no Instituto dos Arquitetos entrei em contacto com ele.   Decio, Haroldo e eu  passamos a nos encontrar semanalmente para discutir poesia. A época era muito instigante.  Era o momento pós-guerra, que nos trouxe a novidade da literatura inglesa, contrariando a tradição brasileira, pautada pela francesa. No início dos anos 50, MAM e MASP, cinemateca, nova arquitetura. Nas Livrarias Pioneira (especializada em literatura em inglês), Francesa, Italiana nos inteirávamos das últimas novidades. Na casa de discos Sradivarius, em 1952, conhecemos as obras de Schoenberg, Berg, Webern, Varese, Cage pela primeira vez registradas em LP. Floresciam o MASP e o MAM, e sua cinemateca,  Bienais, nova arquitetura. Enquanto os  intelectuais do 1º mundo eram  basicamente monolingues e autossuficientes, nós, do 3º, assimilando vários idiomas, fomos devorando tudo e queimando etapas rapidamente com a pretensão de buscar uma síntese fulcrada  no critério poundiano da invenção. Minha edição dos Cantos de Ezra Pound foi adquirida em 1949. Em 52, já publicávamos a revista-livro NOIGANDRES, sob o signo de Pound e do trovador Arnaut Daniel, protótipos de poeta-inventor, e conhecíamos o grupo Ruptura dos pintores concretistas. Era o dado que faltava para completarmos a nossa equação literária, que desembocaria em MALLARMÉ-JOYCE-POUND-CUMMINGS, interagindo com a  música de  WEBERN, SCHOENBERG, VARESE, CAGE, a arte  de  MONDRIAN e  MALIÉVITCH, os móbiles de CALDER, no momento de deslanche pré-concreto. Antes de 1956, ano da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta no MAM, já aditávamos à nossa síntese Oswald, João Cabral, Volpi e, mais adiante, quando Haroldo e eu estudamos russo com Boris Schnaiderman, Maiakóvski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.

Antiga  paixão de Décio por Poe. Uma das mais remotas lembranças que tenho dele: num dos primeiros encontros da Rua Cândido Espinheira 635, entra declamando ANNABEL LEE (o original, inteiro). Na maturidade, ele produziria uma das mais originais reflexões sobre a obra de Poe e seu poema….. (Sua teses de doutoramento em lieratura), que está em SEMIÓTICA E LITERATURA. Ninguém escrevera nada de parecido sobre Poe, nem aqui nem lá fora.

• Usando uma caracterização de Pound, quando afirma que a poesia se manifesta por melopéia, fanopéia ou logopéia, i.é, poesia onde predominam o aspecto sonoro, visual ou semântico (definições que, como a de inventores, mestres e diluidores, não é absoluta, admitindo mesclas de comportamento), eu diria que Haroldo é mais logopaico e melopaico,  Décio  mais fanopaico e logopaico, eu mais fanopaico e melopaico, pouco logo. Talvez por isso nos completemos tão bem.

Num hipotético vislumbre de classificação tipo/topológico,  ao me lembrar de um outro trio, que  durou como o nosso ao longo da vida em amizade e admiração mútuas (não se tratta, evidentemente, de comparação de grandezas), Décio estaria mais para Schoenberg/Webern, Haroldo para Schoenberg/Berg, eu para Webern/Berg.

• Um dos fundadores da poesia concreta,  introdutor da semiótica e da teoria da comunicação em nosso país, é marginalizado pela crítica e pela mídia. Pode ser, por mais agressivo, menos simpático que os  “Campos brothers”, mas não lhes é inferior, e nunca foi premiado por nada. Prêmios são muito relativos. Dependem da qualidade da comissão julgadora.

Camisa subversiva entre os timidamente engravatados “Campos Brothers”, na conhecida foto do trio em 1952, em Osasco City. Com uma outra, vermelha, aberta ao peito, escandalizaria, dois anos depois,  o salão literário de D. Carmen Dolores Barbosa, no qual Oswald (também engravatado) jogava as suas esperanças de ver, ressurreto, o de D. Olivia Guedes Penteado. O prêmio “Mário de Andrade” ao qual os “Brothers” concorreram (eu inclusive com “Poetamenos“) acabou sendo dado a um representante da Geração de 45, de cujo nome ninguém se lembra mais…

• Os poetas atuais — especialmente os que se inclinam para a “logopéia”, o que Pound chamava de “dança de palavras no intelecto”, exigindo desenvolvimentos fraselógicos — ganhariam muito se conhecessem melhor a poesia pré- e pós-concreta de Décio Pignatari, que deu contribuições originalíssimas não só para a poesia visual, mas — o que é menos percebido — para esse tipo de abordagem do discurso poético. As suas inovações me parecem pouco assimiladas nesse território — desde o poema “O Jogral e a Prostituta Negra” até o inenquadrável “Noosfera”, que também se aventura pelos desvãos intersticiais da prosa — e fazem falta como “nutrição do impulso” à poesia de agora.

Publicada pela Ateliê Editorial, em 2004, a nova edição de POESIA POIS É POESIA, contendo toda a poesia de Décio — salvo os textos  prosapoesia que ele preferiu incluir em O ROSTO DA MEMÓRIA (1986), entre os quais NOOSFERA, O QUE CHOPIN — não mereceu resenha nem notícia nos cadernos culturais dos jornais e revistas de larga circulação. Edição magnífica, a mais bela e completa de todas as que sairam sob o mesmo título. Atestado do nível da “intelligentzia” de plantão. Ou Décio está muito acima ou eles muito abaixo.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto de Campos nasceu em São Paulo, em 1931. Poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música. Em 1951, publicou o seu primeiro livro de poemas, O REI MENOS O REINO. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, lançou a revista literária “Noigandres”, origem do Grupo Noigandres que iniciou o movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil. O segundo número da revista (1955) continha sua série de poemas em cores POETAMENOS, escritos em 1953, considerados os primeiros exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. O verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras rearranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas em até seis cores diferentes, sob inspiração da Klangbarbenmelodie (melodia de timbres) de Webern. Em 1956 participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as históricas publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (London, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), Anthology of Concrete Poetry, por Emmet Williams (NY, 1968). Sua poesia está coligida principalmente em Viva Vaia (1979, 4ª ed. 2008), Despoesia (1994) e Não (2003, 2ª ed. 2008). Últimos estudos e traduções: Poesia da Recusa (2006), Quase-Borges (2006) e Emily Dickinson: Não sou Ninguém (2008). Site: www2.uol.com.br/augustodecampos




Comentários (3 comentários)

  1. Flávio Tallarico, É muito bom encontrar este site literário. Tenho 3 livros de poesias publicados. Faço poemas assim: GATO RATO A morte não morre nunca. A morte vive de tocaia, na espreita, até que se refaça na dor da caça. A vida não vive nunca. A vida morre na noite da caçada até que venha a aurora em boa hora. A morte é o gato alisando o pelo. A morte é o fato medindo as possibilidades do golpe exato. A vida é o rato roendo o tempo. A vida é o retrato exposto ao sol e à chuva do anonimato. A morte tem sete vidas atemporais. A vida tem uma só morte e nada mais. Morte-gato carne no prato. Vida-rato o queijo prato. A gatoeira é traiçoeira. A ratoeira é brincadeira. A morte, questão de sorte. A vida só despedida. As duas vivem nas ruas. Só uma fala. A outra, cala. A que consente acaba ausente e o gato ri na foice e no bigode: – “Comigo, ninguém pode”.
    16 setembro, 2012 as 15:28
  2. Omar Khouri, Ninguém melhor que Augusto de Campos para falar (escrever) sobre Décio Pignatari, com cuja obra convive desde 1948 e, em termos de homenagem ao bardo Pignatai, Augusto é imbatível!
    22 janeiro, 2013 as 3:20
  3. Omar Khouri, Omar Khouri, Ninguém melhor que Augusto de Campos para falar (escrever) sobre Décio Pignatari, com cuja obra convive desde 1948 e, em termos de homenagem ao bardo Pignatari, Augusto é imbatível!
    22 janeiro, 2013 as 3:22

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