Projeto literário e escolha política


……………O projeto literário implica uma escolha política?

 

Trecho da fala da autora na mesa redonda “O projeto literário implica uma escolha política?”, no “Encontro de Interrogações 2016”, realizado pelo Itaú Cultural no começo deste mês de novembro.

 

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Acho gratificante ver que, pela primeira vez nesses anos do Brasil pós-ditadura de 64, a palavra “política” vem sendo de novo colocada como algo nobre ao lado da literatura, e conta com muita gente interessada discutindo essa questão.

Antes tarde do que nunca, é o caso de dizer.

Porque existe uma coisa que se chama a luta de classes na semântica e é o que, de certa forma, estávamos vendo acontecer. Por muito tempo, nesse nosso pequeno mundo literário brasileiro – e ainda que não o reconhecêssemos – a palavra “política” foi quase banida, e a expressão “luta de classes” provocava – e provoca – urticária em muitas pessoas. Quando alguém a fala em um debate literário é como se trouxesse para a conversa uma besta fera há muito adormecida. Mas vou correr esse risco aqui porque o dia em que o escritor tiver medo de palavras é melhor deixar de ser escritor.

E o fato é que nascemos dentro da luta de classes, nos formamos segundo nossa posição na luta de classes, e escrevemos dentro do que a luta de classes nos permite. Suas fronteiras são cambiantes, movediças, há uma constante mudança de um lado para o outro, e talvez por isso mesmo elas não tenham muro. Ou se está de um lado ou de outro. E sendo a política a expressão dessa luta de classes, a rigor não é o projeto literário que implica um projeto político, é ao contrário. O projeto político (consciente ou não) de cada um é que implica sua escolha literária.

Por ser a literatura uma senhora que gosta de se emaranhar pelas ruas (é mais Geni do que dama, felizmente), o que agora estamos vendo também nos recentes lançamentos de vários autores brasileiros, é a política entrando de uma maneira que até três, quatro anos atrás, não entrava. Foi só essa nova ditadura-in-progress passar a nos ameaçar, para que a política deixasse de ser invisível em nosso cotidiano, e em nossa ficção literária.

Mas havia – e há – de fato, uma enorme apreensão quando a literatura se diz política. Apreensão que parte do equívoco de confundi-la com panfletarismo, com uma escrita que, ao dar prioridade ao conteúdo, desleixa a forma e a busca estética que marcam o fazer literário, e se esquece da ambiguidade do mundo para erigir heróis. Nenhum escritor que se preza escreve livros assim porque um livro sem trabalho de linguagem, sem personagens em conflito, sem preocupação estética, sem invenção, não é literatura. Simples assim.

Quanto a mim, o que posso dizer inicialmente é que aqueles que me conhecem sabem que minha literatura é assumidamente política. E é política no sentido mais amplo e bonito dessa palavra: o de apostar nas possibilidades do mundo. É com essa ideia em mente que escrevo. Com a intenção de despertar inquietações e questionamentos que façam o leitor pensar. De tentar colocar frente a seus olhos uma determinada vivência da condição humana, e assim contribuir, de alguma maneira, por mais insignificante que seja, para a criação do ato mais revolucionário que existe: poder pensar livre e criticamente.

O que não significa que, desde o começo, eu tenha pensado que seria assim. A rigor, nem seria preciso, porque tem outra coisa na qual também acredito muito e sempre falo quando o tema é tocado: o escritor não foge de sua vida. O que ele vive e viveu, sua infância, juventude, experiências, estudos, interesses, tudo o que forma a sua chamada visão de mundo, é de onde ele tira suas escolhas sobre o que escrever, e como escrever. E desde que me sentei para escrever literatura pela primeira vez, minha visão de mundo, o que eu era, me levava a escrever livros como os que escrevo, visceralmente voltados para a sociedade e para o outro.

Creio que eu poderia dizer que são três os fundamentos sobre os quais ergo os andaimes da minha imaginação literária: minha infância e adolescência no Planalto Central; minha militância contra a ditadura que se iniciou em 64; meus estudos e leituras.

É curioso como as coisas vão acontecendo no momento em que a pessoa começa a escrever. A fluidez de um projeto literário é tal que ele nunca é o mesmo de quando você o pensou pela primeira vez. O que aconteceu comigo foi que, embora tenha nascido em Goiás, passei a maior parte da minha vida fora, e tinha uma visão muito crítica em relação ao Centro-Oeste, uma região com muita terra, muito gado, muita plantação e muita injustiça, além de uma vidinha muito provinciana. Qual não foi minha surpresa, portanto, quando, no ato mesmo de escrever, fui me descobrindo profundamente goiana. Jamais havia passado por minha cabeça que minha literatura me levaria a redescobrir a riqueza da minha terra. Mas levou.

Já o que chamo de segundo fundamento do meu imaginário como escritora, os muitos anos de militância na luta contra a ditadura e todas suas consequências – o trabalho político, a vivência da clandestinidade morando e trabalhando em um bairro operário, os anos no exílio, a volta ao Brasil e a continuação da militância -, esses eu sabia, desde o começo, que forçosamente estariam em minha literatura. Não que eu fosse, necessariamente, escrever sobre essas questões – na verdade, escrevi muito pouco sobre elas. Dos meus seis romances publicados, elas entram apenas em dois, e não como tema principal. Como tema principal, só entram em um livro de contos que acabo de publicar em e.book e impressão sob demanda, com o título de “Felizes poucos”. E estão entrando agora em um romance experimental que estou escrevendo na internet, com o título de “Mulher dos 60”. Mas ainda que tratada de maneira não explícita, essa consciência de que pertenço a um mundo em conflito permanente e, como parte dele, sou também responsável por ele, norteia todo o meu trabalho. Junto com meu sangue goiano, corre meu sangue apaixonado por um mundo que, embora tremendamente complexo e cruel, é o meu.

E, por fim, quanto aos estudos e leituras, quero mencionar aqui apenas minha formação como antropóloga. A antropologia tem muito a ver com minha literatura. Não só pelo método que, em geral, ela usa – a pesquisa e a escuta do outro – como também por sua preocupação primordial – o entendimento desse outro. Mais ainda: meu tema como antropóloga era a formação das ideias. O que me remeteu diretamente à questão da subjetividade, esse reino próprio da literatura, onde só ela, de fato, é capaz de entrar.

Assim, desde que escrevi meu primeiro romance, “A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas”, até agora, são todas essas questões que me fazem escolher o tema do qual vou tratar, e também a forma com a qual trabalharei esse tema. Porque a forma, condição sine qua non para qualquer escritor que mereça esse nome, vem também de tudo isso, de todas as leituras e preocupações, e de minha inserção pessoal – e política – no mundo.  O desenvolvimento da linguagem está, ele também, presente na posição a partir da qual escrevemos, e do legado literário que deixaram os que nos antecederam.

Mas, antes de terminar, quero corrigir o que eu disse, ao me referir ao romance “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, como minha primeira experiência de escrever literatura. Não foi. Minha primeira incursão literária foi em plena ditadura, em um “aparelho” da luta armada, onde eu morava com Felipe, meu companheiro. Ao cortar a carne para o jantar, fiz um corte feio no dedo, e senti vontade de escrever um conto sobre esse ferimento sangrento e pulsante. Não recordo o que escrevi, mas recordo bem que ao mostrá-lo ao Felipe, ele detestou. Devia ser mesmo surreal aquilo: escrever sobre o corte em um dedo quando companheiros estavam morrendo, sendo presos a cada dia, e a polícia nos rondava o tempo inteiro. Gostaria de rever esse conto hoje mas ele se perdeu, provavelmente pisoteado, quando a polícia invadiu nosso apartamento, jogou Felipe na cadeia, e me jogou na clandestinidade em um bairro operário de São Bernardo. Devia ter algum simbolismo, esse conto, mas o que importa é que esse primeiro retorno do meu primeiríssimo leitor foi a vacina que me ensinou: a literatura é muito maior do que meus pequenos sofrimentos.

 

 

 

 

 

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Maria José Silveira nasceu em Jaraguá (GO), mora em São Paulo, mas já passou por Nova Iorque, Paris e Lima. É formada em Comunicação (Universidade de Brasília), em Antropologia (Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Lima, Peru) e mestre em Ciências Políticas (pela Universidade de São Paulo). Em 1980, fundou a Editora Marco Zero, da qual foi diretora até 1998. Maria José ainda trabalhou como editora na Cosac&Naify. Estreou como escritora em 2002 e já obteve vários prêmios. Começou  inventando histórias com os personagens da Emília, Narizinho e Pedrinho para a “Revista do Sítio do Picapau Amarelo”. Mas foi com seu romance de estreia, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes como escritora revelação, ganhando o mercado e o reconhecimento de seus pares. Além de escritora, ela é tradutora. E-mail: mariajosesilveira@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Cecilia Prada, É um belo texto o seu, Maria José, é pena que eu não possa pertencer (mais) ao seu círculo, ou , sei lá, talvez eu esteja errada. Mas você sabe que minha literatura sempre foi “política” no sentido mais amplo, tanto que sou considerada, com meu ” O caos na sala de jantar”, que ganhou também o Revelação de autor da APCA em 1978, pioneira da escrita voltada para o que é para mim o principal problema político, o da discriminação da mulher. Quem sabe a gente poderia ter uma conversa um dia, não é? Um abraço da Cecilia
    5 dezembro, 2016 as 19:50

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