Polifonia do cotidiano


……………..[foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press]

 

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O título Manhãs com pássaros, no alto da bela capa deste livro de Paulo Vilara, traz como subtítulo exercícios de síntese, uma ótima chave para a leitura desse conjunto de textos curtíssimos, mas de grande riqueza concentrada. Esse subtítulo diz muito mais da matéria textual do livro que a divisão tripartite dos textos: Subsolo (desertos), Chão (neblinas) e Céu (manhãs com pássaros), porque o livro é realmente um contínuo exercício de síntese. Muitos desses microtextos são como aqueles átomos concentrados em uma bomba nuclear: explodem e vão se expandindo em nossa consciência de leitores. São tantas as sugestões contidas em cada texto, que o leitor (no caso, ruminante) não pode passar rapidamente a página. E os títulos? São muito pensados! Estranham, explicam, ironizam o que está dito. Exemplifico:

SILÊNCIO

Lá vai o corpo sendo levado, lá vou eu para ser velado.

Eis aí um microtexto literariamente complexo. O título é SILÊNCIO, mas o dono do cadáver fala, inicialmente, na terceira pessoa verbal (“Lá vai o corpo sendo levado”), como se nada tivesse a ver com aquele cadáver. Mas, surpreendentemente, na segunda metade da única frase, passa a falar na primeira pessoa: “lá vou eu para ser velado”. Essa troca de pessoas verbais amplia o leque de leituras.

No texto MEMÓRIAS, o autor escreve: “Pessoas são enigmas”. Ora, para falar de um enigma é preciso verbalizá-lo, corporificá-lo em uma imagem, uma alegoria. Olhando as palavras “enigmas” e “imagens” constata-se que são anagramas perfeitos. Paulo Vilara sabe encontrar tais imagens. Outro exemplo: para traduzir a dificuldade de aproximação entre classes sociais distantes (um enigma?), o autor cria imagens espaciais em um texto sintomaticamente intitulado GEOGRAFIA. Das 15 linhas do texto, 12 focalizam um preto pobre e as três finais (que poderiam vir em outro parágrafo) referem-se ao próprio narrador: “DO LADO DE CÁ, dói sentir o quanto é difícil cruzar a FRONTEIRA entre nós, PAÍSES DISTANTES” (grifos meus). Através das metáforas espaciais, Paulo Vilara mostra quão difícil é o entendimento profundo entre os dois seres humanos envolvidos no texto. Certamente, sem o saber, o autor dialoga com o poema “O operário no mar”, contido no livro Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Confiram.

Enfim, o que posso garantir é que a voz que fala nos textos de Manhãs com pássaros é polifônica, revelando uma imensa capacidade de flagrar estilhaços existenciais, secretas elucubrações, lances corriqueiros normalmente imperceptíveis. Paulo Vilara é um antenadíssimo observador do cotidiano, capaz de iluminar com sua aguda percepção sensível o que se esconde nos desvãos da sensibilidade do outro. Este autor é um mestre na arte de “outrar-se”.

 

 

 

 

 

 

 

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Antônio Sérgio Bueno é professor aposentado de Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras da UFMG. Autor dos livros Modernismo em Belo Horizonte (1979), Vísceras da Memória (1984) e Affonso Ávila (1986), todos pela Editora UFMG.

 




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